Durante muitos anos, aos meus alunos de Ciência Política, recomendei a leitura do livro “Animal Farm” (“O triunfo dos porcos” na tradução portuguesa de duvidoso gosto que ficou consagrada na nossa literatura), uma das mais emblemáticas e clássicas obras de George Orwell, publicada em 1945, logo a seguir ao fim da segunda guerra mundial, onde se criticava, de forma satírica mas implacável, o caminho e as opções do socialismo dito científico. Numa quinta perdida nos confins da Grã-Bretanha, os animais que a habitavam juntaram-se para expulsar o proprietário e os tratadores dos bichos que ali existiam, assumindo eles, os animais, o poder na quinta. Todos os animais. Todos até àquele fatídico dia em que os bichos acordaram e deram com um enorme mandamento escrito na parede do celeiro onde faziam os seus plenários: onde estava escrito “todos os animais são iguais”, numa manhã, pelo alvor da bicharada, apareceu acrescentada a expressão “mas uns são mais iguais que outros”. Ou seja, “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros”. E a partir desse dia, os porcos tomaram o poder na quinta, ficaram a mandar no resto da bicharada e acabaram por se revelar mais tiranos e mais déspotas do que os humanos que tratavam da quinta, fazendo a bicharada ter saudades dos seus antigos donos.
Por pura associação de ideias, ao ler o comunicado saído da reunião do Conselho Europeu do final da passada semana, dei comigo a lembrar-me de Orwell e do “Triunfo dos Porcos”. À medida que ia desfiando as concessões que os 27 Estados membros da União Europeia e as suas instituições fizeram a Londres, alínea a alínea, ia-me interrogando – então e os outros? E os restantes Estados? Vão ter direito às mesmas derrogações e exceções? Poderão suscitar novas leituras dos seus direitos e deveres face à União Europeia que contratualizaram no momento da sua adesão? Poderão ter a mesma oportunidade de aceitar umas políticas e recusar outras? Poderão, expressamente, desvincular-se do objetivo essencial enunciado no artigo 1º do Tratado da União Europeia que diz, taxativamente, que este Tratado “assinala uma nova etapa no processo de criação de uma União cada vez mais estreita entre os povos da Europa”? E que dizer do estabelecido no artigo 4º do mesmo Tratado que afirma que “a União respeita a igualdade dos Estados membros perante os Tratados” – continua a ser uma norma juridicamente vigente ou uma mera proclamação política desprovida de qualquer valor jurídico?
São dúvidas inquietantes, sobretudo para quem teima em ver a União Europeia como uma comunidade de direito, na esteira do que nos foi ensinado pelos pais fundadores. Decerto – os valores que estes nos transmitiram há muito que já forma postergados em variadíssimos domínios. Talvez, porém, nunca se tenha ido nem tão longe nem tão fundo quanto o foi esta última cimeira do Conselho Europeu. E tudo a troco e em nome de quê?
A troco e em nome de David Cameron se comprometer a fazer campanha eleitoral pela manutenção do Reino Unido na União no referendo que foi convocado para o próximo mês de junho. Só isso e nada mais do que isso. Chega? Basta? Para os chefes de Estado e de governo da União, parece que chegou. Para os britânicos, teremos de esperar pelo seu veredicto nas urnas. Ou seja – os governantes desta Europa da União erigiram George Orwell em novo inspirador desta União Europeia, consagrando o princípio da desigualdade entre os seus Estados membros a troco de uma simples e vaga promessa de um determinado voto a exprimir pelos britânicos.
Parece-me pouco, muito pouco, para tanta cedência e tanto desvirtuamento do projeto europeu.
