Na passada semana, na última terça-feira, Sua Santidade o Papa Francisco agendou uma visita às instituições europeias (União Europeia e Conselho da Europa) e, nos dias seguintes, à Turquia. Ambos os acontecimentos mereceriam uma análise individualizada. Vamo-nos ficar, neste texto, apenas pelo primeiro dos acontecimentos mencionados.
Em Estrasburgo, ante os eurodeputados, o Santo Padre regressou a um púlpito onde, há 26 anos, o Papa-mineiro, São João Paulo II, teve oportunidade de meditar e refletir sobre um mundo que se encontrava em acelerado estado de transformação, dada a proximidade do ruir do Muro de Berlim, o desmoronamento do império soviético e todas as transformações que ambos os acontecimentos trouxeram para a Europa e para o Mundo. Já aí, já então, o sucessor de Pedro fez um claro chamamento da Europa aos seus valores, apelou aos princípios que inspiraram os pais fundadores, levantou a sua voz contra o que já se anunciava: o triunfo do ter sobre o ser, numa sociedade cada vez mais materialista, cada vez menos solidária, cada vez mais tributária dum capitalismo sem rosto que, lenta mas inexoravelmente, já ia impondo as suas regras, traçando o seu desígnio, afirmando a sua desumanidade.
Um quarto de século depois, no mesmo lugar e perante idêntica plateia, o Papa Francisco, o Pontífice que a Providência foi buscar “lá longe, aos confins do Mundo”, seguiu a linha de raciocínio do seu predecessor – e exortou uma Europa “envelhecida”, que não se eximiu a comparar a uma “avó” cansada, a não restringir as suas preocupações às questões económicas e financeiras. Curiosamente, foi um Papa vindo da América Latina que veio interpelar o “velho continente” a (voltar a) ser uma “referência para a humanidade”, um farol de esperança para o Mundo.
E, numa altura em que as questões da imigração ganham acrescido peso político, erigindo-se em pretexto público para David Cameron acenar com a saída do Reino Unido da União, foi justamente o exemplo dado por Sua Santidade para ilustrar o seu discurso, instando e convidando os dirigentes europeus a valorizarem a dignidade dos idosos, dos trabalhadores, dos pobres, das minorias perseguidas e sobretudo dos imigrantes, nomeadamente daqueles que, quase todas as semanas, demandam a ilha italiana de Lampedusa, oriundos do norte de África. “Não se pode tolerar que o mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério” – proclamou – porque “chegou o momento de abandonar a ideia de uma Europa assustada e curvada sobre si própria”; e sintetizou o seu pensamento com esta afirmação lapidar: “chegou a hora de construir juntos a Europa que gira, não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana”.
Curiosamente, viria do socialista alemão e Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, a principal defesa da deslocação do Sumo Pontífice ao europarlamento – confrontado com as críticas extremistas de que tal deslocação punha em causa os princípios de laicidade da Assembleia e da própria União Europeia, Schulz sustentaria que a visita do Papa não foi “um ataque contra a laicidade”, mas sim uma tentativa “de retirar a Europa do seu torpor”.
Ora, no caso concreto, é justamente isto que interessa reter – a tentativa de retirar a Europa do seu torpor. A que, acrescentaria, se soma a necessidade de essa mesma Europa se reencontrar com os seus valores, os seus princípios e a sua matriz fundadora, que o mesmo é dizer retornar aos ideais, à palavra e ao pensamento dos seus pais fundadores.
Decerto – a situação atual da Europa tem muito pouco ou quase nada a ver com aquele cenário de guerra, de destruição e de devastação que inspirou os pais fundadores, guiou os projetistas da paz e permitiu que se erguesse o projeto comunitário europeu. Mas, assumida a divergência e levadas em consideração as devidas diferenças, talvez no fundo cheguemos à conclusão que os problemas que estão em cima da mesa são os mesmos ou muito parecidos, os desafios semelhantes ou muito idênticos: é da garantia da paz que se cuida, é da dignidade humana que se trata, é da justa repartição do rendimento que urge.