A agenda europeia da pretérita semana ficou marcada pela obtenção do acordo entre os Ministros do Interior dos Estados-Membros da União Europeia em torno do projecto de Pacto europeu para a imigração que deverá ser solenemente aprovado na próxima cimeira do Conselho Europeu. O documento, consensualizado em sede do Conselho de Ministros, teve necessidade de conciliar diferentes posições e diferentes enfoques que o tema suscita nos vários Estados-Membros da União. Convém, por isso, retornar à génese do tema para tentar perceber o que efectivamente está em causa com a obtenção do acordo político cujas bases foram seladas em Bruxelas.
Como afirmou há cerca de um ano o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, quando respondia a perguntas sobre temas europeus no Parlamento português, faz cada vez menos sentido que um projecto político como a União Europeia, congregando actualmente 27 Estados-Membros, e caracterizando-se, entre outras coisas, por estabelecer uma completa liberdade de circulação de pessoas dentro do seu espaço interno, com abolição das fronteiras internas, possua 27 políticas nacionais de imigração total e completamente diferentes, em que cada um dos Estados-Membros, livre e autonomamente, possa fixar as regras de acesso e permanência no seu território a cidadãos de países terceiros não comunitários. É que, pese embora a essência das políticas de imigração ser e permanecer responsabilidade de cada um dos Estados-Membros da União, as suas consequências eram e são susceptíveis de se reflectir em todos os demais Estados-Membros. Basta pensar que, uma vez autorizado a permanecer num qualquer Estado-Membro da União Europeia, qualquer cidadão de um Estado terceiro não comunitário, qualquer «imigrante», se poderá deslocar – e localizar – praticamente sem restrições, e sem possibilidades de controle, para qualquer outro Estado comunitário, beneficiando dos supracitados princípios da livre circulação de pessoas e da abolição das fronteiras internas. Percebe-se, assim, que apesar de estarmos ante uma questão política sensível que se coloca individualizadamente a cada uma das 27 administrações nacionais, estamos também perante um problema de inegável contorno supranacional e dimensão europeia.
Para se ter uma percepção clara da realidade que estamos a abordar, será sempre necessário ter presente que, em menos de 15 anos, o número de imigrantes legais que chegam anualmente à Europa triplicou, passando de 590 mil em 1994 para 1,8 milhões em 2007, segundo o Eurostat; e estes números não consideram os clandestinos que, segundo estimativas da Comissão Europeia, representam cerca de 25% (4,2 milhões de pessoas) do número de imigrantes legais – 21 milhões de estrangeiros – que entre 1994 e 2007 chegaram à União Europeia.
Ora, a presidência de turno francesa da União Europeia assumiu a responsabilidade e o encargo de tentar resolver o problema e inseriu-o no seu programa semestral e na sua agenda semestral de prioridades. Cedo, porém, concluiu pela dificuldade de encontrar um consenso político sobre temática assaz melindrosa e matéria tão controvertida. O lançamento da discussão permitiu evidenciar a multiplicidade de visões que emanam de diferentes concepções e diversas visões e valores presentes no debate político europeu. Foram chamados à discussão a tradição humanista e personalista europeia para justificar a maior liberdade e quase completa liberalização das regras relativas à imigração de cidadãos de Estados terceiros para Estados-Membros da União Europeia; foram evocadas e invocadas questões atinentes à segurança nacional dos Estados europeus para sustentar a necessidade de mais e maiores controles nacionais limitativos do acesso de imigrantes aos Estados europeus; em época de crise económica e financeira, não faltou mesmo quem recorresse a argumentos economicistas e à repercussão e influência da presença e da contribuição de imigrantes para os orçamentos nacionais para dosear o grau de flexibilidade que as legislações europeias em matéria de imigração deveriam possuir. E as temáticas do desemprego não foram alheias ao debate, não faltando quem recordasse o número de desempregados existentes na Europa para o relacionar com o número de imigrantes que a Europa já hoje acolhe. Se é verdade que o espírito europeu se afirma por ser plural, que é liberdade mas também conhece a opressão, que é direito sem deixar de ter sido força, que é razão mas que também já foi mito – poderemos, então, concluir que tais contradições, intrinsecamente europeias, estiveram por demais evidentes quando a Europa da União se predispôs a discutir a temática da imigração.
E foi sob uma bandeira securitária ou restritiva que o Presidente Sarkozy lançou o tema, em Junho passado, submetendo-o à discussão dos seus parceiros europeus. Logo aí as divergên-cias saltaram para cima da mesa das negociações – e a proposta francesa acabou por ser flexi-bilizada sob pena de não existir consenso entre os 27 e inexistir um compromisso político capaz de consubstanciar as necessárias regras de compromisso entre todos os Estados-Membros da União Europeia. Esse compromisso acabou por ser alcançado em torno da consagração de regras comuns para regular a imigração laboral, reforçar os controles nas fronteiras externas da União, facilitar o regresso aos países de origem de quem tenha conseguido entrar na Europa e harmonizar as exigências para os pedidos de asilo. A regularização de imigrantes clandestinos acabou por ser um dos centros da polémica, acabando por ser acolhido um princípio de regularização de imigrantes clandestinos por questões económicas.
A questão do Pacto sobre a Imigração, todavia, não pode nem deve ser percebida de uma forma isolada – deve ser tratada e enquadrada conjuntamente com dois outros documentos que recentemente a União Europeia se predispôs a adoptar – o chamado «blue card» e a directiva do retorno.
O «blue card» – inspirado no modelo do “green card” norte-americano – pretende ser mais um elemento para competir com os Estados Unidos na atracção de imigrantes altamente qualificados, constituindo, de facto, uma licença de trabalho e residência comum a todos os países da UE, ainda que sujeita a regras e critérios apertados.
A directiva do retorno, por seu turno, aprovada no passado mês de Junho pelo Parlamento Europeu, no meio de significativa polémica e controvérsia, veio uniformizar a forma como os 27 tratam a imigração ilegal, uniformizando a legislação da maioria dos países da União Europeia. Entre as várias medidas aprovadas, os Estados-Membros ficaram incumbidos de fornecer uma assistência jurídica gratuita aos imigrantes, conforme às disposições previstas pelas suas legislações ou às regras previstas pela legislação europeia para os refugiados, estabelecendo-se um prazo máximo durante o qual os imigrantes ilegais podem ficar detidos, que será de seis meses, ampliáveis a 18 em casos excepcionais.
Ora, todas estas medidas – (i) pacto para a imigração e asilo, (ii) blue card e (iii) directiva de retorno – devem ser percebidas e compreendidas de uma forma integrada e como tentativa da União Europeia de controlar os fluxos migratórios que demandam as suas fronteiras externas e cuja resposta exige que sejam levados em consideração uma multiplicidade de valores e de princípios, não raro contraditórios, mas integrantes, todos eles, do espírito e da alma europeia. Na certeza de que, para questões transnacionais, não existem respostas nacionais que se mostrem suficientemente aptas e adequadas à sua solução.