Nas duas últimas semanas – desde que se conheceram os resultados das eleições para o Parlamento Europeu – tem grassado uma verdadeira guerra-surda no quadro da União Europeia, que tem tido como principal característica o facto de se travar no secretismo das chancelarias europeias, de forma confidencial, e que tem oposto alguns Estados-Membros da União e, em última instância, o Conselho onde os mesmos estão representados e o Parlamento Europeu. O pretexto para a dissensão tem sido a nomeação do próximo Presidente da Comissão Europeia que deverá entrar em funções no próximo dia 1 de Novembro. Nos termos dos Tratados europeus – na versão saída do Tratado de Lisboa – compete ao Conselho Europeu, por maioria qualificada e levando em conta os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, submeterem a este o nome do candidato a Presidente da Comissão, o qual deve ser confirmado por maioria absoluta (376 votos) dos 751 eurodeputados. Os governos propõem, o Parlamento confirma. Como a maioria dos Estados-Membros da UE é governada por partidos que integram o Partido Popular Europeu e este obteve mais mandatos nas eleições europeias, mantendo-se fiel ao que propôs ao eleitorado antes das eleições europeias, o PPE confirmou que o seu candidato a Presidente da Comissão Europeia seria o ex-Primeiro-Ministro luxemburguês Jean-Claude Juncker. Acontece que, no quadro do Conselho Europeu, e apesar de aí também haver uma maioria de chefes de Estado e de governo pertencentes a esse mesmo PPE, a figura de Juncker está longe de ser consensual. Basicamente é tido como um rosto da Europa do passado, um federalista convicto defensor do reforço do papel da Comissão Europeia e, sobretudo, um crítico da liderança desempenhada pela Chanceler Angela Merkel no atual quadro europeu. Muito devido a isso, nas duas últimas semanas, Merkel disse quase tudo e o seu contrário relativamente à candidatura de Juncker. Começou por se colar a Cameron e às críticas inglesas à eventual nomeação de Juncker – que chegaram ao ponto de ameaçar com a realização de um referendo visando a saída do Reino Unido da União – para, presa aos compromissos assumidos pela CDU no quadro do PPE, declarar o seu apoio ao luxemburguês. Mas a crítica a ostensiva a Juncker não provém apenas de Londres. A Holanda, a Suécia, a Dinamarca, a Hungria e a Itália também já deixaram indícios do desconforto que lhes causa a figura de Jean-Claude Juncker. E a traduzirem em votos esse desconforto, no seio do Conselho Europeu, estaria formada uma minoria de bloqueio que impediria a sua apresentação ao Parlamento Europeu como candidato a Presidente da Comissão Europeia.
De todas as críticas feitas, é claramente a que vem de Londres que mais peso pode vir a adquirir no plano da União Europeia. Nunca, como neste caso, o Reino Unido levou tão longe a sua ameaça e a sua pressão sobre a União Europeia e os restantes Estados-Membros. Quando Cameron ameaça antecipar o referendo prometido para a próxima legislatura sobre a permanência do Reino Unido na União, está a esticar a corda até limites nunca antes vistos. Merkel, no fundo, agradece o favor que Cameron lhe está a fazer. A Chanceler sabe que uma Comissão Europeia liderada por Juncker, admirador confesso do seu antecessor Helmut Kohl e rosto sobrante dos tempos áureos do projeto europeu, nada teria a ver com o estilo de uma Comissão Europeia por si domesticada liderada por Durão Barroso. Nessa medida, a postura de Londres serve na perfeição os seus intentos e a sua agenda. Juncker seria, ninguém o pode duvidar, obstáculo de monta à prossecução da política de germanização da UE que Merkel tem levado a cabo.
A guerra-surda em curso foi, na última semana, denunciada com toda a clareza por um ex-Primeiro-Ministro francês, o socialista Michel Rocard, que num artigo de opinião publicado simultaneamente em França e no Reino Unido, no Le Monde e no The Guardian, foi sugestivamente intitulado “Amigos Ingleses, saiam da União Europeia mas não a matem”. Aí, o socialista francês, politicamente incorreto como sempre foi seu hábito, não se exime a evidenciar a extensa lista de “males” que os britânicos já fizeram às Comunidades e à UE para concluir: se quiserem sair, saiam; mas não permaneçam para evitar o aprofundamento da União Europeia, para a restringirem apenas à sua vertente económica, para forçarem à renacionalização de políticas já comunitarizadas. E, sobretudo, para impedirem a nomeação de Juncker para a Presidência da Comissão. Apesar de reafirmar a sua condição de socialista, e de reiterar o seu gosto pessoal em ver Schulz à frente do executivo de Bruxelas, Rocard conclui: as urnas falaram, o PPE venceu as eleições e Jean-Claude Juncker deve assumir a presidência da Comissão Europeia. Sob pena, permitimo-nos acrescentar, de se transformar o ato eleitoral para o Parlamento Europeu num grande logro ou numa grande fraude.
A palavra final reside, pois, no Conselho Europeu – naquilo que os chefes de Estado e de governo vierem a decidir, na proposta de nome que vierem a apresentar ao Parlamento Europeu. No entretanto e até ao momento da decisão final, a guerra-surda irá prosseguir. Na certeza de que subjacente à mesma irão estar as duas típicas e clássicas visões do processo europeu: a visão de pendor intergovernamental, que pretende centrar o poder da União no Conselho Europeu, nos chefes de Estado e de governo; e a visão de feição mais supranacional, por alguns simplisticamente apodada de “federal”, que privilegia um modelo de integração centrado em torno da Comissão Europeia. A novela em torno da escolha de Jean-Claude Juncker para Presidente da Comissão Europeia não é, senão, mais um episódio da tensão permanente que opõe estes dois modelos para o futuro do projeto europeu.