Passaram menos de três meses sobre a tomada de posse de posse da nova administração norte-americana mas já foi o tempo suficiente para se constatar que a realidade já se come­çou a impor ao discurso populista e demagógico de Donald Trump que teve, na­quele ainda recente 20 de janeiro, uma das suas mais relevantes manifestações. O dis­curso em que Trump elogiou o isolacionismo norte-americano, celebrizado da célebre expres­são “América first”, fez uma profissão de fé nas vantagens do proteccionismo, disse-se Presidente dos Estados Unidos e não do resto do mundo e criticou o tempo e os recursos gastos na tarefa de levar a democracia a outros países. Tudo isto foi dito há me­nos de três meses!
E, no entanto, quem atentar nas decisões tomadas ao longo da última semana pelo Presi­dente dos Estados Unidos, dificilmente as conseguirá compaginar com as proclama­ções proferidas no momento do discurso de investidura.
Desde logo a posição adoptada face ao regime sanguinário de Assad. Na sequência do bombardea­mento do seu próprio povo com armas químicas interditas pela generalidade das convenções internacionais e pelo próprio direito da guerra, Trump não hesitou em rea­gir, por palavras e por actos. Na Flórida, ao lado do Presidente chinês, proclamou a inaceitabili­dade daqueles ataques, enunciou que os mesmos ultrapassaram todas as li­nhas vermelhas toleradas pela comunidade internacional, e deu ordem para que dois porta-aviões norte-americanos estacionados no Mediterrâneo lançassem um imenso ata­que de mísseis Tomawack sobre a base área síria donde partiram os aviões responsá­veis por aquele ataque químico. 59 mísseis de novíssima geração e quase infalível preci­são, devastaram e tornaram inoperacional a mesma base aérea. Tratou-se de um ataque cirúr­gico, com alvo bem definido, mas duma intensidade incomum e que nunca nenhum Presi­dente norte-americano antes de Trump se havia atrevido a lançar. A reação da comuni­dade internacional foi, praticamente, unânime no apoio à iniciativa norte-ameri­cana – se excetuarmos, obviamente, o caso da Rússia que suporta e sustenta o regime sí­rio, do Irão, do Hezzbolah e de mais um ou outro regime do mesmo jaez. Dir-se-á que o ataque não foi precedido da sempre necessária autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, face ao direito internacional, o tornaria legítimo. Impõe-se, toda­via, não esquecer, que todas as tentativas para aprovação de uma resolução por parte do Conselho de Segurança esbarraram sempre no veto sistemático da Rússia. Cedo se tornou evidente que a via diplomática e jurídica estava esgotada e prejudicada. Res­tava, infelizmente, a resposta militar. E Trump – o tal que dava sucessivas indicações de não se querer envolver em demasia nas questões internacionais – reagiu de forma surpreen­dente: pela rapidez, pela intensidade, pela determinação de que deu mostras. Recor­dando que desde 2013 tanto os EUA como a Rússia se tinham tornado garantes de que Assad não recorreria a armamento químico no conflito sírio, constando a sua utiliza­ção e a violação daquele compromisso, o Presidente norte-americano determinou o lança­mento do ataque que nunca nenhum seu antecessor ousou levar a cabo. Mostrou, a Assad, à Rússia e ao mundo, que continuam a haver linhas vermelhas que os EUA não permi­tem que sejam ultrapassadas porque a referida ultrapassagem, entre outros, põe em causa interesses nacionais fundamentais dos próprios Estados Unidos. Para além de interes­ses comuns da comunidade internacional. Da mesma comunidade internacional que fez saber o seu apoio generalizado, ainda que de uma forma envergonhada e a meia-voz. Era Trump a tomar uma medida acertada, não nos esqueçamos do detalhe….
Menos de quarenta e oito horas passadas sobre a ordem para o ataque à base aérea sí­ria, nova medida de forte visibilidade mediática tomada pela administração Trump: a or­dem para que a frota liderada pelo porta-aviões USS Carl Vinson, os contratorpedeiros USS Wayne Meyer e USS Michael Murphy e o cruzador USS Lake Champlain, que se diri­gia para a Austrália, invertesse o seu rumo e se dirigisse para águas ao Pacífico Ocidental e tomar posição perto da Península Coreana. O pretexto para esta demonstração de força aparece intimamente ligado à sucessão de testes de mísseis por parte do regime de Pyongyang, que a Coreia do Norte tem reiteradamente promovido.
Para um Presidente que iniciou o seu mandato secundarizando as questões externas e internacio­nais, as duas ações referidas que decorreram na passa semana constituem, obvia­mente, um dado novo a que convém prestarmos alguma atenção. É certo – a vida in­terna da nova administração não tem sorrido ao novo Presidente; e sabe-se que, em altu­ras de crise interna, nada melhor do que identificar um ou dois objetivos externos para neles centrar a atenção da opinião pública e levá-la a esquecer os insucessos da polí­tica doméstica. É uma regra básica de qualquer grande ou média potência internacio­nal. Apesar disso, não será prudente ignorar estes novos sinais que a nova administra­ção norte-americana está a passar para o mundo. Talvez o isolacionismo procla­mado acabe por não ter a dimensão inicialmente temida. E não seria caso virgem um Presidente norte-americano fazer-se eleger prometendo centrar-se nas questões de polí­tica interna e acabar o seu mandato atolado em questões e problemas internacio­nais. O caso mais recente foi o George W.Bush, empenhado em reverter o intervencio­nismo de Clinton no momento da sua eleição mas que, apanhando com o 11 de setem­bro em cima, não teve alternativa que não lançar os EUA na maior intervenção armada desde a segunda guerra mundial. A realidade, por vezes, encarrega-se de toldar os mais no­bres e elevados princípios e desígnios presidenciais.
No caso de Trump, pouco existe que nos permita identificar com rigor e precisão o seu pensa­mento em matéria de política externa. A “doutrina Trump” ainda não existe – está a ser construída dia-a-dia ao ritmo da realidade. Resta-nos estar atentos para a tentar perce­ber e identificar em toda a sua extensão.