In memoriam de Francisco F. Encarnação Dias
Quem teve a possibilidade de assistir à longa maratona decorrida no passado fim de semana na Câmara de Deputados de Brasília, onde se votava o relatório da Comissão Especial sobre o início do processo formal de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, não consegue calar a perplexidade nem a surpresa perante o espetáculo que teve hipótese de presenciar. Sobretudo porque da sala de sessões da Câmara de Deputados, circunstancialmente transformada em cenário de novela de baixo quilate, emanavam argumentos que qualquer observador constatava nada terem a ver, objetivamente, com a tramitação formal de um processo que, para ser iniciado, deveria ter como requisito primeiro a acusação de prática de “crime de responsabilidade” por parte da Presidente da República, crimes esses que a lei ordinária brasileira define como “atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. De nada disto, porém, se curou quando os deputados federais brasileiros, em ambiente de feira semanal, iam desfilando e anunciando o sentido do respetivo voto e a razão determinante para o mesmo. Escutaram-se invocações de Deus, da família, de pais, de mães, de filhos, de netos, de nascidos e de nascituros, de amigos e de desconhecidos, de perseguições pessoais e ajustes de contas individuais, de ressentimentos e de ressabiamentos; invocaram-se e evocaram-se antigos Presidentes da República, páginas mais negras e menos dignas da história brasileira, lutas antigas feitas recentes, clamou-se contra a corrupção e contra o golpe. Mas ao essencial, pouco ou nada foi dito. E percebe-se porquê.
Basicamente porque a generalidade da atual classe política brasileira, independentemente da sua colocação partidária, aparece-nos indissociavelmente ligada a práticas menos claras de opacas ligações entre o mundo da política, o mundo dos interesses privados e o mundo dos negócios. Sob a generalidade da classe política brasileira paira um manto de suspeição que praticamente não permite, aos olhos dos brasileiros, que quem quer que a integre beneficie de uma presunção de seriedade e de honestidade. O que não pode augurar nada de bom nem de prometedor para os tempos mais recentes do nosso país-irmão.
Mas para este clima de suspeição e de descrença, reconheça-se, muito contribuiu a atuação dos principais dignitários da república, reféns de atos pouco edificantes e que envergonhariam qualquer democracia estabilizada deste nosso velho continente. Dois simples exemplos servem para atestar e comprovar esta desqualificação dos titulares dos mais altos cargos da República para o exercício dos mesmos. Em primeiro lugar – a incompreensível tentativa da Presidente Dilma Rousseff de nomear para Ministro Chefe da sua Casa Civil o seu antecessor no cargo, Lula da Silva, num ato onde ninguém conseguiu divisar qualquer outra finalidade que não garantir a este um foro privilegiado para os problemas que tem com a justiça na decorrência da mega-operação “Lava-Jacto”. É uma nomeação ainda pendente de decisão final da instância judicial federal mas que teve o condão de retirar à Presidente da República o pouco crédito que ainda lhe restava junto da sua base social de apoio. Em segundo lugar, e para nos continuarmos a centrar nas figuras de topo do Estado brasileiro – enquanto decorre o processo de destituição de Dilma Rousseff, o Vice-Presidente Michel Temer distribui pelos amigos um áudio do seu putativo discurso de posse como Presidente, dando a destituição de Dilma por adquirida e por certa a sua subida ao cargo. Na resposta, a ainda Presidente vem acusá-lo de ser um dos dois líderes do chamado “golpe”. Em termos de relacionamento entre Presidente e Vice-Presidente da República, estamos conversados….
Estes factos, porém, dignos duma “República de bananas” e que se teriam por impossíveis de suceder num Estado do primeiro mundo em pleno século XXI, para além da sua gravidade intrínseca que se prende com o funcionamento das próprias instituições constitucionais do Brasil, acarretam ainda um perigo suplementar – é conseguiram dividir praticamente ao meio um país, colocando meio Brasil contra a outra metade. E isso não prognostica nem augura nada de muito bom. Já não é só nos palácios de Brasília que se travam e se jogam as cartadas políticas. É também nas ruas e praças das cidades brasileiras. E sendo o Brasil, neste momento, muito mais do que o país-irmão que Portugal legou ao mundo, o verdadeiro eixo em torno do qual gira a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (apesar do escasso investimento que nela sempre fizeram os governos de Dilma), o que por lá se passe não se pode considerar estranho nem alheio a Portugal. Sem quaisquer resquícios “neo-colonizadores” desprovidos de qualquer sentido mas, igualmente, sem qualquer indiferença de todo incompreendida. Impõe-se, pois, seguir com detalhada atenção e não menor preocupação a evolução da situação política brasileira. A mesma não se pode dizer que nos é estranha ou alheia.
É que este Brasil, de facto, visto do lado de cá do Atlântico, parece não existir nem ter emenda, e sobretudo não aprender nada com a sua própria História. E ou muda rapidamente, começando pela sua classe política – toda – ou pode estar na véspera de dias muito complicados e difíceis. A título de mera hipótese de trabalho, talvez os brasileiros tivessem mais a ganhar se preferissem a mudança radical dos seus eleitos e um acrescido escrutínio das suas escolhas eleitorais, às manifestações públicas tão do seu agrado.