Foi sem surpresa nem admiração que o mundo tomou conhecimento que o referendo realizado no passado domingo na Crimeia revelou um resultado amplamente favorável às teses secessionistas das autoridades-fantasma que o impulsionaram. Cerca de 95% dos votantes pronunciaram-se a favor da integração da Crimeia na Federação da Rússia. Pouco relevará que a abstenção tenha sido gigantesca, que o referendo que se realizou potencie novos referendos noutras regiões de maioria de habitantes de ascendência russa que acabem por dissolver ou diluir a atual Ucrânia afetando a sua integridade territorial. E, por certo, são meros pormenores administrativos tanto o facto de o referendo em causa ter sido organizado por autoridades não legitimadas democraticamente, debaixo da tutela de milícias civis armadas pelo exército russo, subordinado à tutela das Kalashnikov fornecidas por Moscovo como a circunstância de tal consulta popular se ter processado à completa revelia da Constituição ucraniana, o que lhe conferiu absoluta ilegitimidade e ilegalidade. Outro tanto se diga da unânime falta de reconhecimento internacional deste ato referendário. Com exceção da Federação da Rússia, não há notícia de mais nenhum Estado ou organização internacional haver reconhecido o referendo realizado na Crimeia. A forma, todavia, como a comunidade internacional (não) reagiu ao mesmo, diz-nos tudo sobre o respetivo grau de organização, eficácia e eficiência. Ouviram-se piedosas declarações de intenção, enfáticos apelos a valores e princípios que era suposto serem unanimemente respeitados e reconhecidos – mas não se conhece uma única reação que tenha preocupado ou feito hesitar, e recuar, Vladimir Putin. Este, aproveitando a desorganização reinante na comunidade internacional, vai aproveitando as fraquezas de quem se lhe podia opor para, lentamente, consolidar o seu poder e alargar geográfica e territorialmente as fronteiras do mesmo. O Ocidente – a Europa, a da União e a outra, bem como os próprios EUA – apesar de matricial da grande e santa-mãe Rússia a tudo vai assistindo, complacente e permissivo. E o poder russo, desviacionismo desse ocidente matricial, fortalece-se e alarga a sua esfera de influência, tanto direta como indireta. Como afirmava há dias Miguel Monjardino, quem vai ser decisivo nesta questão da expansão do poder e da influência do Kremlin são os norte-americanos, os alemães e toda a cintura que vai do Mar Báltico ao Mar Negro. O cálculo de Vladimir Putin é que esse mundo euro-atlântico não tem vontade nem capacidade para se unir em torno deste ponto. Se for verdade, então todas as bases da integração europeia estarão postas em dúvida.
Porém, não é essa, todavia, a única consequência do referendo na Crimeia e da imediata deslocação a Moscovo de uma delegação do novo poder assim instituído com a finalidade de iniciar as negociações visando a integração da Crimeia na Federação da Rússia. Sem embargo das suas consequências imediatas – onde se contam o início do caminho para a dissolução da Ucrânia tal como a conhecemos até agora e a sua absoluta ilegalidade tanto face às normas do direito internacional público como à luz do próprio direito constitucional ucraniano – será, todavia, no plano das consequências mediatas que esta violação da legalidade internacional mais se poderá fazer sentir. Sobretudo pelos sinais que irradia para outras latitudes, para outras regiões, que por igual já demonstraram idênticos sinais ou ambições autonomistas ou independentistas.
Se o referendo na Crimeia, para nós europeus ocidentais, é algo de distante, que se passa quase lá nos confins da fronteira ocidental da Europa, perto do lugar onde esta se entrelaça com a Ásia, para mais numa região que conhecemos mal tanto do ponto de vista político como nos planos económico e geoestratégico, se tudo isto confere a este assunto um sentimento de distância longínqua que nos pode levar a pensar ser coisa que não nos afeta nem nos respeita diretamente, convirá sermos um tanto ou quanto mais prudentes quando nos lembrarmos e recordarmos que, para este ano de 2014, estão marcados dois referendos independentistas bem mais próximos de nós: na Escócia, visando a independência do Reino Unido; e na nossa vizinha Catalunha, visando a separação do Reino de Espanha. Ou outras ambições independentistas e autonomistas que podem estar adormecidas e serem acordadas por este aventureirismo que parece campear em várias latitudes.
Ora, qualquer um destes casos nunca poderá ser tratado ou encarado com a mesma ligeireza e a mesma falta de estratégia por parte, desde logo, da União Europeia – sendo certo que ainda não se divisam estratégias nem formas de lidar com as questões que inevitavelmente vão surgir tanto na Escócia como na Catalunha. Poder-se-á dizer que as questões são, em primeiro lugar, de política interna dos Estados a que respeitam. O grau de integração a que a União Europeia pretende aspirar é incompatível com uma ausência de posição, uma posição dúbia ou qualquer tipo de hesitação como aquelas que a União Europeia tem revelado face à crise ucraniana e, mais recentemente, aos últimos desenvolvimentos desta consubstanciados neste referendo secessionista. Ontem já era tarde para começar a encarar, com rigor e com seriedade, estes dois desafios que estão aí, ao virar da esquina.