Com a sua aventura ucraniana, em que com apoio de carros de combate e tropas russas, e milícias armadas por Moscovo, a Federação da Rússia violou a integridade das fronteiras de um Estado soberano com quem mantinha fronteiras em comum, anexando uma parte do mesmo (a Crimeia) depois de um referendo-fantasma não reconhecido pela comunidade internacional que antecedeu o óbvio pedido de anexação ou inclusão da Crimeia na Federação da Rússia, poder-se-ia pensar que o líder russo, Vladimir Putin, teria alcançado os seus objectivos, nomeadamente: amputar uma parte significativamente estratégica do território do seu vizinho; desestabilizar politicamente a Ucrânia, abrindo as portas para novas secessões que tenham na sua base a partilha de uma língua comum; dar início à construção de um cordão sanitário ou de segurança, defendendo as suas fronteiras, na esteira do que foi desenvolvido pela União Soviética, como forma de defender e preservar o seu império e a sua área de influência geográfica na Europa cujas fronteiras foram as que saíram de Yalta e do fim da segunda guerra mundial; e, obviamente, os objectivos económicos associados à grande dependência de parte significativa da Europa do gaz que, apesar de produzido em território russo, necessita do território ucraniano e da rede dos gasodutos que o atravessa para poderem chegar ao respetivo consumidor final. Olhando para os resultados conseguidos nesta operação-relâmpago, beneficiando da impreparação da UE para responder de forma atempada e eficaz a este tipo de crises e aproveitando o adormecimento dos EUA, mais vocacionados para a sua costa do Pacífico do que para a retaguarda atlântica, dada por segura e garantida, dir-se-ia que a operação da Crimeia teria constituído um total e completo êxito e um inquestionável sucesso para o Presidente russo Vladimir Putin.
Creio, todavia, que para além dos objetivos enunciados e plenamente alcançados, Putin teria em mente um outro – quiçá tão ou mais importante que todos os restantes – onde estaria a apostar fortemente e que, manda a verdade dizê-lo, talvez já possa ser dado por não cumprido e não alcançado.
Para além de todos aqueles objectivos, parece hoje uma evidência que Putin apostou forte tanto na divisão intra-europeia como na ruptura dos laços transatlânticos e da relação dos EUA com a Europa e, nomeadamente, a Europa da União. Decerto: nem a UE nem os EUA reagiram a este episódio e a esta crise – tida como a mais grave desde a queda do Muro de Berlim e o fim da guerra-fria – como deveriam ter reagido. Por razões diferentes e motivos diversos: a União Europeia, por falta de estruturas adequadas e capacidade logística (militar) adequada; os EUA, por manifesta desatenção e erro de avaliação sobre as prioridades da política externa russa. Pese embora tais deficiências, é imperativo reconhecer e constatar que, passadas as horas iniciais de desnorte e descoordenação, os aliados transatlânticos souberam manter o mínimo que se lhes exigia, preservando os laços mínimos da aliança que os vincula e une ambas as margens do Atlântico.
Não foi tarefa fácil e houve oportunidade de o constatar, por exemplo, se atentarmos no quão difícil foi a União Europeia entender-se sobre um catálogo mínimo de sanções a aplicar à Federação da Rússia e, mesmo quanto às que foram adotadas, serem legítimas as dúvidas sobre a sua eficácia. Apesar disso, houve a necessária arte e o suficiente engenho para preservar uma coesão mínima de que a expressão máxima terá sido a viagem empreendida pelo Presidente Barack Obama à Europa na passada semana, nos dias imediatos à eclosão da crise e à anexação da Crimeia por parte da Federação russa. Desdobrou-se em contactos bilaterais, visitou os principais aliados europeus e a sede da NATO – onde validou a escolha do futuro Secretário-Geral da organização, o antigo primeiro-ministro norueguês Jens Stoltenberg, escolhido para suceder a Anders Fogh Rasmussen – e, sobretudo e pela primeira vez, incluiu as instituições comunitárias da União Europeia no roteiro desta sua visita – a que não faltou a visita ao Vaticano e a Sua Santidade, o Papa Francisco. E ao longo de todas as intervenções que teve oportunidade de fazer, Obama colocou sempre o acento tónico na necessidade de fortalecer e solidificar os laços transatlânticos – reforçando-os como forma de fazer frente à “força bruta” da Rússia. Dir-se-á que foi preciso a crise ucraniana para o Presidente dos Estados Unidos recordar que o Ocidente é matricialmente europeu e que é do interesse dos próprios EUA que o Ocidente em que se integram não percam a sua matriz nem a deixem enfraquecer a ponto de a mesma se tornar irrelevante ou dispensável. As palavras de Obama permitem manter acesa a esperança de que tal evidência tenha sido compreendida pelos Aliados dos dois lados do Atlântico, europeus e norte-americanos. Mais vale tarde do que nunca; e mais ainda valerá se se tratar de uma postura sincera que passe das palavras aos atos. A assim acontecer, Putin poderá ter ganho esta batalha mas estará longe de ter ganho a guerra. Ou de ter cumprido o seu desígnio primeiro de fraturar e quebrar a aliança transatlântica. Lamentar-se-á que a Crimeia possa ter sido o preço a pagar pelo Ocidente para assegurar a coesão daquela aliança. Mas será, também e paradoxalmente, a maior prova de que o líder russo terá alcançado muitos dos objectivos que se propôs alcançar sem, todavia, lograr atingir aquele que seria o seu objetivo prioritário. A política internacional também é feita de alguns paradoxos.