Ficou o país suspenso em torno da recente decisão do Tribunal Constitucional de julgar inconstitucional a lei de convergência de pensões que ia reduzir em 10% o valor das aposentações da CGA que já foram formadas e se encontram em efectivo pagamento quando, outro assunto igualmente importante, apareceu relegado para o domínio do esquecimento sem ter sido completamente esclarecido ou resolvido. Antecipando em algumas horas as decisões dos juízes do Palácio Ratton, e com isto prestando-lhes um inestimável favor ainda que involuntariamente, o Presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, veio declarar que, terminado este programa de assistência em vigor, Portugal não estaria em condições de se financiar autonomamente nos mercados internacionais e precisaria sempre dum programa cautelar de apoio ao seu financiamento externo. Em síntese, a “saída limpa” e à Irlandesa deveria ter-se por absolutamente excluída. A oposição interna veio, de imediato, exigir que o Primeiro-Ministro revelasse que contactos existem em vista da negociação desse programa cautelar. E Passos Coelho, no Parlamento, declarou solenemente que, de momento, não existem quaisquer negociações formais (sublinho, “formais”) visando a definição daquele programa cautelar. Numa apreciação sumária destas posições poderíamos ser levados a concluir que alguém estaria a faltar à verdade. Por uma vez, porém, creio não ser de excluir a hipótese e a possibilidade de todos estarem a falar verdade.
Mario Draghi limita-se a constatar o óbvio – com taxas de juro a dez anos sustentadamente acima dos 6%, é inviável o financiamento do Estado nos mercados internacionais. É uma taxa quase equivalente ao dobro daquela que é cobrada à Irlanda, a que acresce o facto de, contrariamente ao que acontece com o governo de Dublin, Portugal não ter uma almofada financeira de cerca de 25MM€ e o seu financiamento externo garantido até meados de 2015. Num cenário destes, é absolutamente compreensível que Draghi verbalizasse o óbvio. Portugal terá necessidade de continuar a ser apoiado para lá do fim do actual programa de assistência financeira. O BCE sabe isso e o governo português também o sabe. E sabendo-o é normal que diligencie no sentido de preparar o programa que sucederá ao fim do atual resgate. Quando a oposição reclama informações nesse sentido, está a pedir o óbvio – detalhes sobre um programa que se afigura inevitável e incontornável e que é normal que se comece a negociar ainda que de forma informal. Por isso, também o Primeiro Ministro pode estar a falar verdade quando afirma que, de momento, formalmente, não existem quaisquer negociações para a concepção de um programa cautelar que se suceda ao resgate em curso. Repare-se que, em momento algum, Passos Coelho negou conversações informais ou exploratórias que conduzam ao referido programa cautelar. Por uma vez, todos podem ter falado verdade e o que, aparentemente, seria contraditório, podem ser as duas faces duma mesma moeda.
E essa moeda pode ter por nome programa cautelar – aquela verdadeira incógnita que se sucederá ao programa de ajustamento que se concluirá em meados de 2014 e da qual, convenhamos, pouco ou quase nada se sabe. Pior – realidade que, pela vez primeira, será testada com Portugal. Como, certeiramente, afirmou o Ministro Marques Guedes quando lhe pediram para comentar a saída limpa anunciada por Dublin: o pior é que a partir de agora perderemos quaisquer referencias para negociar um programa cautelar. E como explicitou o Ministro irlandês da Irlanda quando veio recordar que o seu país não quis ficar mais à mercê das inovações (e invenções) das instituições europeias como foi acontecendo ao longo das avaliações do respectivo programa de ajustamento.
De uma coisa poderemos estar certos – não será com o fim do programa de ajustamento se colocará ponto final na era de austeridade que tem castigado o país. Mesmo que nos livremos de um segundo resgate internacional, traduzido na entrega de um envelope financeiro contra o compromisso de um conjunto de medidas de consolidação orçamental, o programa cautela que está ao virar da esquina, envolvendo apenas a União Europeia (através da Comissão Europeia) e o Banco Central Europeu – e já não o Fundo Monetário Internacional – consistirá no estabelecimento de uma rede de proteção que poderá ser accionada se e quando as condições dos mercados financeiros internacionais se mostrarem particularmente adversas, através dum específico programa de compra de dívida pública, mas nunca deixando de estar associado a um forte condicionalismo político e económico-financeiro. Por muitos relógios que se ponham a funcionar, pondo-os a andar de trás para frente e contando o tempo ao contrário, exige-se verdade e transparência em quem tem o encargo de nos governar. E essa verdade e essa transparência mandam e obrigam a não enganar os incautos nem contar a realidade de forma distorcida. Transmitir a ideia que a partida da troika significará o fim da austeridade ou o recuperar integral de uma soberania pretensamente perdida quando nos colocámos nos braços das instituições internacionais, não corresponde à verdade, não é correcto nem é exacto.
Infelizmente, para todos nós, à troika suceder-se-á, na melhor das hipóteses, a assinatura dum programa cautelar que é um mar de interrogações e uma imensa incógnita, que conhecerá as suas especificidades igualmente dramáticas, os seus condicionalismos seguramente recessivos e manter-nos-á num estado de permanente vigilância e observação. Dessa realidade dificilmente escaparemos. E este é um daqueles casos em que a troca de argumentação é, de todo, desnecessária. O tempo, principal e inapelável juiz, se encarregará de confirmar ou infirmar a previsão que aqui deixamos.