Ainda não passou o tempo suficiente para se digerirem os primeiros impactos da oficialização britânica do desejo de sair da União Europeia, através do acionamento do mecanismo previsto no artigo 50º do Tratado de Lisboa, e já começaram a surgir os primeiros imbróglios que terão de ser dirimidos entre Londres e Bruxelas – ou, no mínimo, entre Londres e algumas das capitais europeias.
A primeira questão surgida escassos dias sobre a invocação do referido artigo 50º do Tratado de Lisboa derivou do estatuto político de Gibraltar – de cuja administração Londres não dá sinal de querer prescindir, mas de cuja soberania Madrid também não pretende abrir mão.
De facto, Gibraltar – território britânico desde 1713 que ainda em 2002 rejeitou através de referendo popular ficar sob soberania partilhada de Londres e Madrid – irá tornar-se no primeiro exemplo de uma situação que, tendo sido gerida até agora no quadro da União Europeia, passará, com a saída do Reino Unido da União, para o plano do relacionamento bilateral entre o Reino Unido e Espanha. E, nesse plano bilateral, não poderá deixar de ser dissociado de outras questões que oporão ambos estes Estados. A questão escocesa será outra de entre essas mais relevantes.
Depois de o Reino Unido ter decidido avançar com o Brexit, o governo nacionalista de Glasgow tomou a decisão de encetar um novo procedimento referendário pretendendo desligar-se do Reino Unido e, subsequentemente, ingressar na União Europeia. Até agora, Londres tinha em Madrid um aliado de peso que estaria na disposição de vetar a referida adesão escocesa à União. Sobretudo por receio de abrir um precedente que, a prazo, se pudesse virar contra si própria, pensando sobretudo na situação da Catalunha – onde as forças nacionalistas e independentistas fazem campanha pela autodeterminação da Catalunha e pela defesa do seu ingresso na União Europeia.
Surpreendentemente, nos últimos dias, no momento em que se elevou a escalada verbal entre o Reino Unido e Espanha a propósito do estatuto político do rochedo, registou-se uma alteração significativa na posição espanhola relativamente à Escócia. O ministro espanhol dos negócios estrangeiros, Alfonso Dastis veio, pela primeira vez, anunciar que Madrid não aporia o seu veto a uma eventual candidatura de uma futura Escócia independente à União Europeia deixando, assim, as portas abertas para que, num futuro próximo, uma eventual Escócia independente se possa tornar membro de pleno direito da União Europeia.
Com esta mudança ou evolução radical na posição oficial de Espanha, Madrid dá por adquirido que, a prazo, a sua estratégia para lidar com a questão da Catalunha terá de assentar em novos pressupostos – o, neste caso, aliado britânico está em vias de abandonar o clube europeu e ao Reino de Espanha pouco mais restará do que contar consigo própria numa eventual batalha em torno da questão catalã.
Qualquer um destes três casos – o caso de Gibraltar, o caso da Escócia e o caso da Catalunha – enquadra-se num contexto mais vasto de renascimento das punções nacionalistas um pouco por toda a Europa. Até agora, estas questões eram tratadas no quadro da União Europeia e com uma intervenção de mediação frequentemente exercida por parte das instituições comuns, nomeadamente a Comissão Europeia. A concretização do Brexit fará com que, doravante, os mesmos se remetam para o plano do relacionamento bilateral entre os Estados envolvidos. Trata-se de uma alteração não desprovida de consequências, e de consequências que não facilitam a resolução destes diferendos.
A trilogia “Gibraltar – Escócia – Catalunha” volve-se, assim, num dos primeiros, talvez o primeiro, teste que, em matéria de política externa e relações internacionais, se vai colocar à União Europeia a 27 e aos seus Estados membros no novo relacionamento que vai ser necessário encetar com Reino Unido que, além de novos desafios externos, se irá ver confrontado com novos desafios internos, sendo que o da sua sobrevivência ou subsistência como Reino “unido” não será, seguramente, o menor de todos eles. Mas pode vir a ser também, paralelamente, a possibilidade de começar a ser edificado um outro modelo de ordem internacional que pode vir a conferir a esse mesmo Reino Unido, se como tal se conseguir conservar e preservar, um papel muito mais ativo na articulação da Europa, a que continuará a pertencer, com os aliados transatlânticos, nomeadamente os Estados Unidos e o Canadá.
Serão, pois, tempos de mutações relevantes aqueles que poderemos ter por diante. Não, necessariamente, positivos; mas, seguramente, relevantes e importantes.