A Igreja Católica viveu, neste último fim de semana, um momento simbólico e verda­deiramente histórico: dois Papas (o amado Papa Francisco e o Papa emérito Bento XVI) canonizaram dois antecessores (o Papa mineiro João Paulo II e o bom Papa João XXIII). Nunca, até hoje, a cristandade havia presenciado um momento assim. Um momento histórico, no sentido verdadeiro e literal da palavra.
João Paulo II, para os fiéis crentes, ascende, assim, aos altares com a dignidade de Santo, sobretudo pela sua vida, pelo seu exemplo, pela sua práxis, reforçado tudo isto com os milagres que lhe foram atribuídos. Foi um Papa do nosso tempo – e no nosso tempo foi um notável projetista da paz.
De facto, quando em 16 de Outubro de 1978 o mundo cristão se aperce­beu que saía fumo branco da Ca­pela Sistina, anunci­ando, urbi et orbi, a eleição de um novo Papa – de um Papa eslavo e, sobretudo, de um Papa polaco – para suces­sor de Pedro, nin­guém so­nhou estar a pre­sen­ciar o primeiro passo no sentido de ser ultra­passado o condi­cio­na­lismo bi­polar e a artificial di­visão da Eu­ro­pa em dois blocos emer­gente do mundo da guerra-fria no pós-se­gunda guerra mundial. O certo é que a imagem serena e tutelar, provi­dencial­mente inspiradora, do novo Pontí­fice e a sua permanente dou­tri­na­ção em prol da cons­tru­ção da paz na Eu­ropa e no Mundo viriam a as­sumir-se como ver­da­dei­ra­mente determi­nan­te sem to­dos os acontecimentos que se su­cede­ram na Eu­ropa Central e de Leste no último ano da dé­cada de oi­tenta e nos primeiros anos da dé­cada de no­venta. A Cristandade pas­sava a dis­por de um Pastor que, pela sua vida, era ele pró­prio exemplo con­creto de luta contra a opressão e a sub­missão. Contra o totalitarismo e a tira­nia. Mesmo as­sim, quando a 17 de Agosto de 1980 os operários pola­cos em greve nos es­ta­leiros de Gdansk colo­cavam lado-a-lado, em lugar de desta­que, presidindo às suas mani­festa­ções e às cerimónias reli­gio­sas que celebravam e pre­sos às grades dos portões des­ses mesmos es­talei­ros, a imagem da Virgem Negra de Czesto­chowa, a ban­deira do “Soli­darnosc” e a fotogra­fia de João Paulo II, pou­cos ou ne­nhuns se aper­ce­be­ram que era o Muro de Berlim que aba­nava e que era a sua pri­mei­ra pe­dra que era derru­bada. E, no en­tanto, era o mundo so­cia­lista e a mai­o­ria dos seus funda­men­tos que estavam a ser postos em causa – no cora­ção da Eu­ropa. E nos seus mais pro­fun­dos ali­cerces. Im­po­tentes, sur­pre­endidos, atóni­tos, o Estado que opri­mia, o Partido que li­dera­va e a No­menkla­tura que gover­nava viam operários em luta subs­tituírem a en­to­a­ção d’A In­terna­cio­nal pelo cântico do «Chris­tus vincit…». Iniciava-se um proces­so lento e mo­roso. Mas ine­lutá­vel – porque irrever­sível. Um processo que teve os seus heróis. En­car­rega­dos de honrar a me­mó­ria dos seus mártires – à cabeça dos quais apare­cerá a figura do jo­vem padre Jerzy Po­pieliu­zko, sa­cer­dote católico pró­ximo do “Soli­darnosc”, rap­tado a 19 de Outubro de 1984 tendo o seu cadá­ver sido en­contrado a 30 de Ou­tubro com marcas e si­nais de tortura abomi­ná­vel.
A Europa, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, pre­sen­ciava uma ver­da­deira re­volução ope­rá­ria. Com a particu­laridade de retirar a sua enorme força dos ser­mões pontifi­cais – e da própria comunhão matinal. E tão profunda nos seus anseios e tão forte nas suas ambições que não se limi­ta­ria ao territó­rio po­laco. Lenta e gra­du­al­men­te era a Pala­vra que era es­palhada e divul­gada; era a Mensagem que era lida e trans­mitida – e que poder algum, so­bre­tudo porque er­rático, pôde tra­var – em Berlim, em Praga, em Só­fia, em Bu­dapeste, em Bucareste, em Vil­nius, em Tal­lin, em Riga, em Mos­covo… Um a um, em es­cas­sos meses, os re­gimes políti­cos do velho Leste Europeu ce­deram de forma completa e ca­pitu­laram de forma to­tal ante a ânsia de li­berdade de po­vos mu­dos de­se­jo­sos de faze­rem ouvir a sua voz e de fazerem es­cutar os seus an­seios. Isso mesmo o Papa-mineiro assumiu logo no início do seu pontificado. Escassos dias após as­sumir a cadeira de Pe­dro, quando visitava Assis, a ci­dade de S. Francisco, um dos San­tos patro­nos de Itália, al­guém supli­cava ao pon­tí­fice que não esquecesse a Igreja do Silêncio. A resposta pronta do Bispo de Roma – “já não é a Igreja do Silêncio por­que fala através da minha voz” – mais do que tran­quilizar quem o inter­pelava vol­veu-se numa constante refe­rência do seu pontifi­cado.
Não existe melhor demonstração da atitude do magistério da Igreja católica sob o pon­tifi­cado de João Paulo II do que o seu re­conhecimento simbólico, a 31 de De­zem­bro de 1980, de S. Cirilo e S. Método, ao mesmo tempo que S. Benoît, como santos patro­nos da Europa. Para João Paulo II não podia existir casa eu­ropeia sem as nações e culturas da Eu­ropa central e oriental. A sua pers­pec­tiva paneuropeia, a sua Europa «do Atlân­tico aos Urais», devia ser encarada como uma garantia contra to­das as tentativas de construir uma Eu­ropa oci­dental que excluísse as na­ções esla­vas.
Por isso João Paulo II – pro­clamando o Verbo em Puebla, ex­cla­mando em Roma que «Foi Deus que ven­ceu a Leste!», exor­tando em Santi­ago os Ho­mens a se­rem Ho­mens e os Jovens a serem Jo­vens, ad­vo­gando a Casa Co­mum Europeia em Es­trasbur­go, enun­cian­do a men­sagem da Paz em As­sis, in­citando ao respei­to pe­las Nações em Nova Ior­que ou con­denando o capita­lismo sel­vagem com a mesma vee­mência com que cen­su­rava o mar­xismo em plena Praça da Revolu­ção de Havana e ante um Fidel Castro per­plexo – se­gu­ra­mente que integra o rol dos projetistas da paz. Das vo­zes e da palavra do nosso tempo, foi o protó­tipo e o mode­lo. Sem com­plexos e sem medos; apontou o dedo acu­sador para os erros passa­dos da pró­pria Igreja – as Cru­zadas, o tráfico de es­cravos, o caso Gali­leu, os agra­vos infli­gidos aos não católi­cos, os ódios do pas­sado, a divi­são entre cris­tãos, os erros perante os Hebreus, os con­luios com a Máfia, a margi­nali­zação da mu­lher; alertou os eu­ropeus, sobretudo dos Esta­dos da antiga Eu­ropa so­vié­tica, no de­curso da visita de despedida à sua Polónia amada, para os pe­ri­gos do capita­lismo desenfreado e da es­cravidão do mercado – tão des­respeitado­res da digni­dade humana como a ti­rania de todos os poderes erráticos; mas par­tilhou igual­men­te, em sinal de es­pe­rança, o de­se­jo de que nin­guém se subtraia à tarefa de construir uma Eu­ropa fiel à sua no­bre e fe­cunda tradição civil e espi­ritual. Re­conhe­cendo, de­certo, as inúmeras vezes em que a Europa, no passado, teve de en­fren­tar períodos difíceis de transformação e de crise; mas reco­nhecendo, igualmente, que sem­pre os su­pe­rou ex­traindo uma nova linfa das ines­gotáveis re­servas de ener­gia vital do Evangelho.
Atento às questões do seu tempo, o pontífice não se cansou de meditar e de re­fletir sobre a questão europeia e o papel reservado à Igreja na Europa alargada que já se pers­pectivava. E, na antecâmara da assinatura do tratado constitu­cional, foi a sua voz débil e já enferma que se escutou, instando os Estados membros, que se aprestavam a reunir em conferência intergovernamental, para que o mesmo tratado não esquecesse uma referência ao património cristão europeu, fundador da identidade eu­ro­peia – «de­sejo uma vez mais dirigir-me aos redatores do futuro tratado constitucio­nal euro­peu, para que seja inserida nele uma refe­rência ao pa­trimónio religioso, espe­cial­mente cristão, da Europa». Uma vez mais, a voz limitou-se a ser ouvida mas a não ser escu­tada. E o conselho ignorado.
No seu tempo, que foi o do fim do milénio passado e o do advento de um novo milé­nio, a voz de João Paulo II contou-se entre as que honraram e engrandeceram a galeria dos notáveis pro­jetistas da paz, advogados da causa da unidade europeia. Hoje, foi-lhe conferido lugar de destaque nos altares católicos do mundo. É lá o seu lugar.