Continuam a ser de extrema gravidade as notícias que nos chegam de Kiev. Merecem, por isso, atenção e meditação mais aprofundada e reflexão mais ponderada. O que começou por ser uma reação popular à opção do Presidente Viktor Yanukovytch, de se recusar a assinar o acordo de parceria estratégica oriental com a União Europeia, na Cimeira de Vilnius de final de 2013 – para não hostilizar Putin nem fazer a Rússia perder influência estratégica naquela parte sensível do leste europeu – volveu-se, célere, num protesto inorgânico onde, para além da aproximação à União Europeia, os ucranianos saíram para a rua reclamando, igualmente, uma série de reivindicações de pura política interna, que iam da libertação imediata da antiga primeira-ministra Yulia Timochenko – detida em prisão hospitalar – à demissão imediata do governo liderado por Mykola Azarov.
À voz da rua o poder respondeu como soube – primeiro ignorando as manifestações e as ruas; depois, apovando legislação para as proibir; seguidamente, pretendendo alargar a sua base de apoio com recurso a uma mesa redonda com os três primeiros chefes de Estado da Ucrânia independente – respetivamente Viktor Yushenko, Leonid Kutchma e Leonid Kravchuk; finalmente, recorrendo à razão da força e à mobilização do poderio militar com tanques e militares espalhados pelas principais artérias de Kiev e das principais cidades ucranianas. Debalde – quanto mais o poder foi reagindo e subindo a parada da resposta, mais se fortaleciam os protestos e mais se organizava e reforçava a oposição. E maiores foram sendo as exigências dos manifestantes e mais se estruturavam as suas reclamações.
Numa última cartada, que parece ter tanto de derradeira quanto de desesperada, Yanukovytch ousou fazer o impensável há escassas semanas – ofereceu, literalmente, à oposição, a partilha do poder, disponibilizando-se a ceder aos seus opositores a cabeça do chefe do governo, permitindo àquela indicar tanto o futuro vice-primeiro-ministro como o próprio futuro primeiro-ministro do país.
Vem nos livros e está consagrado no vasto leque de regras não escritas a que obedece a ciência política e o exercício e a manutenção do poder político – quando o titular deste se dispõe a partilhá-lo voluntariamente com adversários, opositores e inimigos, como resultado da força manifestada na rua, esse poder político aproxima-se a passos largos do seu estertor final. Está condenado à queda e à sua substituição. Restará, sempre, em aberto uma questão fundamental – saber que danos e que estragos poderá, ainda, provocar até ao seu abandono e à sua queda definitiva. Abundam, nos anais da história, os exemplos que demonstram à saciedade a regra não escrita acabada de enunciar.
No caso ucraniano, porém, há condicionantes externas que não podem deixar de ser levadas em consideração. A mais importante reside na postura que o Kremlin poderá vir a assumir nesta questão. Putin já deu suficientes sinais de que não está disposto a tolerar a perda da influência russa num território vizinho que se lhe afigura de vital importância estratégica para os interesses económicos russos. Dificilmente condescenderá com um poder em Kiev que privilegie olhar para o ocidente em vez de olhar para leste. Dificilmente aceitará que a zona de influência da União Europeia chegue à sua fronteira ocidental. É verdade que o império soviético implodiu há mais de duas décadas, mas a “doutrina Brejnev”, da soberania limitada, parece ter adquirido um novo protagonista e um novo intérprete. A segunda condicionante será (seria) a reação de Bruxelas. Acontece que, nos últimos dias, a União Europeia, relativamente à questão ucraniana, tem oscilado entre um silêncio ensurdecedor e a simples enunciação de declarações piedosas. A própria Lady Ashton, Alta-Representante para a Política Externa da União Europeia, anda desaparecida (s)em combate. Herman van Rompuy e Durão Barroso devem ter assuntos prioritários e mais urgentes nas suas agendas. E as principais reações de que há nota têm sido tomadas, individualmente, pelos mais importantes Estados da União. Tanto a Alemanha como a França, por exemplo, anunciaram chamar os embaixadores ucranianos acreditados em Berlim e em Paris para lhes transmitirem a sua condenação pela legislação anti-manifestações aprovada em Kiev e pelas reações violentas determinadas pelo governo de Kiev. Ou seja – em matéria de política externa e de segurança, a UE está a léguas do que diz pretender ser e construir. E, uma vez mais, refém das posições – e dos interesses – dos seus maiores Estados. É a manifestação clássica do directório. Daquilo para que, cada vez menos, a UE deveria caminhar mas, infelizmente, daquilo para que cada vez mais parece dirigir-se.
No caso concreto, o défice de União Europeia não deve distrair-nos nem desligar-nos do que se passa na Ucrânia. Que, se não beneficiar da sabedoria dos seus dirigentes, pode estar a um passo da guerra civil. E esse sim – seria mais um problema que a Europa, a da União ou a restante, bem pode dispensar. Porque se todos os conflitos armados são potencialmente dramáticos, nenhum assume o grau de dramatismo e de horror das guerras civis. Basta recordarmo-nos do que aconteceu na ex-Jugoslávia e no processo que ditou a sua implosão, no início dos anos noventa do século passado, para sabermos daquilo que estamos a falar. E se não temos Europa, tenhamos, pelo menos, memória.