Na pretérita semana voltou a ser entregue um dos mais prestigiosos galardões que, a nível europeu, premeiam personalidades de relevo pelo seu empenho e pela sua militância e envolvimento em prol da causa europeia e do projeto europeu – o Prémio Carlos Magno. Desta feita o contemplado foi Sua Santidade o Papa Francisco.
A outorga deste prémio suscitou-me duas imediatas reflexões.
A primeira, foi o facto de ter sido laureado com um prémio que pretende homenagear as verdadeiras vozes tribunícias que se fazem ouvir em prol do ideal europeu o máximo representante da Igreja Católica. Decerto – não foi a primeira vez que tal sucedeu. Anteriormente, São João Paulo II já havia recebido idêntica homenagem. Mas os tempos eram outros. O Papa-mineiro foi um ator empenhado nas transformações políticas, económicas e sociais que puseram fim ao mundo da guerra-fria. Foi um espectador comprometido com o seu tempo e com as causas pelas quais ofereceu parte significativa da sua vida e a que submeteu parte importante do seu magistério pontifical. Nessa medida, não constituiu, propriamente, uma novidade, uma surpresa ou uma improbabilidade. Tanto assim é que, nos nossos dias, qualquer obra de estudo e de investigação sobre a ideia de Europa e sobre o ideal europeu que se preze, não pode omitir o nome de Karol Wojtyla entre os mais relevantes pensadores da última metade do século XX em matéria de temáticas europeias. A obra de São João Paulo II está publica, é conhecida e não corre o risco de ser esquecida. Acresce um dado de relevo – João Paulo II viveu a segunda guerra mundial, assistiu aos esforços e à produção filosófica que se lhe seguiram para evitar a repetição da catástrofe; e, sobretudo, era polaco. Era europeu. Percebia, como os europeus, o alcance do projeto comunitário lançado pelos Pais Fundadores. E aqui entra a segunda reflexão que a entrega deste prémio a Francisco me suscitou.
É que, ao contrário do Papa-mineiro, Jorge Mario Bergoglio não é um europeu. É descendente de emigrantes europeus, mas é um latino-americano. É um argentino. E é precisamente a um não europeu, a um latino-americano, a um argentino, que a Europa dos nossos dias veio entregar um dos mais prestigiosos prémios destinados aos que se empenham na prossecução do ideal europeu e na defesa dos valores da Europa Unida. Significando com isto, inequivocamente, que não é garantido que sejam os europeus de origem aqueles que, nos nossos dias, melhor compreendem, melhor percebem e melhor se empenham na defesa da ideia de Europa, na divulgação do projeto europeu e na promoção dos valores europeus. A crise europeia, aquela que nos toca e nos afeta todos os dias, não se limita a ser uma crise económica e financeira, social e política, institucional e constitucional. Vai muito mais fundo e é uma crise de identidade, de valores e de crença nesses mesmos valores europeus. E têm de ser não europeus a virem-nos recordar e relembrar não só a necessidade que a Europa tem de se manter unida, coesa e fiel aos seus valores e à sua História como, igualmente, aquilo que o mundo espera da própria Europa. É, pois, muito significativo que tenha sido o Papa Francisco a ser o laureado este ano com o Prémio Europeu Carlos Magno.
Esta distinção, todavia, incorpora ainda uma outra lição que não podemos perder de vista. E que se tem vindo a assumir como um legado permanente ao longo dos últimos pontificados, a começar no de São João Paulo II, a prolongar-se no de Bento XVI e a ter continuidade no de Francisco: essa lição diz-nos, de forma absolutamente inequívoca, que a essência do ideal europeu e do projeto europeu fazem parte integrante da doutrina social da Igreja dos nossos dias, tal como a mesma tem vindo a ser construída e solidificada pelos três últimos sucessores de Pedro.
Quem tiver um conhecimento minimamente sustentável da história de construção do projeto europeu – com particular ênfase após a segunda guerra mundial – não ignora o contributo que a doutrina social aportou a esse mesmo projeto, predominantemente pela via dos partidos políticos democratas-cristão, sociais-cristão e socialistas cristãos. Sem essas contribuições doutrinárias e dogmáticas, o projeto edificado na europa a partir da segunda metade do século passado não teria quaisquer condições para sobreviver e para vingar. Nesta fase de turbulência e de idêntico relativismo e desconstrução de valores e de princípios, talvez pudéssemos parar um pouco para aprender com as lições do passado. Talvez concluíssemos que se quisermos salvar a ideia de Europa e o próprio projeto europeu, talvez tenhamos de abdicar de alguma soberba, de alguma autossuficiência e talvez tenhamos de lançar mão de auxílios externos, de contributos externos, de entidades não políticas mas muito mais antigas que quaisquer entidades políticas para que essa missão possa ter êxito, sucesso e consiga lograr os seus objetivos. A doutrina social está aí, à mão de quem a quiser conhecer, recheada de sugestões, ensinamentos e práticas que não faria mal nenhum serem seguidas ou, pelo menos, refletidas.
Voltando ao Prémio Europeu Carlos Magno acabado de entregar ao Papa Francisco – quem tiver possibilidade, despenda alguns minutos a ler o respetivo discurso de aceitação, proferido ante alguns dos principais dignitários europeus. Ali verá todo um pensamento europeísta estruturado, desenvolvido e oferecido à Europa em nome dos valores cristãos que professa. Não é preciso inventar muito porque está lá quase tudo. Um pensamento, valores, um rumo, um ideal – coerentemente articulados. Como há muito europeu algum havia divulgado. Na falta de uma orientação proveniente de uma voz europeia, adotemos este ensinamento que nos é dado por um argentino, mais europeísta do que muitos dos nossos governantes que tanto se gabam do seu europeísmo.