Há relativamente poucos dias, participando num encontro das esquerdas europeias, no quadro da sua candidatura a Secretário-Geral do ONU, António Guterres refletia sobre a imensa crise humanitária que se abate sobre a Europa e concluía pela incapacidade desta para reagir de forma eficaz e eficiente a este drama sem igual nos tempos modernos. Defendia, nomeadamente, a existência de uma verdadeira política europeia em matéria de concessão de vistos, de apoio aos refugiados e, como corolário lógico dessa política, a existência de órgãos europeus encarregados de operacionalizarem essa mesma política comum europeia. Partilhando a sua experiência pessoal, os dramas a que assistiu e que vivenciou e, sobretudo, a incapacidade europeia para lhes dar uma resposta consequente, Guterres partilhou a sua desilusão com a capacidade de resposta europeia, a sua tristeza pelo facto de problemas da magnitude da crise humanitária com que teve de lidar continuarem a ser objeto de abordagens de forte pendor nacional e, em síntese, confessou que, sendo um assumido federalista, tinha de reconhecer a sua frustração face aos ideais que professava e à prática com que tinha de lidar. Disse-se, textualmente, um federalista frustrado. Não será, infelizmente, o único.
Percebo e compartilho o estado de espírito do ex-primeiro ministro português.
Lidando com as matérias e as coisas da Europa há mais de vinte cinco anos – em aulas, investigação, livros, conferências, palestras, no exercício da própria advocacia, em tantos outros momentos – nunca perfilhei o modelo federal para o desenvolvimento da União Europeia. Basicamente por duas razões: em primeiro lugar porque sempre entendi que um tal modelo convocava a ter como referência o modelo norte-americano o que, não se aplicando ao continente europeu, seria um redondo disparate ser invocado; em segundo lugar por sempre me ter parecido que a União Europeia, se queria afirmar-se e consolidar-se, só o conseguiria através de uma estrutura político-institucional verdadeiramente inovadora e original, insuscetível de se comparar com qualquer outra previamente existente. O modelo político da União Europeia ir-se-ia construindo e só depois iria sendo teorizado. Acreditava, francamente, neste pressuposto. Advogava, em contrapartida, um modelo de forte pendor intergovernamental onde a matriz estadual se pudesse sobrepor à componente supranacional. Perante os dois caminhos clássicos e teóricos da integração europeia, a minha preferência sempre se orientou para a via intergovernamental. Até que….
O eclodir da crise económico-financeira, e logo social, de 2007 nos EUA, que um ano depois começou a afetar de forma implacável o continente europeu – e de que em boa verdade ainda não nos libertámos por completo. A forma como a União Europeia (não) reagiu a essa crise assumiu-se como determinante na revisão da minha própria visão sobre a evolução do projeto europeu. Coincidindo, no tempo, com a aprovação e a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a crise em que a União mergulhou foi a primeira oportunidade para testar a bondade das soluções (intergovernamentais) preconizadas no novo tratado europeu. Escusado será dizer que o balanço se afigura, hoje, profundamente negativo e criticável. Em vez de encarar a crise europeia como isso mesmo, uma crise à escala continental, a União Europeia, sob a égide da Alemanha da Sra Merkel optou por encará-la como uma crise de alguns países da União, tipicamente do sul, com maus indicadores económicos, assimetrias sociais, tipicamente identificados os pobres da União. E ao perspetivar a crise europeia sob este ângulo, estava dado o mote para a forma de resposta a usar por parte da própria União Europeia: uma resposta igualmente nacional, assente nas particularidades de cada Estado. Em lugar da resposta global, a opção pela resposta nacional – e sempre, sempre, de acordo com os ditames da dupla Merkel/Schauble.
Esta forma de reação, que hoje é quase consensualmente admitida como a menos adequada ao tipo de crise que se abateu sobre o continente europeu, fez-me ganhar a consciência de que há problemas hoje, de tal maneira sistémicos e globais, que não se compadecem com respostas nacionais ou intergovernamentais. Impõem e obrigam a uma abordagem global e sistemática a cargo de entidades colocadas a um nível supranacional. Há crises – e aquela de que curamos e que sentimos bem na pele é um exemplo paradigmático – que não podem ser resolvidas através de um somatório de resoluções parciais. Exigem a tal abordagem global que apenas um poder político de pendor federal estará preparado para dar e para corporizar.
Veio tudo isto a propósito da confissão imensamente humilde de António Guterres se dizer e se assumir como um europeísta federalista profundamente frustrado. Não terá sido o único, seguramente. O depoimento antecedente demonstra que, pessoalmente, também me vi na contingência de alterar a minha visão do projeto europeu e do seu devir, das suas exigências e das suas necessidades, acreditando que apenas uma solução federal (ainda que de tipo original, não necessariamente decalcado do clássico federalismo norte-americano) poderá dar resposta aos imensos e, sobretudo, aos mais importantes, dos problemas com que esta União Europeia em aparente estado de acelerada decomposição se debate e confronta nos dias que passam.
Nessa medida, subscrevo na íntegra a “confissão” de António Guterres: na minha esfera de atividade e de investigação, também eu, europeísta, me digo e me declaro um federalista profundamente frustrado.