Continua a ser incontornável uma pequena reflexão, mais a frio e sem a pressão da noite eleitoral, sobre o resultado da segunda volta das eleições presidenciais francesas do passado domingo. A primeira sensação registada, de uma certa euforia, foi rapidamente contida e refreada. Passou muito pouco tempo sobre a vitória de Emmanuel Macron para que os excessos fossem travados e contidos ante a magnitude de desafios que o novo Presidente terá pela frente.
Sem grande preocupação de ordenação cronológica, (i) a escolha do próximo Primeiro-Ministro francês, (ii) a implantação ao longo dos 577 círculos eleitorais franceses do seu movimento de cidadãos “En Marche” – que, entretanto, já evoluiu para um movimento político denominado “La République En Marche” –; (iii) a composição do próximo governo; (iv) a decisiva batalha eleitoral das legislativas; (v) a formação de uma aliança governativa que permita sustentar parlamentarmente o novo governo numa Assembleia Nacional onde o chamado arco do poder ou da governabilidade será restrito ao movimento-partido presidencial, aos Republicanos em acentuada crise de identidade e liderança e ao que restará dos escombros do outrora grande Partido Socialista francês, dado que, nos extremos, nem a “França Insubmissa” de Mélénchon nem a Frente Nacional de Le Pen poderão ou estarão interessadas em contar para essas contas; (vi) e finalmente, mas não por último, o lançamento das suas primeiras medidas governativas que tranquilizem a França e os seus parceiros europeus sobre o rumo da sua governação. Convenhamos – para um horizonte temporal de trinta dias, até ao próximo ato eleitoral, espécie de terceira volta da eleição presidencial, a tarefa não é leve e os desafios apresentam-se deveras exigentes.
Dar resposta a todos estes desafios, no quadro de uma base de apoio eleitoral extraordinariamente alargada e heterodoxa, sem um princípio coerente e unificador, irá traduzir-se numa era de incerteza que, dependendo da forma como for ultrapassada, poderá (ou não) vir a pôr em causa os fundamentos do próprio sistema político da V República inaugurada pelo General De Gaulle e, eventualmente, abrir as portas para a Constituição da VI República. Até porque, a par de todas estas questões políticas – que, como vimos, não são despiciendas – há uma questão maior, subjacente a todas elas, que não pode ser descurada.
Centrando-nos nos resultados do passado domingo, e nos votos obtidos pelos candidatos, constata-se que Marine Le Pen, apesar de derrotada, logrou alcançar 36,5% dos sufrágios e, praticamente, 11 milhões (!) de votos. Demonstrou-se que conseguiu segurar o seu eleitorado da primeira volta e entrar em largos campos do eleitorado tradicional republicano-gaullista – a ponto de Marine ter reclamado, no seu discurso de derrota, a liderança da futura oposição. Ora, convém determo-nos um pouco neste ponto. Onze milhões de votos é score nunca alcançado pela Frente Nacional. E mesmo que, nas próximas eleições legislativas, dentro de um mês, a FN não faça o pleno deste resultado, não haverá dúvidas que obterá um resultado que lhe permitirá eleger para a próxima Assembleia Nacional um grupo parlamentar significativamente superior aos 2 deputados que têm presentemente. Um grupo parlamentar que poderá condicionar significativamente o próprio Parlamento francês e a governabilidade do país. E é este o facto que nos deve preocupar e interrogar – o que é que faz com que, num país central da Europa, com a história e a tradição de França, existam 11 milhões de pessoas dispostas a entregarem o seu voto a uma candidata nacionalista, populista e extremista? Esta é a questão que nos deve preocupar e levar a uma séria reflexão. E é uma questão que apenas foi ofuscada com a vitória de Macron – mas que não se encontra respondida nem, muito menos, resolvida. E que num prazo não muito longínquo poderá levantar sérios problemas à França e, por extensão, à própria Europa, particularmente à da União. O facto de este projeto político, com mais de 40 anos de gestação, ter sido derrotado, não nos deve tranquilizar nem apaziguar as nossas preocupações e as nossas consciências. O perigo do nacionalismo populista e extremista continua à espreita, no centro da Europa, na pátria da liberdade, da igualdade e da fraternidade – e à mínima escorregadela do funcionamento do sistema político liberal implantado nas sociedades ocidentais, a alternativa pode estar ao virar da esquina.