Foi com algum alívio que a Europa encarou os resultados da segunda volta das eleições presidenciais francesas do passado domingo. A vitória de Emmanuel Macron era esperada, a derrota de Marine Le Pen era bastante desejada mas, à primeira vista, os números finais ultrapassaram as melhores expectativas de uns e de outros – tanto dos que desejavam a vitória de Macron como dos que ansiavam pela derrota de Le Pen. Mas esta foi a primeira e mais imediata leitura dos referidos resultados. Aquela que conferiu a tal sensação de alívio a quem se limitou a ver, pelo canto do olho, os números projectados e divulgados por televisões, rádios e jornais. Uma atenção e uma leitura mais fina e aprofundada dos mesmos conduz-nos, inevitavelmente a outro tipo de conclusões e suporta várias outras reflexões.
O primeiro dado que convém ter presente é que, apesar de termos estado perante uma segunda volta de eleições presidenciais, a taxa abstenção registada foi a mais alta desde 1969, aproximando-se dos 25%. Ou seja, um em cada quatro eleitores franceses virou as costas ao ato eleitoral e demonstrou a sua indiferença perante o que esteve em jogo. Não será de excluir que uma parte significativa dos abstencionistas haja tido origem no movimento insubmisso de Mélénchon – a esquerda radical francesa que sempre sustentou ser necessário derrotar Marine Le Pen sem, contudo, nunca se ter atrevido a recomendar o voto em Emmanuel Macron. Obtendo cerca de 20% dos votos na primeira volta e não formulando uma orientação de voto para a segunda volta, antes permanecendo no limbo da ambiguidade, é plausível que parte significativa deste eleitorado haja optado pelo voto abstencionista – uma outra e diferente forma de exercer o direito de voto.
Para além desta elevadíssima taxa abstencionista, as eleições presidenciais do passado domingo, conheceram uma anormalmente elevada taxa de votos nulos e brancos – quase 12%. Outro (anormal e negativo) recorde.
Centrando-nos nos votos obtidos pelos candidatos, Marine Le Pen, apesar de derrotada, logrou alcançar 36,5% dos sufrágios e, praticamente, 11 milhões (!) de votos. Demonstrou-se que conseguiu segurar o seu eleitorado da primeira volta e entrar em largos campos do eleitorado tradicional republicano-gaullista – a ponto de Marine ter reclamado, no seu discurso de derrota, a liderança da futura oposição. Ora, convém determo-nos um pouco neste ponto. Onze milhões de votos é score nunca alcançado pela Frente Nacional. E mesmo que, nas próximas eleições legislativas, dentro de um mês, a FN não faça o pleno deste resultado, não haverá dúvidas que obterá um resultado que lhe permitirá eleger para a próxima Assembleia Nacional um grupo parlamentar significativamente superior aos 2 deputados que têm presentemente. Um grupo parlamentar que poderá condicionar significativamente o próprio Parlamento francês e a governabilidade do país. E é este o facto que nos deve preocupar e interrogar – o que é que faz com que, num país central da Europa, com a história e a tradição de França, existam 11 milhões de pessoas dispostas a entregarem o seu voto a uma candidata nacionalista, populista e extremista? Esta é a questão que nos deve preocupar e levar a uma séria reflexão. E é uma questão que apenas foi ofuscada com a vitória de Macron – mas que não se encontra respondida nem, muito menos, resolvida. E que num prazo não muito longínquo poderá levantar sérios problemas à França e, por extensão, à própria Europa, particularmente à da União. O facto de este projecto político, com mais de 40 anos de gestação, ter sido derrotado, não nos deve tranquilizar nem apaziguar as nossas preocupações e as nossas consciências. O perigo do nacionalismo populista e extremista continua à espreita, no centro da Europa, na pátria da liberdade, da igualdade e da fraternidade – e à mínima escorregadela do funcionamento do sistema político liberal implantado nas sociedades ocidentais, a alternativa pode estar ao virar da esquina.
Centremo-nos no vencedor. Emmanuel Macron superou todas as previsões, inclusive as mais favoráveis, que lhe davam a vitória. Congregou o voto de 2/3 dos franceses; 66% do eleitorado gaulês confiou num político sem experiência política relevante a que acresceu o facto de se apoiar apenas num movimento de cidadania que terá de evoluir rapidamente para partido político para se poder candidatar às eleições legislativas do próximo mês de Junho. Estrutura-se, basicamente, em torno da antiga UDF, a que se vão juntar uma série de independentes unidos por um programa que congregou desde a esquerda democrática à direita democrática. Macron ganhou mas só agora vão começar as suas verdadeiras dores de cabeça. A primeira talvez seja logo a da nomeação do seu primeiro-ministro. Depois, a de conseguir reunir um apoio parlamentar maioritário para o seu governo. O “En Marche” – que, entretanto, já evoluiu para “La République En Marche” – se não lograr maioria absoluta no próximo Parlamento, terá de optar por se virar para a sua esquerda, onde encontrará os resquícios dum Partido Socialista desfeito e uma esquerda radical unificada em torno da “França Insubmissa”, ou para a sua direita, onde se deparará com Os Republicanos em crise de identidade e uma Frente Nacional apostada em liderar a oposição ao governo de Macron. Donde, serem grandes as probabilidades de o próximo governo de França vir a resultar duma mais que provável aliança entre o “La République En Marche” e Os Republicanos – no quadro dum parlamento mais pulverizado, mais dividido e mais fracionado. Composta sua maioria parlamentar, irá Macron ter de se centrar nos diferentes dossiers da sua governação. Atendendo às competências constitucionais do Presidente da República francesa, o dossier europeu terá de estar entre as suas prioridades. A eurocracia de Bruxelas e a generalidade dos governos europeus congratulou-se com a vitória de Macron. Este, porém, ao lado da afirmação no projeto europeu, já deixou avisos claros de que a Europa da União tem de mudar e de se reformar, sob pena de desaparecer ou se diluir. Há cinco anos, Hollande disse quase o mesmo – e depois foi o que se viu. Daí que, seja bom dar tempo a Macron para avaliarmos o seu projeto europeu, as suas ideias e a sua capacidade de mobilização da própria França para o projeto europeu. Também aqui a euforia do passado domingo pode ter sido manifestamente prematura.
Em síntese, de Paris veio um voto que serviu, apenas, para um relativo alívio face às preocupações que emergiam. Um alívio, mas apenas um alívio relativo. Pela frente vão-se deparar desafios de magnitude ainda imprevisível.