Como era expectável há muitas semanas, o Primeiro-Ministro anunciou a saída de Por­tugal do programa de ajustamento de forma dita “limpa”. Dando de barato conside­rarmos que não existem saídas limpas, como já tivemos oportunidade de esclarecer várias vezes, o que foi dito ao país é que, a partir de 17 de maio próximo, ficaremos entregues a nós próprios, à nossa capacidade de nos financiarmos nos mercados inter­nacionais, sem beneficiarmos de qualquer programa cautelar ou rede de proteção que as vozes mais avisadas aconselhavam e defendiam. Para que não haja dúvidas – é muito melhor esta solução do que um novo resgate; talvez a solução de uma linha cau­telar de apoio se mostrasse mais avisada e prudente. São opções.
A comunicação de Pedro Passos Coelho foi muito mais política do que técnica – e por isso deixou sem resposta algumas questões a que era suposto ter respondido. A pri­meira de todas elas – a de esclarecer, cabalmente, se a opção tomada é a que melhor convém a Portugal ou se, pelo contrário, a que nos foi imposta pelas instituições inter­nacionais. Estas estão sedentas de casos de sucesso e focadas nas próximas eleições europeias. Decerto: o clima não aconselha, em nada, ter de negociar um programa cautelar com Portugal, seja lá o que isso seja ou fosse. Para mais, um tal programa te­ria de ser votado, entre outros, no Parlamento alemão, coisa que parece não agradar a ninguém. E nesta fase de eleições europeias, as próprias instituições parece terem ou­tras prioridades nas suas agendas.
Passos Coelho assenta a opção efetuada na verificação de quatro pressupostos: 1) o apoio dos nossos parceiros europeus; 2) a existência de reservas financeiras para um ano, que nos protegem de qualquer perturbação externa; 3) a confiança dos investido­res e os juros da dívida a níveis historicamente baixos; e 4) excedentes externos como não acontecia há décadas. Nenhum destes quarto pressupostos, reconheçamo-lo, nos garante uma condição de segurança a prazo médio. Mas também é verdade que a op­ção agora tomada não faz precludir nem prejudicar, nesse prazo médio, o recurso, se necessário, a uma linha cautelar ou de apoio que agora foi recusada, Dir-se-á – do mal o menos.
Duas situações, porém, de claro recorte político, não podem deixar de ser evidencia­das.
A primeira tem a ver com o facto de, um tanto apressadamente, se estar a querer fazer passar a ideia que, terminado o período de ajustamento, após 17 de maio, Portugal fi­cará definitivamente livre da troika. Era bom, mas não corresponde à verdade. Após 17 de maio Portugal entrará num programa de monitorização pós-troika ou pós programa de ajustamento. Já não trimestralmente mas semestralmente, continuaremos a ser vi­sitados pela troika. E assim sucederá até que tenhamos pago 75% dos 78MM€ que nos foram emprestados. No que ao FMI diz respeito – perante quem começaremos a pagar a nossa dívida a partir de 2015 – serão ainda 6 anos de prestação semestral de contas; no que diz respeito às instituições europeias que nos emprestaram dinheiro, os 75% dos pagamentos estender-se-ão até 2035. Durante mais 20 anos, portanto. Logo, de­sengane-se quem pense que se vai ver livre da troika nos tempos mais próximos. Não vai. Pelo menos durante mais 20 anos, continuaremos a ter de prestar contas a quem nos emprestou dinheiro.
A segunda questão que se impõe evidenciar tem a ver com uma associação implícita ou sub-reptícia que se pretendeu efetuar – e pareceu perpassar ao longo de todo o discurso do Primeiro-Ministro – entre o momento de saída da troika e o conceito de fim da austeridade ou das políticas austeritárias que têm sido seguidas ao longo dos úl­timos anos. Associar ambos os factos é erro grave. Não ser por efeito da saída da troika ou do fim do programa de ajustamento que o laxismo pode voltar às contas públicas e às finanças do Estado.
O DEO – Documento de Estratégia Orçamental – apresentado esta semana é claro a indiciar esse caminho. Por isso escrevi que nos arriscamos a ficar livres da troika mas agrilhoados ao DEO. Decerto – ao não ser consensualizado, sobretudo com o principal partido da oposição, este Documento com uma ambição de vigência até 2018 arrisca-se a ter como prazo de validade apenas o ano de 2015, a vigência da atual governação de turno do país. Nessa data, as novas eleições legislativas dificilmente permitirão que as medidas enunciadas na dita estratégia orçamental de médio prazo do país possa continuar a ser uma realidade. Independentemente das medidas lá previstas, todavia, a vinculação do país ao Tratado orçamental europeu e às suas principais metas (défice estrutural de 0,5% e dívida pública máxima de 60% do PIB a alcançar num prazo de 20 anos) as tais condições que, no Prefácio aos Volume VIII dos seus Roteiros, Cavaco Silva explica que só se poderão alcançar por Portugal, no caso da dívida pública, de forma bastante exigente, tendo em conta que se prevê que, em 2014, a dívida pública seja superior a 126% do PIB. E, pressupondo um crescimento anual do produto nomi­nal de 4% e uma taxa de juro implícita da dívida pública de 4%, para atingir, em 2035, o valor de referência de 60% para o rácio da dívida, seria necessário que o Orçamento registasse, em média, um excedente primário anual de cerca de 3% do PIB. Em 2014, prevê-se que o excedente primário atinja 0,3% do PIB.
Em síntese – consumou-se a saída, impropriamente dita como limpa, de Portugal do seu plano de assistência financeira. Não se consumou, nem de longe nem de perto, a saída da estrada de Damasco que teremos de percorrer por muitas e longas décadas.