Falta pouco mais de um mês para, no próximo dia 23 de junho, os britânicos se pronunciarem em referendo sobre a sua permanência na União Europeia. É normal que este referendo preocupe as instâncias comunitárias; e seria normal que fosse objeto de uma reflexão aprofundada nos diferentes Estados-Membros da União, considerando, principalmente, a imprevisibilidade do seu resultado mas, sobretudo, a incógnita que um veredicto que aponte no sentido da vitória das posições eurocéticas que defendem a saída do Reino da União pode vir a acarretar e a trazer para toda a União Europeia globalmente considerada, para o projeto europeu tal qual o conhecemos e, inclusivamente, para cada um dos restantes 27 Estados-Membros da União. Seria, por isso, normal, que o assunto fosse objeto da tal reflexão aprofundada, de uma meditação séria e de uma verdadeira discussão à escala quer da União Europeia quer dos Estados que a compõem.
Infelizmente não é nada disso que temos constatado. O assunto, por razões óbvias, está a ser discutido e equacionado no Reino Unido – mais por razões de política interna do que, propriamente, por questões de âmbito europeu. Mas isso percebe-se – é em primeiro lugar de um tema britânico que se trata e que aos britânicos diz respeito. Já no que concerne aos restantes Estados que integram a União, a discussão e o debate estão muito de corresponderem ao que seria exigido. É certo – há uma dimensão extraordinariamente técnica neste dossier que está longe de ser acessível e discutível pela generalidade do cidadão comum: refiro-me ao debate sobre as consequências que uma eventual saída do Reino Unido da União Europeia poderá ocasionar ou provocar. É assunto deveras complexo sobre o qual muitas contas ainda estarão por fazer e muitas outras talvez nunca se consigam fazer.
Mas este assunto não é, exclusivamente técnico. Nem é, aliás, primeiramente técnico. Começa por ser, antes do mais, um tema exclusivamente político. Uma questão de âmbito e natureza política. E aí, no estrito plano político, poderia e deveria ser objeto de um debate aprofundado que envolvesse a generalidade dos cidadãos dos Estados-Membros da União. Ontem mesmo, nas páginas do Le Monde, Nicolas Sarkozy veio proclamar que “O debate sobre o Brexit é uma oportunidade para refundar a Europa”. Não iria tão longe – não só porque as credenciais de Sarkozy para reclamar um papel de relevo no processo de construção da Europa Unida deixam muito a desejar como, também e sobretudo, porque não se me afigura correto fazer depender da posição que os britânicos venham a tomar sobre a sua permanência na União Europeia o ponto de partida para qualquer refundação do projeto europeu. É discutível aliás, sobre qual seria a opção que mais beneficiaria o projeto europeu – se ter o Reino Unido dentro e a União Europeia estar permanentemente sujeita à pressão e à ameaça britânica, impedida de se aprofundar politicamente; se ter o Reino Unido fora e a UE reunir melhores condições para lograr alcançar estádios superiores e mais integrados de união política. Esse é o debate que falta fazer. Esse é o debate que se deveria estar a travar. Essas são as questões que começam por contar neste complexo puzzle que se encontra em permanente mutação.
A omissão do debate e da discussão – pelo menos das questões sugeridas – demonstra à saciedade uma evidência que ciclicamente vimos observando e para a qual temos chamado reiteradamente a atenção: pese embora tenha já consagrado, no puro plano jurídico, há quase duas décadas, o conceito de cidadania europeia, a União Europeia continua sem conseguir criar, de facto, essa mesma cidadania europeia. Porque é inerente à condição de uma qualquer cidadania a construção de uma opinião pública forte, esclarecida, informada e atuante. Ora, o conceito de cidadania europeia existe, nos tratados e nas fontes jurídicas, mas a opinião pública europeia continua inexistente e omissa. Não se forma, não se constitui, não se interessa, não participa, não intervém. E não a podemos considerar equivalente à soma das 28 opiniões públicas nacionais que coexistem no espaço europeu. Claro – para as instâncias políticas europeias, é cómodo e confortável a inexistência dessa opinião pública à escala europeia. É menos um instrumento de pressão que têm de enfrentar – apesar de, frequentemente, proclamarem justamente o seu contrário. Também aqui é de uma questão de autenticidade entre o que é proclamado e o que é conveniente que se trata.
Esta questão do referendo britânico – pese embora ser um assunto primeiramente britânico – poderia ter servido também, pelas suas consequências, para ajudar a criar essa tal opinião pública europeia. Infelizmente foi mais uma oportunidade perdida para somar ao rol de todas as que já se perderam. E assim vamos caminhando, descompassadamente, ao arrepio do sentir e das escolhas da cidadania. É outro claro indício do estado de letargia ou mesmo de desconstrução em que já se encontra a UE – porque esta, ou é construída em estreita articulação com os cidadãos e com a cidadania ou, mais tarde ou mais cedo, acabará posta em causa por essa mesma cidadania. Por este andar, talvez já tenha faltado mais.