Na semana transata o bispo de Roma, sucessor de Pedro – buscado lá nos confins do Mundo, como o próprio salientou aquando da sua eleição – surpreendeu o Mundo com uma absolutamente extraordinária entrevista a um canal de televisão português. Prática totalmente incomum, ademais se se considerar que perante si não tinha as câmaras de um daqueles canais televisivos de dimensão global, capazes de fazerem chegar instantaneamente as suas mensagens e os seus exclusivos aos quatro cantos do globo, antes um canal português, um jornalista português, o que contribuiria para dar à entrevista, seguramente, uma projeção mediata. Não obstante, o mundo teve oportunidade de presenciar um daqueles momentos raros, que perdurarão na memória de quantos tiveram (ou ainda vão ter) oportunidade de observar a mensagem que o Papa Francisco nos quis transmitir.
O pretexto para a conversa mantida com Henrique Cymerman foi a organização, também ela totalmente original e surpreendente, de um momento de oração, na casa do Pontífice em Roma, entre os Presidentes de Israel, Shimon Peres, e da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, convidados para orarem às respetivas divindades, em simultâneo (que não necessariamente em conjunto), pela paz nesse oriente médio que continua a ser das mais atribuladas regiões deste nosso pobre planeta. Também a iniciativa foi inédita e não fora a teimosa ortodoxia do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, poderia vir a ter muito mais do que o caráter simbólico de que efetivamente se revestiu.
Voltemos, todavia, à entrevista. Nela, o Pontífice assumiu-se como o Homem que os sempre imperscrutáveis caminhos da Providência colocaram à frente dos destinos da Igreja Católica mas que é perfeitamente ciente das suas limitações humanas, do circunstancialismo do mundo que o rodeia, do próprio relativismo que vai fazendo o seu caminho e – principalmente – foram mais as dúvidas e as reticências que nos deixou do que as afirmações herméticas ou dogmáticas que produziu. Sem se furtar a qualquer tema, soube ter a sapientia de exprimir dúvidas perante questões controvertidas. Os secessionismos que parecem grassar na Europa foram um desses temas. Interrogado sobre a questão catalã, acrescentou-lhe de motu proprio a questão escocesa e alguns movimentos secessionistas italianos. Teorizou sobre o direito à emancipação dos povos distinguindo com clareza entre os anseios que se fundam num direito histórico e as ambições motivadas por puros desígnios de conveniência política. E terminou com duas conclusões que seria bom os governantes de turno levarem em conta quando a questão lhes for colocada: em primeiro lugar, que se trata de assunto que deve ser “tratado com pinças” (sic), relativamente ao qual todo o cuidado será pouco; em segundo lugar e principalmente, que cada caso é um caso pelo que não se poderão construir elaboradas teorizações que desconheçam e ignorem o circunstancialismo e as condições concretas de cada situação. Em breve, muito em breve, este nosso velho e desregulado continente será colocado perante desafios graves que terão a sua origem nestas ambições independentistas e secessionistas. Será bom que, nesse momento vindouro mas breve, os dirigentes de turno não esqueçam a sabedoria evidenciada por Francisco sobre este tema.
Pouco dias depois, Sua Santidade teve oportunidade de aprofundar e desenvolver as suas preocupações. Visitando a Comunidade de Santo Egídio, foi uma vez mais a voz papal que assumiu o papel tribunício de denúncia dos males que afetam o velho continente: “a cultura do dinheiro e do descartável – uma espécie de eutanásia escondida, porque descarta os idosos, os doentes, as crianças e os próprios jovens desempregados, porque não servem para a produção”. Tudo isto como antecâmara da conclusão óbvia: vivemos numa Europa desumanizada, desfigurada, cansada e esquecida das suas raízes. E, logo de seguida, o não menos óbvio apelo: “a Europa está cansada. Temos de a ajudar a rejuvenescer, a encontrar as suas raízes. Renegou as suas raízes; temos de a ajudar a reencontrá-las”.
Quem, também por dever de ofício, tem obrigação de estar atento às posições que a Igreja Católica, pela voz dos seus pontífices, vai assumindo face ao projeto europeu em construção, não pode deixar de ver e ouvir, nas sábias palavras de Francisco, forte coincidência e profunda semelhança com o magistério outrora protagonizado por São João Paulo.
E, assim sendo, resta-nos a serena tranquilidade de saber que, da cadeira do successor de Pedro, volta a ouvir-se uma voz sábia e prudente que encara a regeneração da Europa e do projeto europeu como uma condição indispensável para a superação das dificuldades que se nos deparam. Tal como, nos finais do século passado, quando foi preciso enquadrar o final da Guerra-fria, a queda do muro e a implosão do império soviético, se ouviu, com igual clareza e firmeza, a voz do saudoso e Santo Papa-mineiro.