Foi preciso Loretta Lynch tomar posse, há cerca de um mês, como Secretária da Justiça dos Estados Unidos, para o mundo do futebol sofrer um dos maiores abalos que a sua história regista e quebrar-se, pela primeira vez, a sensação de impunidade que parecia cobrir as atuações dos principais dirigentes da sua estrutura de cúpula mundial. Duma assentada, e sem que nada o fizesse prever, foram detidos oito membros da direção da FIFA, acusados duma diversidade de crimes que incluem a corrupção, a fraude fiscal, o branqueamento de capitais, a burla, vários outros. Dum momento para o outro, o edifício do futebol mundial tremeu – mas, ainda assim, não ruiu. E apesar de o seu líder máximo se encontrar sob investigação policial na Suíça, impedido de abandonar o país, reelegeu-o para mais um mandato de quatro anos à frente da sua federação mundial. Federação que, em muitos domínios, a começar pelo económico e financeiro, se assemelha em muito a um verdadeiro Estado transnacional, alicerçado num poder tentacular, hegemónico, insindicável, não raro despótico.
O poder de que a FIFA tem beneficiado tem progredido na direta proporção da evolução do futebol de uma simples modalidade desportiva para uma indústria e um dos negócios mais relevantes do mundo, movimentando verbas e quantias cada vez mais incalculáveis, estendendo a sua influência a sectores cada vez mais amplos de um número cada vez maior de países e de Estados. Mais do que uma federação ou confederação desportiva, a FIFA é, hoje, uma das mais poderosas organizações internacionais que se movimentam à face do planeta, que beneficia do facto de atuar sem qualquer concorrência e que se dá ao luxo de, inclusivamente, beneficiar de um sistema jurídico próprio, chamando a si, em domínios cada vez mais extensos, a competência exclusiva para a regulação de um leque cada vez mais alargado de matérias. O seu poder é crescente, beneficiando da capacidade de regulamentar um fenómeno que, por natureza, é um fenómeno de massas – o futebol internacional. É a coberto do futebol internacional que gira toda uma poderosíssima máquina organizativa, burocrática, comercial que tanto cumpre a função desportiva que lhe está incumbida como se movimenta no mundo paralelo dos negócios internacionais chegando ao ponto de, não raro, forçar a mão e impor a sua vontade aos próprios Estados que incumbe de organizar as suas provas. Coordena e integra mais de 200 federações nacionais, estabelece protocolos de colaboração com entidades como a ONU ou a União Europeia, gere uma riqueza superior ao PIB de muitos Estados de pequena e média dimensão – e fá-lo, por regra, impunemente e sem prestar contas a quem quer que seja. Verdade se diga – beneficia da demissão e dos favores que muitos Estados lhe prestam e do temor reverencial que suscita em muitos governantes por esse mundo fora. Sobretudo nos Estados menos desenvolvidos e, por isso, mais atreitos e predispostos à traficância de interesses e à submissão colaborante com quem dispõe do acesso e do poder de financiar quem manda e quem governa.
Mas se as suspeitas e os rumores sobre a (i)legalidade das suas práticas e dos seus negócios não são de hoje nem de ontem, foi preciso que a suspeita tocasse solo norte-americano para soarem as campainhas de alerta e se desencadeassem os procedimentos de cooperação judicial internacional em matéria penal que culminaram com as detenções que se fizeram públicas a escassas quarenta e oito horas da FIFA reeleger Blatter para o seu quinto mandato consecutivo. Este, por seu turno, optou pelo eventual único caminho que lhe sobrava – avançando para a sua própria reeleição na convicção que o manto do cargo o possa proteger (ou retardar) as mais que prováveis acusações a que dificilmente escapará. É a típica fuga em frente de quem, por desespero, não consegue divisar caminho alternativo. O seu destino, porém, parece talhado – e não será feito nem de honra nem de glória. Se dúvidas houver, basta atentar no que foi declarado pelo dono do grupo Traffic (um verdadeiro império onde se contava a sociedade até há pouco tempo detentora da SAD do Estoril-Praia), o brasileiro José Hawilla, um dos envolvidos que aceitou colaborar com a justiça norte-americana na investigação sobre fraude, lavagem de dinheiro e corrupção nos últimos 24 anos, durante os quais, segundo as autoridades, foram pagos cerca de 140 milhões de euros em subornos.
É esta, infelizmente, a realidade de futebol internacional, na sua superestrututura dirigente, nos dias que correm. Uma realidade, infelizmente, percepcionada pelo grande público, ainda que não de forma absolutamente igual ou idêntica em todas as latitudes, mas que contribui, indelevelmente, para que o futebol seja hoje em dia uma modalidade que não escapa imune à suspeição da permeabilidade aos mais diferentes tipos de interesses e negócios. E que, em vários continentes – sobretudo em África e na Ásia – não é separada das próprias ligações promíscuas aos detentores dos diferentes poderes políticos instalados. Que manobra, que controla, que compra e de que chega a dispor. É, nessa medida, um agente que atua à escala planetária e que não é estranho ao próprio fenómeno político. Ou não tem sido estranha a esse fenómeno. Se dúvidas houver, basta atentar nas reações políticas que estas diligências judiciais motivaram – de Putin a Cameron, da França à Alemanha. Se a iniciativa judicial norte-americana contribuir para, pelo menos, ajudar a separar as águas entre estas duas dimensões, já terá valido a pena. Independentemente dos objetivos ou sucessos que consiga lograr no estrito âmbito da atividade da FIFA.