1. E de repente a comunidade internacional foi agitada nas últimas quarenta e oito horas com a origem mais improvável que imaginar se poderia – o Vaticano, a Basílica de São Pedro, uma homilia do Papa Francisco. Em Eucaristia proferida em celebração destinada a evocar a vida do místico arménio do século X, São Gregório de Narek, que foi declarado doutor da Igreja Católica, e na presença do Presidente da República da Arménia, Serzh Sargsyan, elencando as grandes tragédias do recém-acabado século XX, Francisco referiu-se à primeira das três tragédias que abalaram esse século: o assassinato das centenas de milhar de arménios, maioritariamente cristãos, às mãos do Império Otomano. Assassinato que terá atingido cerca de milhão e meio de arménios e pelo qual a generalidade dos historiadores não hesita em responsabilizar os turcos que integravam aquela entidade política imperial. Os factos passaram-se no decorrer da primeira guerra mundial, pelos anos de 1915-1917, e revelaram, inquestionavelmente, um desejo incontido de eliminar ou banir um povo inteiro, uma população inteira. Numa palavra – um genocídio. Com mais rigor e precisão, o primeiro genocídio do século XX. Foi isto que Francisco verbalizou e, implicitamente, denunciou, antes de enumerar os restantes genocídios registados naquele século e que ocorreram no Camboja, no Rwanda, no Burundi e na Bósnia-Herzgovina. Sem esquecer, obviamente, os crimes contra a humanidade perpetrados pelos regimes nazi e estalinista.
Era expectável que o regime turco, em clara rota de afastamento dos valores ocidentais, e da própria União Europeia, reagisse às declarações de Sua Santidade. E a reação não se fez esperar – escassas horas após a referida homilia papal, o Embaixador do Vaticano na Turquia foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Ancara e foi-lhe transmitido que o Governo turco “lamentava profundamente” o que acontecera e ficara “desapontado” com as palavras do Papa, que foi acusado de ter criado um “problema de confiança” entre a Turquia e o Vaticano. E o Embaixador turco na Santa Sé, chamado de imediato a Ancara. Não é provável que regresse nos tempos mais próximos.
Esta não foi, todavia, a primeira vez que a Igreja de Roma assumiu os factos ocorridos como um verdadeiro “genocídio”. Nos idos de 2001, num documento que se manteve confidencial, São João Paulo II utilizou as mesmas palavras e idêntica qualificação do martírio imposto aos cristãos arménios. Francisco, porém, foi mais longe – e numa postura de autenticidade relembrou publicamente e pela sua própria voz, o primeiro genocídio do século XX porque, disse, é preciso fazer estes exercícios de memória para se conseguir erradicar o mal das nossas sociedades. Limitou-se, Sua Santidade, nesta matéria, a seguir os ensinamentos do Papa-mineiro e a reconhecer publicamente o que a generalidade dos historiadores e investigadores não turcos e países como a Argentina, a Bélgica, o Canadá, a França, a Itália, a Rússia e o Uruguai já reconheceram há muito. Do outro lado da barricada, do lado do politicamente correto, aliados políticos da Turquia – com os EUA à cabeça – ainda não ousaram dar esse passo no sentido da autenticidade na política internacional. Portugal, como seria mais ou menos óbvio, continua a contar-se neste segundo grupo. De espantar seria o contrário.
2. De vez em quando a política internacional traz-nos algumas notícias positivas. Desta feita, contrariando o adágio segundo o qual “de Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”, chegou uma boa carta. Uma carta que trazia boas notícias. Não chegou a Portugal mas chegou a Nova Iorque, aos competentes serviços da ONU. Dizia a missiva que o governo de Madrid retirava as objeções que havia formulado em 2013, num diferendo que remontava a 2009, quando Portugal apresentou a proposta de extensão da sua plataforma continental das 200 para as 350 milhas, permitindo o alargamento da Zona Económica Exclusiva portuguesa. Entendia o governo de Madrid que as Selvagens não eram verdadeiras ilhas mas rochedos, pelo que não se lhes deviam aplicar as regras relativas à contagem daquela plataforma. Com esta atitude, fica ultrapassado o principal obstáculo ao reconhecimento da pretensão portuguesa por parte das Nações Unidas que, a verificar-se, permitirá a Portugal usufruir da maior plataforma continental europeia e uma das maiores do mundo.
Perguntar-se-á: o que terá levado o governo de Madrid a recuar na sua posição de oposição inicial à pretensão portuguesa? Nada ainda foi revelado a esse respeito a não ser o conhecimento de que a mudança de posição espanhola se seguiu ao facto de, há cerca de duas semanas, Portugal ter informado a mesma ONU de que não formulava quaisquer objeções a que a plataforma continental espanhola fosse alargada para oeste das Ilhas Canárias, conforme pretende o governo de Rajoy.
Realpolitik oblige….