A Europa, na pátria europeia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, que ousou rebelar-se contra o monarca absoluto em nome de princípios que, mais tarde, a República viria a consagrar sob a trilogia “liberdade – igualdade – fraternidade”, voltou a ter de se deparar com a barbárie e o terror do terrorismo profissional, altamente treinado e preparado, que se serve e recorre ao pretexto de Deus para causar a morte, a destruição e a barbárie. Foi a oportunidade para recordarmos Madrid (Atocha) em 2004 e Londres em 2005. Para já não falarmos em Nova Iorque em 2001.
Desta feita a trincheira do combate foi um rico e central bairro parisiense e as vítimas inocentes jornalistas que nunca usaram outra arma que não as suas canetas e pincéis para expressarem o seu pensamento. Foi quanto bastou para perderem as suas vidas.
Já tive oportunidade de afirmar que este exemplo da barbárie coloca à Europa cinco dilemas e um problema. Os dilemas serão não permitir que se confunda o islamismo com o terrorismo; não permitir que germine a islamofobia; saber resistir e não ceder à chantagem do medo; saber conciliar os valores da liberdade com as exigências da segurança; saber integrar e conviver com “o outro”, o que não lhe é igual.
Mas para além destes dilemas, existe igualmente, um não pequeno problema com que a Europa terá de se debater: haverá hoje líderes e lideranças na Europa da União à altura dos dilemas que se lhe colocam?
Assistindo aos primeiros desenvolvimentos tomados a propósito da mega manifestação de Paris, assaltam-nos as maiores dúvidas sobre a forma como a União se propõe combater estas novas manifestações de terrorismo internacional.
Em primeiro lugar, o timing. Não é, nem agora nem nunca, recomendável quaisquer alterações legislativas efectuadas sob o condicionamento emocional que os acontecimentos de Paris provocaram. É cedo, é precoce, é prematuro e é precipitado.
Depois, o conteúdo. As notícias que nos chegam dão conta que o núcleo duro dos Ministros do Interior da União Europeia (da qual a senhora Ministra da Administração Interna portuguesa se excluiu por, à mesma hora que os seus colegas europeus se reuniam em Paris para debater como melhor combater as novas formas de terrorismo internacional, ter optado por assistir à cerimónia de tomada de posse dos novos órgãos sociais da Liga dos Bombeiros Portugueses; opções e prioridades…..) optará por sugerir alterações aos Acordos de Schengen como prioridade no combate ao terrorismo. Também aqui se nos afigura que as prioridades poderão estar invertidas. Já houve, seguramente, quem reparasse que, com Schengen ou sem Schengen, a tragédia de Paris teria sempre acontecido. E teria acontecido porquanto os seus autores foram cidadãos franceses, relativamente aos quais os Acordos de Schengen pouco ou nada interferiram. Já, pelo contrário, introduzir restrições a uma das liberdades fundamentais em que assenta o projeto europeu – a liberdade de circulação de pessoas – significa uma regressão e um revés nesse mesmo projeto que o podem afetar de forma definitiva.
Significa isto que, do nosso ponto de vista, apenas uma cooperação muito estreita e muito intensa entre os Estados europeus poderá evitar novas tragédias deste calibre, tal o grau de profissionalismo e preparação que os novos inimigos da nossa civilização e da nossa forma de viver lograram alcançar. Sobretudo porque, nos dias que passam, os criminosos são cidadãos das sociedades que atacam e já não os estrangeiros que vêm de fora e regressam a casa depois do “serviço” feito. Como também já tive oportunidade de afirmar e escrever algures, trata-se de um combate desigual, de um novo tipo de guerra, em que os contendores têm de usar armas desiguais e as vítimas se vêem na contingência de não poderem responder de igual para igual para não descerem ao nível da barbárie dos seus algozes. Faz lembrar um jogo de xadrez em que quem joga com as peças brancas é sempre o mesmo jogador o qual, para além dessa vantagem, não tem de respeitar as regras do jogo. Num combate tão desigual, é fácil antecipar para que lado penderão os pratos da balança. Essa tendência apenas se evitará, repetimos, com o reforço da integração e da cooperação policial, de serviços de segurança e de troca de informações. Não se alcançará, seguramente, por via da regressão e da limitação de liberdades já consagradas.
Hoje por hoje, todavia, quando um ruidoso grito “Je suis Charlie” une e irmana a generalidade dos Europeus em torno da condenação da barbárie terrorista, é preciso reconhecer que é um apelo implícito aos valores europeus que lhe está subjacente. E, sobretudo e a todo o custo, evitar cometer (mais) erros que possam ser politicamente aproveitados em benefício dos diferentes extremismos que não deixarão nem perderão ensejo de lançar mais algumas sementes de desesperança nesta Europa já tão causticada e tão sofrida.