1. As movimentações político-diplomáticas – e até partidárias – que ocorreram nos últimos dias deixam antever que o governo estará prestes a reconhecer a independência do Kosovo – na esteira do que já aconteceu com a maioria dos Estados-Membros da UE. O que não significa, necessariamente, que seja a decisão mais correcta ou mais acertada. Impõe-se, portanto, uma reflexão mais alargada sobre o que verdadeiramente está em causa quando se aproxima mais um reconhecimento do Estado kosovar.
2. Comecemos pela questão jurídica. Independentemente do número de Estados ou da dimensão das correntes de opinião que sustentem o reconhecimento internacional do novo Estado, estimulado e incentivado pela administração norte-americana empenhada em provar que a sua luta contra o terrorismo islâmico não é uma luta contra o islamismo ou Estados islâmicos, ainda ninguém conseguiu provar ou demonstrar que esse reconhecimento, assente numa proclamação unilateral do que até à data era um território reconhecido como parte integrante de outro Estado, foi feito segundo as mais elementares regras do direito internacional público. E, nessa medida, dúvida alguma poderá subsistir quanto à ilegitimidade jurídica desse acto – desse acto que, recorde-se, ainda não foi reconhecido pela esmagadora maioria dos Estados das Nações Unidas, mas que pelos vistos o governo de Lisboa se prepara para reconhecer, alterando a posição cautelosa que Portugal vinha assumindo na matéria até este momento, sem que se perceba muito bem qual ou quais as razões ou os motivos que poderão determinar tal alteração.
Ora, à medida que cada novo Estado vai reconhecendo a situação juridicamente irregular que redundou na proclamação unilateral da independência do Kosovo, é um cada vez mais sério e grave precedente que se abre e se vai sedimentando na comunidade internacional – precedente tão mais sério e tão mais grave quanto, doravante, qualquer Estado que conheça problemas de minorias étnicas no seu seio não se poderá dizer livre de conhecer uma situação semelhante. Na Europa, da nossa vizinha Espanha (lembremo-nos do País Basco ou da própria Catalunha, cujo estatuto autonómico começa por proclamar que a Catalunha é uma nação….) ao longínquo Cáucaso (onde a recente crise entre a Geórgia e a Rússia regressada à sua ancestral vocação imperial a propósito das regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia deveria ter servido de alerta suficiente para as lideranças ocidentais), passando pela região central e historicamente complexa dos Balcãs, poucos serão os Estados que se poderão considerar a salvo de idêntica ameaça à sua integridade territorial.
3. Algo de semelhante se passa no plano económico. É comummente aceite que a independência do Kosovo reconhecida e aceite pela comunidade internacional em nada contribuirá para a emergência de mais um Estado europeu viável na conturbada região dos Balcãs nem, tão pouco, contribuirá para acalmar e pacificar uma das regiões da Europa onde mais necessária é uma política de estabilização verdadeiramente assumida e desenvolvida por toda a União Europeia. Condenado a oscilar entre a condição de um protectorado da União Europeia ou um mero prolongamento da Albânia, as estatísticas não mentem e afirmam inequivocamente a inviabilidade do novo Estado, independentemente do número de declarações de reconhecimento de que tenha beneficiado. Em bom rigor, o novo Estado não é capaz, por si só, de afirmar e exercer as funções básicas de soberania que estão associadas ao próprio conceito de Estado. Serão poderes estrangeiros (leia-se – a Europa da União e os europeus) que pagarão a factura da independência, garantirão a integridade do território, armarão o exército e formarão a polícia, institucionalizarão os mecanismos de justiça, numa palavra, garantirão a viabilidade do novo Estado.
4. Analisemos, então, a vertente política do problema – aquela que se afigura mais complexa e mais controvertida. E comecemos por reconhecer que a questão kosovar assume contornos de especial gravidade para a Sérvia. Reconhecer o Kosovo, sobretudo tendo por base uma declaração unilateral de independência juridicamente inválida, significa, objectivamente, hostilizar Belgrado. E nesta fase talvez fosse mais prudente cativar a Sérvia para a causa europeia do que, hostilizando-a, empurrá-la para os braços abertos de uma Rússia desejosa de voltar a exercer a sua influência em regiões cada vez mais alargadas do continente europeu…. Se quisermos ter uma noção do que significa para a Sérvia a independência do Kosovo, admitamos o seguinte exemplo académico: imaginemos que uma qualquer comunidade estrangeira, etnicamente homogénea, vinha Europa-fora instalar-se na zona de Guimarães, berço da nossa nacionalidade e que, ao fim de alguns anos, baseada apenas da sua permanência nessa zona do território nacional e na sua homogeneidade étnica, proclamava ou reivindicava a independência unilateral desse território. Como nos sentiríamos? É assim que os sérvios se sentem e encaram a independência do Kosovo.
Mas este problema do Kosovo, reconheça-se, é em tudo fruto de uma errada política europeia que não soube lidar nem estava preparada para lidar com o derrube do muro de Berlim e a aspiração de muitos Estados do ex-leste europeu em acederam à sua verdadeira e plena independência. Uma das situações onde mais tragicamente essa falta de preparação europeia se revelou foi em todo o processo que conduziu ao desmantelamento da ex-Jugoslávia – com o papel liderante da Alemanha a reconhecer apressadamente novas Repúblicas saídas daquele desmantelamento. Num processo que, visto à distância, só pode envergonhar a Europa, a da União e a outra, porquanto se caracterizou por situações e conflitos dos mais fratricidas que o velho continente conheceu após a segunda guerra mundial, onde não faltaram guerras civis, genocídios e limpezas étnicas, levando à intervenção militar da NATO, sem mandato da ONU, que na altura poucos reclamaram, por se ter entendido que se impunha acabar com as permanentes violações dos direitos humanos por parte dos poderes e dos exércitos e milícias em confronto. Ora, a questão fundamental não se resolveu até hoje, nem é suposto que se resolva doravante, com a multiplicação de entidades políticas estaduais, incapazes de exercerem as competências que supostamente deveriam possuir.
A multiplicação dessas entidades políticas estaduais, numa região com a história dos Balcãs, em lugar de contribuir para a pacificação e a integração das diferentes comunidades que ali se foram formando e localizando, em vez de ajudar a resolver os múltiplos problemas que por ali ainda pairam, corre o risco sério de os potenciar e de reabrir feridas ancestrais que a prudência mandaria que fossem cicatrizadas em vez de reabertas.
4. Por tudo isto enfileirar agora no rol dos que apressadamente quiseram reconhecer o novo Estado kosovar – sem que situação alguma o reclame ou haja sido modificada nos tempos mais recentes e quando tal reconhecimento não foi efectuado no momento em que os Estados mais céleres se apressaram a fazê-lo logo após a respectiva declaração unilateral – não só não contribui politicamente para serenar os ânimos na região dos Balcãs como, sobretudo, pode ser interpretado como um sinal errado do caminho que deve ser seguido e trilhado pela União Europeia face àquela região do continente. Para além de demonstrar, uma vez mais, o quão longe a comunidade internacional ainda se encontra de possuir o estatuto de uma verdadeira comunidade de direito. Para tristeza de todos os que cultivam o direito internacional, acreditando nos seus mecanismos e nas suas regras, e para gáudio dos que não se cansam de proclamar que as relações internacionais continuam a ser, antes de tudo e apesar de tudo, relações de força e de poder.