Faleceu hoje Vaclav Havel, figura primeira do europeísmo da resistência e artífice principal da Revolução de Veludo que, sem quebrar um vidro ou derramar uma gota de sangue, derrubou um governo, ruiu um sistema e cindiu um país. Em texto académico publicado, dedicámos-lhe as seguintes palavras:
O fim da guerra–fria e o longo período de declínio que antecedeu esse final não pode, porém, ser apenas imputado à importante ação desenvolvida por um punhado de estadistas que as circunstâncias colocaram no governo dos seus Estados em momento simultâneo. Porque o sistema bipolar ruiu a leste, justamente a leste esse facto não pode ser dissociado de uma importante batalha travada por povos mudos e oprimidos que buscavam a verdade e a autenticidade. Para o efeito invocavam valores relativizados a ocidente porque mal compaginados com uma sociedade de consumo em que o ter prevalece sobre o ser. Como novos projetistas da paz deste fim de século, recorreram ao único poder à sua disposição — o poder do verbo — para enfrentarem o Estado que oprimia e o partido que controlava. No seu conjunto formaram uma autêntica Internacional de Dissidentes que começou a ganhar forma e estrutura com a publicação, em Janeiro de 1977, em Praga, da Carta 77 e que se desenvolveu com a reunião ocorrida algures na fronteira polaco–checa entre dissidentes de ambos os países em Agosto de 1978. No movimento assume protagonismo especial Vaclav Havel — o dramaturgo que a Revolução de Veludo colocará à frente dos destinos da Checoslováquia e, após a sua secessão, da novel República Checa. As preocupações dos cartistas eram bem definidas e nada tinham a ver com as que ocupavam os espíritos ocidentais: ante a decadência que lhes era dado conhecerem, proclamam a sua iniciativa, antes de tudo, como uma iniciativa ética que reconhece o primado da consciência moral individual sobre a razão–de–Estado. Essencialmente porque, no dizer de outro dos seus expoentes, o filósofo resistente Jan Patocka — que decerto não esquecera o exemplo do seu compatriota, o estudante Jan Palach, auto–emulado na Praça de S.Wenceslau em Varsóvia porque era urgente protestar contra a sovietização do seu país — há coisas que merecem que se sofra por elas. Nesta cruzada pela palavra livre e pelo direito de expressão e pensamento, assumirá destaque outro texto de Havel — «O poder dos sem poder» analisa o fenómeno da dissidência nos países comunistas e retoma teses da Carta aparecida um ano antes.