Seis meses passados sobre a entrada em funções da geringonça e três meses depois de os afetos reinarem no Palácio de Belém, já ninguém parece arriscar que o governo estará para cair a prazo ou que o relacionamento entre Belém e São Bento promoverá essa queda no curto prazo. Aliás, todos quantos prognosticaram a impossibilidade da geringonça, num primeiro momento foram de recuo em recuo, saltando de argumento em argumento, na esperança de que um deles haveria de se verificar. Cedo constataram, porém, que a habilidade política de António Costa ia prevalecendo e contornando cada obstáculo que se lhe deparava. Hoje, seis meses volvidos, poucos ou nenhuns arriscam o que quer que seja pela queda do governo e muitos até já se converteram à convicção de que teremos geringonça para quatro anos.
Os últimos tempos, porém, têm demonstrado sintomas ou sinais, por ténues que sejam, que devem ser levados em consideração ou, pelo menos, não podem ser desconsiderados em qualquer análise que façamos sobre a estabilidade político-institucional dos tempos mais próximos.
Centremo-nos por minutos no Palácio de Belém e no Presidente da República. No âmbito da atual Constituição da República, Portugal tem, hoje, o Presidente da República que mais longe leva a leitura dos seus poderes constitucionais e que mais aposta no reforço da componente presidencial de um sistema que é misto e que se pretende que assente no equilíbrio entre a dimensão presidencial e a dimensão parlamentar. Quer Ramalho Eanes, quer Mário Soares, quer Jorge Sampaio quer, sobretudo, Cavaco Silva caracterizaram os seus mandatos por uma assinalável sobriedade quanto à extensão e à leitura dos seus poderes constitucionais.
Pela sua própria idiossincrasia, maneira de ser e, inclusive, formação académica, Marcelo Rebelo de Sousa é a antítese de todos os seus antecessores. A que se deve somar uma indómita sede de protagonismo e uma irrequietude bem patente e comprovada, por exemplo, pela sua agenda oficial. Temos hoje, como nunca tivemos antes, e ainda o pudemos constatar esta semana com a deslocação à Alemanha, um Presidente da República interveniente, que vai a todas e recebe todos, se pronuncia sobre tudo e sobre tudo tem uma opinião; que não é indiferente a dados económicos, greves de estivadores, financiamento de colégios particulares ou questões europeias; que perora contra comentadores que ousam emitir opiniões, esquecendo o seu próprio passado. E que nesse afã de hiperatividade ainda não colidiu com a agenda da geringonça por mero acaso ou obra do destino. Mas que, mantendo este rumo e esta direção, mais tarde ou mais cedo acabará por colidir com a própria agenda governamental.
E nesse dia, no dia em que António Costa tomar consciência que já não terá de se equilibrar apenas entre Jerónimo e Catarina, mas deverá passar a ter de levar em consideração também a agenda de Marcelo Rebelo de Sousa – talvez regressem as razões e os motivos para equacionar a manutenção da geringonça no poder. Desta feita, porém, a principal ameaça poderá não provir de São Bento, mas de Belém. E se os amigos de ocasião, Catarina e Jerónimo, serão facilmente domesticáveis – porque, no limite, nenhum deles terá interesse objetivo em provocar a queda da geringonça – já os objetivos e o calendário de Marcelo escapam em absoluto ao controle do Primeiro-Ministro. E este dado pode fazer toda a diferença. Pode distinguir uma ameaça de crise que António Costa consegue controlar, duma ameaça de crise que o Primeiro-Ministro não controlará.
Ao conviver com a rédea solta de Marcelo Rebelo de Sousa, ao tentar inclusivamente aproveitar-se dessa hiperatividade presidencial para a colocar ao serviço da geringonça, António Costa poderá estar a dar a Marcelo a corda com que acabará por se vitimar.
Nessa medida, enquanto muitos dos “pessimistas militantes” olham para São Bento e para a Assembleia da República para divisarem indícios e sinais que possam pôr em causa a estabilidade governativa, por mim, que sou dos que consideram que um pessimista não é mais do que otimista bem informado, creio que a principal ameaça à estabilidade governativa e institucional poderá ter mais origem em Belém do que em São Bento. É, apenas, uma convicção.