As ondas de choque do referendo britânico sobre a saída do Reino Unido da União Europeia começam, agora, a fazer sentir as suas primeiras ondas de choque, permitindo trazer a lume inúmeras questões que tinham sido esquecidas no período que antecedeu a sua realização pelo simples facto de que, pura e simplesmente, ninguém se lembrou de as considerar e de as equacionar. A primeira de todas elas, que está a marcar a agenda destes primeiros dias, é a mais óbvia de todas – quando é que o resultado do referendo produzirá os seus efeitos? Segundo o artigo 50º do Tratado da União Europeia, a partir do momento em que um Estado decidir sair da União, deverá notificar formalmente o Conselho Europeu dessa vontade, abrindo-se posteriormente um período de negociações não superior a dois anos para conclusão do acordo de saída. Já se viu, todavia, que os timings quer do Reino Unido quer da União Europeia estão muito longe de coincidirem.
A União Europeia, já o disseram Juncker, Tusk e, mesmo, Merkel, pretende que a saída se concretize o mais rápido possível. Para isso, “exigem” que o governo de Londres notifique a União da sua vontade de sair o mais rápido possível, para se iniciarem as negociações também o mais rápido possível e a saída se concretizar o quanto antes.
Londres, pelo contrário, tem dado mostras de não ter grande pressa em notificar a União da sua vontade de sair. Cameron anunciou a sua demissão a prazo, estimando oportuno apresentá-la à Rainha num prazo máximo de três meses: o tempo considerado necessário para gerir todos os impactos da decisão de saída, colocando a ordem possível num processo que, se for desordenado, pode levar o caos a muitas economias europeias, começando pela própria economia inglesa. Acresce que, tendo lançado o Reino Unido neste processo quase suicidário, Cameron já deixou suficientes indícios de que não vai querer ser ele a negociar com a União Europeia os termos da saída do Reino da União. Vai deixar o encargo e a tarefa para outro, para o seu sucessor. Em termos de coerência e verticalidade, parece estarmos falados…
Mas nesta diferença de calendários, a faca e o queijo estão na mão de Cameron e do governo britânico. É ele e só ele que pode decidir qual o momento em que pretende notificar a União da sua vontade de sair. Ninguém o pode fazer por ele – e a EU tem de se submeter e estar à espera de receber a referida notificação, no tempo que Londres entender fazê-la.
Outras questões, todavia, vão surgir num prazo imediato. Desde logo a questão das nacionalidades e das independências que pode estar intrinsecamente associada à manutenção do Reino Unido tal como o conhecemos hoje.
Em primeiro lugar a Escócia. Tendencialmente europeísta, a Escócia tem jogado a cartada europeísta para contrabalançar o seu desejo independentista. Afirma a sua vontade independentista moderando-a com o desejo de permanência na União Europeia. A primeira-ministro escocesa já veio alvitrar como altamente provável a realização de um novo referendo independentista. O qual, a ter sucesso, antecederá o pedido de adesão à União Europeia. Com Londres na EU, essa pretensão seria de todo inviável. Sem Londres na União, há um obstáculo de monta que é ultrapassado. Não se pode dizer que seja o único (lembremo-nos de Espanha….) mas é, seguramente, o mais relevante e o mais importante.
E depois temos o caso irlandês. Bem mais complicado e complexo do que o caso escocês. A partir do conhecimento dos resultados do referendo, começaram a ouvir-se de imediato vozes a reclamarem um referendo que decida sobre a reunificação das duas Irlandas. O assunto é deveras controvertido, não só por razões históricas como, sobretudo, pelo facto de não lhe ser estranha uma componente religiosa que separa católicos de protestantes. Uma coisa é certa – ninguém pode encarar de ânimo leve a possibilidade de ser limitada a livre circulação entre as duas Irlandas ou serem restabelecidos apertados controles fronteiriços sem que isso signifique o reacender dos nacionalismos, dos extremismos, a possibilidade de recrudescimento de uma violência já julgada ultrapassada. Mas uma coisa parece certa: o Brexit veio, também, reabrir esta outra caixa de Pandora, acordando demónio há muito tidos por aquietados.
Estes são, apenas dois dos mais controvertidos dossiers que o resultado do referendo da passada quinta-feira veio reabrir. Imensos outros se irão conhecendo com o decurso do tempo – sempre na óbvia suposição que a Inglaterra, pátria do parlamentarismo, irá democraticamente assumir os resultados do referendo realizado, não enveredando pelas práticas de muitos outros Estados que, quando os resultados referendários não são o que é politicamente correto supor que sejam, vão repetindo os referendos até sair o resultado esperado. Apesar de tudo, do Reino Unido não se espera uma tal desconsideração à democracia – pese embora já esteja em marcha uma petição com mais de três milhões de assinaturas para pedir ao Parlamento a repetição do referendo. Em Inglaterra, dificilmente uma manobra destas poderá ter sucesso. Por muito que haja a consciência e a convicção de que a repetição do referendo iria dar um resultado significativamente diferente do que foi conhecido na passada quinta feira. Mas isso são práticas de democracias formalmente adultas mas substancialmente infantis. A democracia britânica, pese embora as surpresas com que, por vezes, brinda, é formal e substancialmente adulta.
Resta uma reflexão sobre este referendo do ponto de vista da União Europeia. A ela consagraremos um dos próximos textos.
Post-scriptum: enquanto tudo isto foi acontecendo na relação do Reino Unido com a União Europeia, bem aqui ao lado, no passado domingo, os espanhóis foram uma vez mais a votos. Um grande vencedor improvável (Mariano Rajoy) e um enorme derrotado imprevisto (Pablo Iglesias) voltaram a colocar a chave da governação espanhola nas mãos de Pedro Sanchez e do PSOE (que segurou in extremis a sua posição de segundo partido mais votado). Sanchez, porém, tem uma escolha difícil: ou viabiliza a governação de Rajoy e será triturado no seu partido, ou mantém-se firme nas suas convicções e conduzirá Espanha para novas eleições em Dezembro e será triturado pelo eleitorado. Não está fácil a vida para os socialistas espanhóis, que terão perdido, inclusivamente, a possibilidade de criarem uma geringonça em Madrid.