O mundo agitou-se com a divulgação dos chamados “Panama Papers” – um vastíssimo conjunto de mais de onze milhões de documentos divulgados por um consórcio internacional de jornais e jornalistas de investigação das mais diversas proveniências e origens e com base na firma de advocacia Mossack Fonseca, com sede no Panamá e especializada na gestão de capitais e de património e na criação de empresas sedeadas em algumas das principais praças offshores que existem espalhadas pelos quatro cantos do mundo.
O espanto e a perplexidade da divulgação não radicaram tanto na dimensão ou no volume da informação disponibilizada e tornada pública quanto no conhecimento da identidade e das responsabilidades públicas e políticas de muitos dos beneficiários das contas e operações bancárias ora reveladas. Encontrar, nessa listagem, nomes de principais dignitários, atuais e passados, de vários e importantes Estados que conhecemos na atualidade é um facto de gravidade sem precedentes. Permite inferir a ideia de existência de uma verdadeira “Internacional, a “VI Internacional”, a “Internacional de Malfeitores” que se dão ao luxo de atuarem à margem da lei e, sobretudo, de toda a postura ética, e que mesmo assim exercem o poder político em diferentes latitudes deste mundo sem regra nem norte.
É evidente que, em muitos dos casos revelados, é de verdadeiras questões de legalidade que estamos a falar. Em todos, porém, para além da citada dimensão legal, existe um incontornável plano de responsabilidade ética que foi, claramente, ultrapassado. E o critério ético não se afere por padrões nem de legalidade nem de justiça. Está muito para além de ambos.
A este propósito, porém, convém introduzir alguma racionalidade no debate e discernir duas situações diferentes que a voragem noticiosa nem sempre permite distinguir: o recurso a offshores para albergar património e ativos financeiros não é, em si mesmo, uma atividade ilícita ou condenável. Aliás, importa sublinhar que, na atualidade e num mundo onde o capital tende a circular de forma cada vez mais irrestrita, quanto maior for a propensão dos Estados para aumentar as cargas fiscais que impõem aos seus cidadãos, maior será a tendência para o recurso a territórios onde, praticamente, a fiscalidade não existe ou, existindo, é meramente residual. Coisa distinta, porém, e é dessa que curamos, é recorrer a offshores para ocultar ou esconder património e ativos financeiros, de duvidosa origem e proveniência desconhecida, na maior parte dos casos tendo, a montante, situações ilícitas relacionadas com corrupção, tráficos, ou outras atividades criminalmente relevantes. É precisamente aqui se coloca a questão e é sobre esta situação que o escândalo embrionário acabado de se conhecer nos deve convocar à reflexão. Porque, por muita capacidade argumentativa, ou inventiva, que possa existir, na esmagadora maioria dos casos e das situações relatadas ninguém em seu perfeito juízo é capaz de defender ou sustentar a licitude na acumulação dos patrimónios e fortunas reveladas. O que nos remete para o tal plano metajurídico – o plano da dimensão ética. Ficámos a saber, de forma inequívoca e em muitos casos confirmando suspeições pré-existentes, que parte significativa dos dirigentes que governam este mundo sem rumo evidenciam graves défices de atuação no plano ético e dos valores, acumulando riquezas impossíveis de explicar à luz de qualquer racionalidade e de qualquer atividade lícita, fortunas essas que são escondidas em territórios onde a fiscalidade é quase inexistente, a disposição para a cooperação judiciária internacional praticamente uma impossibilidade e o segredo a regra sagrada que quase não conhece exceções.
Mas também aqui não podemos perder de vista um dado relevante, não raro omitido. Se atentarmos na localização geográfica de muitas das offshores que permitem a ocultação destas fortunas insuscetíveis de acumulação fruto do trabalho honesto, chegamos à conclusão que uma grande parte delas se localizam em respeitadíssimos Estados desenvolvidos e do primeiro mundo, algumas, mesmo em Estados membros da União Europeia, outras em Estados ou territórios sob influência direta daqueles – e que é aí, à vista de todos mas segundo um regime de opacidade total, que opera a Internacional dos Malfeitores e que se dá guarida a muitas situações de ilegalidade evidente e a muitas mais de atuação desprovida de qualquer ética. Isto é, estes paraísos fiscais são, hoje em dia, importantes fatores de concorrência económica entre Estados irmanados noutras organizações, associados noutras instituições, mas que não deixam de querer concorrer entre si em matéria de atração de capitais financeiros, quaisquer que seja a respetiva proveniência ou a sua origem ou licitude. O que nos conduz, imediatamente, a uma conclusão que tem tanto de simples em enunciar como de difícil em concretizar: enquanto for tolerada a existência destes paraísos fiscais, dificilmente se poderá aspirar a uma saudável convivência económica internacional, num mundo que, também neste domínio, é cada vez mais competitivo e cada vez mais dominado por obscuras oligarquias financeiras que, à custa do seu poder económico, vão sedimentando e fortalecendo o seu poder político. A VI Internacional não é, apenas, expressão de quem foge às suas obrigações fiscais e oculta patrimónios e fortunas. É, também, a expressão de uma parte significativa de quem exerce hoje o poder político. Esse é o nosso drama. Nunca, até aos nossos dias, uma Internacional teve tanto poder económico-financeiro e exerceu tanto poder político.