Foi o Professor Adriano Moreira quem, pelo início dos anos oitenta do século passado, trouxe para o nosso vocabulário político e promoveu a divulgação da expressão “Estado exíguo”, com ela querendo significar ou ilustrar um Estado incapaz de cumprir as suas tarefas mais básicas, aquele mínimo de atribuições que justificam a sua existência e que a clássica ciência política ensina como sendo a segurança, a justiça e o bem estar e bem comum dos seus cidadãos. Um Estado que não seja capaz de cumprir e dar resposta a esses objetivos ou finalidades, é um Estado que não tem razão de existir, que não cumpre as finalidades para as quais é criado, que não desempenha o mínimo indispensável de tarefas que os seus cidadãos lhe confiam por meio do contrato social em que o mesmo Estado se funda. Chamava, na altura, o Professor Adriano Moreira a atenção para o facto de, nesses idos do século passado, Portugal caminhar assustadora e vertiginosa mente para essa condição de Estado exíguo, incapaz de desempenhar o mínimo de tarefas essenciais que os cidadãos dele esperavam e para as quais abdicaram de uma parcela da sua liberdade individual e dos seus direitos para os confiarem a esse mesmo Estado.
Pese embora tenha introduzido o conceito pelos anos oitenta do século passado, o que o nosso querido Mestre nunca terá, por certo, imaginado foi a situação que este nosso País viveu nas últimas duas semanas e que, salvo outra e melhor opinião, veio ilustrar na perfeição o exemplo de um verdadeiro Estado exíguo, incapaz de prover às mais elementares necessidades dos seus cidadãos, falhando rotundamente onde não seria su posto que um Estado, na plenitude das suas competências, pudesse falhar.
Em primeiro lugar foi a tragédia de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes. Não, não foi o Estado e o seu aparelho político-administrativo que foram responsáveis pelo eclodir dos incêndios. Mas já não podemos subscrever idêntico juízo absolvedor relativamente à forma como esse mesmo aparelho político-administrativo (não) reagiu ao eclodir da tragédia. A multiplicidade de serviços, agências e corporações que foram convocadas para (não) responderem à catástrofe, não só nos evidenciam a completa e desorganizada dispersão do poder por inúmeros organismos e entidades como, mais importante que tudo, demonstram à saciedade a total desorganização e a completa falta de coordenação entre todos esses serviços dependentes de um mesmo e único Estado. Entre entidades convocadas para a previsão do fenómeno meteorológico até entidades responsáveis pela prevenção dos incêndios, pelo combate, pelo socorro, pelo policiamento, pela segurança, pela assistência, pelas comunicações – contam-se mais de uma dezena os serviços públicos, de variada natureza e diversa finalidade que, chamados a actuarem, fizeram o melhor que puderam sem embargo de se reconhecer, hoje, que esse melhor possível ficou muito distante do mínimo exigido. Ou seja, perante um fenómeno natural de magnitude sem precedente, que ninguém exigiria que o Estado pudesse antecipar ou evitar, constatou-se impreparação das entidades públicas para atenuarem os seus efeitos e curarem das suas consequências. Em matéria de segurança e proteção da vida e dos bens dos seus cidadãos, o Estado, o nosso Estado, falhou e demonstrou-se impreparado para o cumprimento da sua missão. O auxílio e recurso a meios externos para o cumprimento de uma missão que devia ser, em primeiro lugar, nacional, não determina a exiguidade do Estado. Mas ajuda a perceber que o Estado se assumiu como um verdadeiro “Estado exíguo”. 64 vidas humanas foi o preço a pagar pela impreparação dos diferentes serviços e agências da nossa administração e do nosso poder político.
Mal refeitos da tragédia incendiária, fomos confrontados, na passada semana, com um assalto a um dos principais depósitos de armamento militar do país, em Tancos, donde foram furtados (porque nem de roubo se tratou…) material capaz de espoletar um conflito militar em qualquer parte do mundo. Pela imprensa espanhola (!), soubemos que o furto abrangeu um verdadeiro arsenal (1450 cartuchos de 9 mm; 22 Bobinas ativadoras por tração; 1 Disparador de descompressão; 24 Disparadores de tração lateral multidimensional inerte; 6 Granadas de mão de gás lacrimogéneo CS / MOD M7; 10 Granadas de mão de gás lacrimogéneo CM Antimotim; 2 Granadas de mão de gás lacrimogéneo Triplex CS; 90 Granadas de mão ofensivas M321; 30 Granadas de mão ofensivas M962; 30 Granadas de mão ofensivas M321; 44 Grana das foguete antitanque carro 66 mm com espoleta; 264 Unidades de explosivo plás tico PE4A; 30 CCD10 (Carga de corte); 57 CCD20 (Carga de corte); 15 CCD30 (Carga de corte); 60 Iniciadores IKS; 30,5 Lâminas Explosivas KSL), Numa Europa sem fronteiras, ou de fronteiras transparentes, poderemos imaginar onde o mesmo já estará. E poderemos, também, aquilatar com facilitar as insónias que este furto em Portugal terá provocado em todos os nossos aliados, numa época em que o combate ao terrorismo é fim erigido em prioridade máxima por (quase) toda a comunidade internacional. Da dimensão do facto e listagem de todo o material furtado, viemos a ter notícia pela imprensa espanhola – certamente a partir da notificação efetuada pelas autoridades nacionais. Ficámos a conhecer a dimensão do facto mas não pudemos ficar a confiar nas autoridades espanholas. Ao divulgarem, ou ao não saberem proteger, informação confidencial relativa a material reservado de um seu parceiro e aliado demonstraram que não são de confiança. Devem-nos, inequivocamente, um pedido de desculpas. Mas independentemente disso (que não é pouco), Portugal voltou a dar outro exemplo de impreparação para o desempenho duma tarefa essencial da sua função soberana (ou daquilo que resta dela). Ao não saber guardar e proteger o seu material militar, colocou em causa a defesa, a segurança e o bem-estar dos seus nacionais e, por extensão, daqueles a quem estamos ligados por trata dos de associação. São acontecimentos ou eventos que apenas esperamos ver em filmes de TV ou em Estados-falhados. Nunca em Estados do dito primeiro mundo, países membros duma Aliança Atlântica, aspirando a participar numa qualquer força europeia de defesa que se possa vir a criar. Também aqui demonstrámos o quão perto estamos de resvalar para a condição de “Estado-exíguo”.
Infelizmente, mesmo face a todos estes acontecimentos, o poder parece que meteu férias. Fez algumas perguntas, demitiu alguns oficiais, constituiu uma comissão de inquérito e foi, tranquilamente, gozar a vilegiatura. O país, ainda que caminhando aceleradamente para a condição de “Estado-exíguo”, pode esperar.