Depois do referendo do passado domingo criou-se, no mainstream do politicamente correto europeu, a ideia que os gregos haviam dado uma verdadeira lição de democracia à Europa e aos europeus que, com ela se deviam conformar e a deviam acatar. Com as devidas desculpas a quem professa tal credo, discordo do mesmo. Entendamo-nos:
A Grécia e os gregos, pátria, referência e matriz da democracia ocidental, são credores dos maiores encómios por parte dos europeus e da civilização ocidental. Quantas vezes, hoje, são “descobertos”, invocados e aplicados princípios e regras que, uma investigação mais aturada, acaba por revelar já terem sido descobertas e praticadas na Grécia antiga! Somos, por isso, devedores dessa contribuição grega para a civilização em que nos inserimos. Creio, todavia, que o crédito fica por aí. Com um pouco mais de boa vontade, estender-se-á à oposição que protagonizaram aos exércitos nazis por altura da segunda guerra mundial. Admito que também lhe possamos dever isso. E aceito que reconheçamos que o povo grego tem sido martirizado, humilhado e sofrido um empobrecimento sem limites fruto exclusivo das escolhas que têm efetuado.
Já não lhes devemos, porém, as opções políticas que têm feito, as escolhas erradas que têm efetuado, a destruição da sua economia que protagonizaram, a corrupção que encobriram, a desestruturação do Estado que originaram, o clima de impunidade e saque fiscal de que tanto gostam, os desvarios financeiros de que deram provas. E sobretudo, não lhes devemos a dívida que construíram, os défices orçamentais que aceitaram, o caos financeiro em que se meteram. Isso, nós não lhes devemos nem, por isso, podemos ser minimamente responsáveis. No limite, nós, europeus, podemos ser acusados de, assistindo a tudo isso termos sido complacentes. A complacência, todavia, não gera conivência nem produz co-responsabilização.
Admirador, portanto, da clássica civilização grega, não me sinto minimamente obrigado a admirar a prática dos atuais dirigentes políticos da Grécia contemporânea. Mais – acredito que essa prática envergonharia os expoentes e os arautos do pensamento político clássico ateniense. Muitos destes vultos de sempre, terão dado verdadeiras voltas nos seus túmulos assistindo aos princípios de governo dos seus atuais descendentes.
Dito isto, impõe-se destruir outro mito que saiu reforçado do referendo do passado domingo: não existiria Europa sem a Grécia. Coloquemos as coisas em perspetiva: se não poderia existir espírito europeu sem a contribuição dos clássicos gregos, estamos de acordo; se não poderia existir União Europeia sem a atual Grécia, lembremo-nos apenas das dezenas de anos de existência da mesma União (Comunidades Europeias) sem a Grécia a integrar. E não foi por isso que o projeto europeu deixou de ser criado e gerado pelos pais fundadores.
Vem isto a propósito das afirmações precipitadas que quiseram impor o resultado do referendo grego do passado domingo a toda a Europa comunitária, aos seus Estados e às suas instituições, como se o mesmo tivesse uma eficácia extra-territorial, impondo-se a Estados terceiros, a povos terceiros, mesmo àqueles que não haviam votado no referendo grego. Ou seja, os gregos teriam o dom de votar e decidir por todos os europeus; estes, dever-se-iam conformar e aceitar as escolhas gregas. Sem tugir nem mugir.
Acontece que este raciocínio esquece um “detalhe” fundamental – as democracias dos restantes Estados parceiros da Grécia, em nada são inferiores ou menores que a democracia grega. E se o gregos têm o dever de tratar da sua vida e defender os seus interesses, os restantes Estados Europeus têm idêntica obrigação e direito. E um desses direitos, se assim o entenderem, é decidir que não querem continuar a pôr dinheiro em cima do problema grego, para onde já transferiram mais de 260MM€! Visão egoísta? Pode ser que sim. Não mais egoísta, porém, do que algumas opções políticas gregas que têm pretendido condicionar a Europa, os seus Estados e as suas instituições. Imagine-se que alguém propunha um referendo europeu para os europeus decidirem se queriam que os seus impostos fossem pagar dívidas dos gregos. Alguém tem dúvida do que diriam os europeus?
Resta-nos, assim, recentrar o problema e a questão principal. A Grécia é importante para o projeto europeu e nele deve continuar. A situação em que voluntariamente se colocou e as suas próprias debilidades obrigam-na a negociar com os seus credores, obtendo plataformas de entendimento, consensualizando e acordando, cedendo e não impondo, abdicando de qualquer pseudo-superioridade moral por referência aos seus parceiros e credores. O seu povo já tem sido sujeito a sacrifícios sem paralelo por se haver colocado (in)conscientemente em situações que a tanto obrigaram. Merece tolerância, compreensão e auxílio europeu. A Europa, Estados e instituições credoras, por seu lado, têm o direito de exigir o cumprimento das regras da zona euro, o reembolso do que emprestaram aos gregos mas, simultaneamente, o bom-senso de não asfixiarem este povo e este Estado, sob pena de todos saírem a perder. Não são, pois, difíceis de enunciar os princípios que devem nortear um acordo que se deseja e por que se anseia.
Agora, por favor, não nos venham tentar impingir a ideia de que somos todos gregos porque, felizmente e a bem da própria Europa, não, não somos todos gregos. Somos todos europeus. Unidos, mas na nossa diversidade. A saída da Grécia da zona euro significaria um forte golpe no projeto político que constituiu o euro. Mas a sua permanência a qualquer custo, sob chantagem negocial, poderia acarretar, para este projeto, efeitos tão ou mais perniciosos que se impõe evitar. É a hora de a Europa que sobra e resta demonstrar que ainda tem um mínimo de bom-senso e de equilíbrio. Porque, no final, vai ser da Europa, dos seus Estados e instituições, a palavra final desta tragédia grega.