Cada tempo histórico tem tido, a partir do início do século passado, a sua organização internacional de referência, em torno da qual é suposto a comunidade internacional se estruturar e nela se rever. No início do século XX, após a primeira grande guerra, esse papel foi desempenhado pela Sociedade das Nações. Indissociavelmente ligada ao Tratado de Versalhes, que os vencedores da guerra impuseram à Alemanha derrotada, a origem da organização de Genebra está umbilicadamente ao poder exercido pelos vencedores da guerra; paradoxalmente, os EUA que a idealizaram quando o Presidente Wilson preconizou os célebres “catorze pontos de Wilson” como as condições mínimas para o restabelecimento da paz mundial, acabariam por nunca ratificar o Tratado de Versalhes e, consequentemente, o país nunca aderiu à organização.
Também por este facto – mas não apenas por este facto – a eclosão da segunda guerra mundial – esse conflito que Adriano Moreira nunca se cansa de qualificar como mundial pelas suas consequências mas exclusivamente europeu pelas suas causas – revelaria todas as insuficiências e debilidades da SDN para evitar o conflito, mostrando-se incapaz de travar o movimento ascendente das forças do mal que conduziram o mundo para a catástrofe de 1939-1945. E o final do conflito veria nascer a nova organização da nova ordem internacional que se começava a estruturar: a Conferência de São Francisco determinaria o nascimento da Organização das Nações Unidas. Uma vez mais, eram os vencedores de um conflito militar – a segunda guerra mundial – a ditar a sua ordem e a impor a sua lei, reservando para si um papel determinante no principal órgão da entidade nascente – o Conselho de Segurança. Se é verdade que os cinco grandes, sozinhos, não conseguem fazer prevalecer a sua vontade contra os restantes membros do Conselho, a verdade é que nenhuma resolução ou deliberação deste pode ser aprovada com o voto contra de qualquer um desses cinco Estados que, ademais, têm o estatuto de membros permanentes. EUA, Reino Unido, França, China e Rússia são, assim, os aristocratas de um modelo institucional com elevados défices de democracia.
O certo é que a ordem internacional do pós-guerra já ruiu há mais de 25 anos, quando o Muro de Berlim foi derrubado mas, pese embora a emergência de novas organizações mais ou menos institucionalizadas – de que o G20 é o melhor exemplo – a organização de Nova Iorque continua a ser aquela onde é possível “todos encontrarem-se com todos” e, nessa medida, a desempenhar um papel determinante nesta nova ordem internacional que alguns qualificam como uma autêntica “desordem madura”. O problema está em que o mundo mudou mas a ONU cristalizou e não acompanhou essa mudança e essa evolução. Desde logo, é de sobremaneira questionável que os cinco grandes aristocratas que “venceram” a segunda guerra mundial sejam, ainda hoje, as potências de referência no mundo atual. Se já o era na data de fundação da ONU – desde logo com a inclusão da França nesse selecto grupo, o que apenas se compreende por deferência dos demais e pela ascendência protagonizada por De Gaulle – por maioria de razão o é ainda mais nos dias de hoje. Por outro lado, parece inquestionável que novas potências emergiram nos setenta anos subsequentes ao fim do conflito e, legitimamente, podem aspirar a um lugar no Conselho de Segurança. A Alemanha, a Índia, o Japão, o Brasil – serão, apenas, alguns, talvez os principais, dos exemplos que se podem mencionar. O caso da União Europeia não pode, evidentemente, deixar de ser referido, embora seja pacífico que a Europa da União ainda não encontrou suficiente grau de integração política que lhe permita reclamar um lugar no Conselho de Segurança. Verifica-se, assim, que a organização que aspira a ser a referência da ordem internacional, e que em determinado momento o foi efetivamente, denota, atualmente profundo desfasamento relativamente a essa mesma ordem internacional.
Mas esse desfasamento não se faz sentir, apenas, ao nível da sua estrutura institucional ou dos Estados. Revela-se, igualmente, no acervo de competências que a organização tem o dever de chamar a si. Novas competências que emergem de novos problemas que existem atualmente e não existiam nos meados do século passado. A lista é significativa. Creio devermo-nos centrar essencialmente nas questões humanitárias e do novo direito internacional humanitário que, muito lentamente, se vai começando a construir para dar resposta a alguns dos mais dramáticos problemas que o mundo dos nossos dias conhece. Influenciada pelas imagens dramáticas que nas últimas semanas nos têm entrado pelas nossas casas adentro, a comunidade internacional clama em silêncio por uma solução humanista e personalista que ponha fim ao drama que apoquenta qualquer consciência bem formada. E que interpela essa mesma comunidade internacional. Ver este drama como um problema exclusivo dos Estados de destino ou do que resta dos Estados de origem destes migrantes é um erro tremendo. Porque atrasará a sua resolução e só fará aumentar o drama. Nos últimos dias, por sinal, vieram da ex-Secretária de Estado norte-americana e candidata democrata à presidência dos EUA, Hillary Clinton, fruto seguramente da sua experiência em política internacional, as palavras mais sábias e mais ponderadas sobre o tema: o drama que se vive é um problema de toda a comunidade internacional e toda a comunidade internacional, EUA incluídos, deve ser convocada para a sua resolução. Ora, essa convocatória não pode passar ao lado da organização de referência da comunidade internacional, da Organização das Nações Unidas. Mas isso dificilmente se conseguirá enquanto a organização não for objeto da reforma que se impõe e que se exige. Para melhor responder aos desafios do mundo contemporâneo e dos dias que passam. Sem esse trabalho, dificilmente a tarefa terá êxito. Nele se deveriam concitar os esforços da comunidade internacional em mudança acelerada e acentuada.