O serviço público de televisão retransmitiu, no final da passada semana, um documentário sobre a situação que se vive em Alepo, a segunda cidade síria mas também a mais populosa. As imagens que se viram foram, inquestionavelmente, aterradoras e insusceptíveis de qualquer descrição. O grau de destruição material aproxima-se do completo e absoluto; as infraestruturas estão totalmente destruídas; serviços médicos são eufemismo; o grau de sofrimento humano que as imagens reportaram é completamente intolerável e impossível de imaginar. Tudo isto como consequência de uma das mais violentas e sanguinárias guerras civis de que há memória nos tempos modernos. É bem verdade que, de entre todas as guerras, as civis, que dilaceram nações, separam famílias, opõem irmãos, viram pais contra filhos são, de longe, as mais terríveis e as mais perversas. E quando, como neste caso, as guerras civis são temperadas por condimentos religiosos, a violência é, por regra, exponenciada ao inimaginável.
A situação, porém, afigura-se como mais complexa porquanto, no caso sírio, subjacente à dramática situação humanitária, encontra-se uma complicada situação política que opõe os partidários do ditador Assad aos rebeldes maioritariamente associados ao Estado Livre da Síria, que não conseguem ilidir completamente a presunção de suspeitas simpatias para com os partidários do Estado Livre do Iraque e do Levante, vulgo daesh. De permeio, o envolvimento nem sempre concertado das grandes potências e das potências regionais – nomeadamente a Rússia, os EUA, a França e a Turquia – longe de facilitar a leitura dos acontecimentos, contribui para a tornar mais complexa e mais difícil de fazer.
Deste rol de interferências no caso sírio, nota-se com acentuada preocupação a ausência da União Europeia – não pelo facto de não se encontrar no terreno participando ativamente nos confrontos que se travam em solo sírio, mas sobretudo pelo facto maior de não se conseguir divisar uma política coerente e consistente face a esse mesmo conflito. Conflito que, paradoxalmente, acaba por estar na origem da maior crise humanitária com que a União Europeia se defronta desde a sua criação – a crise dos refugiados, predominantemente sírios, a que se acabam por somar desvalidos dos outros conflitos que vão acontecendo no norte de África e no oriente médio, do Iraque ao Afeganistão, da Líbia à Etiópia e ao Sudão.
Esta escalada de violência sem sentido deveria ser suficiente para interpelar a consciência da sociedade internacional, neste mundo que busca desesperadamente uma nova ordem que permita a sua compreensão e necessária estabilidade, levando-a a uma intervenção coletiva que, em nome de valores associados ao próprio direito natural, permitisse colocar um ponto final nesta chacina em crescendo que parece não conhecer qualquer fim.
E sim, é de facto a emergência de um novo, e ainda difuso, direito internacional humanitário e de ingerência que sustentamos, em nome de princípios e valores maiores, associados à própria natureza da humanidade. Partindo do princípio que todas as situações que denunciem desrespeito pelos valores fundamentais da humanidade, deverão ser passíveis de uma intervenção de âmbito humanitário que possa passar por cima de conceitos anquilosados no mundo de hoje porque herdados de um mundo de soberanias fechadas que já não existe. Um direito internacional humanitário e de ingerência que seja legitimado pela ONU, a única instância internacional habilitada a legitimar o emprego da força armada e a declará-la legal. Porque existem valores que são comuns à humanidade e devem ser defendidos à escala global, onde e contra quem quer que os ameace.
As imagens que vimos, e que o mundo viu, do que está a acontecer em Alepo é apenas uma – quiçá das mais chocantes – manifestação do que vai acontecendo no que outrora era o Estado sírio. Revelando uma forma de violência que deveria convocar a sociedade internacional para uma atuação concertada e rápida que se mobilizasse para colocar um ponto final na chacina. No tal mundo ideal, naquele mundo de que ainda nos encontramos muito distantes, a tal sociedade internacional já se tinha mobilizado e atuado de forma implacável para parar o terror que se vive na Síria. Infelizmente, encontramo-nos muito longe desse momento.
Numa altura em que a ONU se apresta a mudar de Secretário-Geral, e em que se espera que Portugal possa ter uma palavra a dizer nessa matéria – posto que oferece à Organização, incomparavelmente, o melhor candidato que a mesma poderia ter ao exercício do cargo [António Guterres] – a consagração e a afirmação deste direito internacional humanitário e de ingerência poderia vir a ser inestimável serviço prestado à própria organização internacional.
Mais do que um desejo, é uma esperança. A nossa esperança. Para evitar que a vítimas de Alepo, e de todas as demais Alepos deste mundo, possam ter sucumbido em vão.