Logo no início do seu pontificado, escassos dias após assumir a cadeira de Pe­dro, quando visitava Assis, a cidade de S. Francisco, um dos Santos patro­nos de Itália, al­guém supli­cou a São João Paulo II, pon­tífice recém-eleito, que não esquecesse a Igreja do Silêncio, referindo-se à cristandade que era oprimida no exercício dos seus direitos fundamentais, para lá da cortina de ferro. A resposta veio pronta por parte do Bispo de Roma: “já não é a Igreja do Silêncio porque fala através da minha voz”; estava dado o mote que, mais do que tranquilizar quem inter­pelava o novo Papa, vol­veu–se numa constante referência do seu pontificado.
Vale a pena recordar este episódio singelo, vivido nos finais dos anos setenta do século passado, já lá vão quase quarenta anos, para percebermos o drama e o desafio com que se defronta, atualmente, o Papa Francisco – também ele confrontado com a emergência de uma nova “Igreja do Silêncio” que começa a nascer fruto do reordenamento geopolítico que ganha forma na região do Oriente Médio e se estende pelo norte do continente africano, tendo destruído as tradicionais formas de organização política que enquadravam as sociedades locais, dando lugar ao completo vazio de qualquer poder político estabilizado e propiciando o surgimento de fenómenos novos de dominação e imposição da barbárie, do terror e do caos. São estes fenómenos novos, e até agora praticamente desconhecidos em tão grande amplitude territorial, que têm evidenciado as mais bárbaras, trágicas e selváticas práticas de dominação e submissão misturando crenças religiosas, rivalidades étnicas e brutais doses de terror institucionalizado. De entre as vítimas privilegiadas destes novos poderes emergentes têm-se contado várias comunidades cristãs que têm sofrido na pele os horrores dos massacres que são divulgados como infames instrumentos de propaganda e de divulgação.
Constituem a nova “Igreja do Silêncio”, cuja condição e sofrimento tem sido continuadamente denunciado pelo Papa Francisco – que não se tem cansado de pedir as orações dos cristãos, de todos os credos e confissões, por aqueles que, nos nossos dias, constituem os novos mártires deste novo século. Execuções sumárias, fuzilamentos, decapitações, emulações – de tudo um pouco tem havido notícia. E perante estas novas manifestações da barbárie, tem sido a palavra do Pontífice a que mais se tem escutado na denúncia desta tragédia que ocorre a poucas centenas de quilómetros da velha Europa que, quando interpelada a pronunciar-se, pouco mais faz, ou pode fazer, do que condenar a violência emergente e reconhecer a sua falta de meios para poder ter uma intervenção mais ativa. Resta-nos, por isso, a esperança que, uma vez mais a palavra possa demonstrar a sua força e impor-se à própria realidade. Um pouco à semelhança do que aconteceu no final do século passado, com a contribuição dada por São João Paulo II para a queda dos poderes erráticos que se acobertavam para lá do Muro da vergonha que dividia a própria Europa e também silenciava as vozes contrárias e que se lhes opunham, acantonando-as nos vários Gulags que a História não deixou de registar para memória futura.
Decerto – ajudaria bastante, e não deixaria de diminuir o tempo e a duração do sofrimento de muitos que padecem e sofrem a errância dos poderes emergentes, que a palavra pontifícia pudesse ser acompanhada de ações concretas desenvolvidas pela comunidade internacional através das suas organizações de referência. Neste contexto, é sempre para a Organização das Nações Unidas, e para as suas diversas agências especializadas, que se viram os primeiros olhares e que se lançam as primeiras esperanças. Infelizmente, por regra, têm sido esperanças em vão. O que, no limite, nos poderá levar a equacionar uma outra realidade: a da falta de adequação entre o mundo dos nossos dias e a organização global que é suposto representar e simbolizar a própria comunidade internacional. A desadequação compreende-se e percebe-se: as Nações Unidas são, ainda hoje, a organização sobrante dum mundo que já não existe, de um mundo que saiu da segunda guerra mundial, mas que já tem pouco ou nada a ver com o mundo dos nossos dias, com o mundo em que vivemos. O mundo evoluiu, a comunidade internacional transformou-se, a relação de forças nele existente foi profundamente alterada – mas a sua organização de referência global permaneceu, imune a qualquer transformação, imóvel e imutável. E por isso o Conselho de Segurança continua a ser a sua sede privilegiada do poder; mas o Conselho Económico e Social permanece por institucionalizar e o Conselho das Religiões não passa de um anseio, num mundo onde o papel e o diálogo entre as diferentes religiões e as diferentes Igrejas se afigura, a cada dia que passa, uma necessidade cada vez mais premente.
No entretanto, é a palavra do Bispo de Roma que vamos escutando na denúncia das atrocidades que vão sendo sofridas por todos aqueles que constituem esta nova “Igreja do Silêncio” e por ela se vão sacrificando não raro à custa da própria vida – aguardando, pacientemente, que os detentores do verdadeiro poder político, legítimo e legitimado, se lembrem das responsabilidades que lhes incumbem na contribuição para o (re)estabelecimento de uma ordem internacional digna desse mesmo nome.