Uma das grandes virtualidades que definem a superioridade ética e moral do sistema de governo democrático, por referência aos demais conhecidos, reside justamente no facto de as democracias serem o único dos sistemas de governo conhecidos ou inventados que admitem, aceitam e toleram no seu seio a atividade dos seus próprios adversários e dos seus próprios inimigos. As democracias, e em especial as democracias de matriz ocidental, caracterizam-se, entre outros aspectos, por permitirem e aceitarem que beneficiem das suas regras não só aqueles que as respeitam e as cumprem como, inclusivamente, os que delas se aproveitam para tentarem a sua destruição e ensaiarem o seu desmoronamento. É essa, repete-se, a enorme vantagem ética e moral que as democracias evidenciam relativamente a todos os demais sistemas de governo. Foi uma das razões, seguramente, que ditaram o velho aforismo atribuído a um dos maiores vultos da política do século XX – Winston Churchill, o estadista que venceu a segunda guerra mundial e logo a seguir perdeu as eleições legislativas no Reino Unido – quando afirmou a democracia como o pior dos sistemas existentes…. com exceção de todos os restantes.
O princípio aplica-se a todas as formas de organização política da sociedade que são conhecidas, de forma especial o Estado. Mas, também, para as de âmbito infra-estadual. E também para as de carácter supranacional – e, dentro destas, de forma particular, para a União Europeia. A União Europeia, independentemente da qualificação doutrinária em que se enquadre – e isso não é matéria para ser abordada ou desenvolvida neste local – é, seguramente, uma forma nova, original, de organização política da sociedade, de âmbito supranacional ou, talvez mais corretamente, supraestadual. Mas essa novidade ou originalidade que a caracteriza não lhe retira um pilar fundamental – a União Europeia assenta, entre outros, num pilar democrático, tipificador dos Estados de direito que a integram e que se estende à própria organização. É, por definição e simplificação, uma organização política de âmbito supraestadual, de direito e democrática.
Vem isto, ainda, a propósito do próximo ato eleitoral para o Parlamento Europeu, no próximo dia 25 de maio. E, sobretudo, a propósito de algumas projeções ou estudos de opinião que começam a surgir e que revelam a forte probabilidade de o próximo Parlamento Europeu poder vir a ser integrado por cerca de um terço de eurodeputados que, provenientes tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita, poderão coincidir numa acérrima e violenta crítica do projeto europeu, quando não, mesmo, numa crítica feroz à existência da própria União Europeia. Serão eurodeputados que, legitimamente e beneficiando da democracia que subjaz ao próprio projeto europeu, dela se aproveitarão para questionar, se preciso for, a existência dessa mesma União Europeia. Ironias do sistema…
Decerto – não se questiona a existência dessas propostas nem a sua legitimidade. O problema é outro. O problema fundamental é que a generalidade dessas propostas que começam a ganhar forma cada vez mais sustentada revela uma lacuna incontornável – sabemos, por regra, aquilo que rejeitam e aquilo que recusam. Pouco ou nada sabemos daquilo que propõem, do que sustentam, do modelo alternativo que podem ter para oferecer ao eleitorado. Sabemos que contestam a globalização, a livre circulação de pessoas, o aprofundamento político da União, o reforço das competências das instituições comuns, quiçá mesmo a própria moeda comum europeia. Algumas dessas críticas revestem inequívoca pertinência. A questão, porém, permanece em aberto: tudo em nome de quê? Convenhamos – ainda ninguém no-lo explicou, de forma sistemática, de forma coerente, de forma global. E aí reside a grande debilidade e a grande fraqueza destes movimentos eurocéticos que beneficiam dos tempos de crise para capitalizarem descontentamentos, congregarem desconfianças e, muito provavelmente, somarem (muitos) votos. E este é o verdadeiro drama que as próximas eleições para o Parlamento Europeu podem revelar – um forte descontentamento traduzido ou numa elevada abstenção ou num significativo reforço dos que, beneficiando e aproveitando a matriz democrática da União, apenas se estruturarão em torno de um voto de protesto em movimentos relativamente aos quais sabemos apenas o que não querem mas ignoramos quase por completo aquilo que querem.
Na passada semana, entre nós, tivemos oportunidade de ter um conhecimento prático deste drama – com pompa e circunstância foi anunciada e realizada, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, uma conferência por Bernd Lucke, Professor de Economia na Universidade de Hamburgo e líder do novo partido alemão Alternativa para a Alemanha (AfD). Como era expectável, proliferaram as críticas à União Europeia tal qual a mesma existe. Muitas delas válidas e pertinentes. Assertivas, mesmo. Duas notas, porém, merecem destaque: a assistência conseguiu reunir desde proeminentes figuras da nossa esquerda e extrema-esquerda a relevantes protagonistas da nossa direita e extrema-direita. De permeio, uma mão-cheia de almas intelectualmente honestas, sérias, academicamente relevantes. Unidas, por certo, nas críticas que se escutaram naquela sala. Mas absolutamente incapazes de protagonizarem, pela positiva, uma alternativa credível e politicamente consistente.
Deste drama a União Europeia ainda não se libertou. Nem se afigura plausível que se liberte até ao próximo mês de maio.
Post scriptum – No passado domingo, por iniciativa do Partido do Povo, de extrema-direita, em referendo popular, os suíços votaram a introdução de limitações à entrada e permanência de emigrantes no país, incluindo os provenientes dos Estados da União Europeia, retornando a um sistema de quotas ou contingentes. Desde logo uma clara injustiça – em muitos sectores económicos, têm sido os emigrantes na Suíça os grandes responsáveis pela onda de prosperidade que o país conhece. Se levarmos em consideração que a Confederação Helvética possui vários acordos com a União, nomeadamente em matéria de liberdade de circulação de pessoas, no âmbito de Schengen, teremos que os mesmos deverão ser alterados e renegociados a curto prazo. É, em toda a sua plenitude, o regresso em força de uma clara manifestação nacionalista que vai afastar a Suíça da Europa da União e fechá-la sobre si mesma. É um mau presságio para o que pode estar por diante. Pode ter sido o primeiro passo no sentido do retorno a uma Europa fechada e nacionalista, derrubando e destruindo um caminho lentamente edificado no último meio século. É pena.