A Espanha invertebrada

Pedi emprestado a José Ortega y Gasset, um dos principais expoentes da filosofia espa­nhola ou castelhana do início do século passado, o título do presente texto. E fi-lo, delibe­rada e conscientemente, não só por entender que o mesmo se adequa cabal­mente à reflexão que aqui pretendo deixar como, também e sobretudo, como uma simples e singela forma de homenagem a um dos textos mais clarividentes, quiçá mesmo prescientes, de Gasset. Naquele seu texto, recordemo-lo, o filósofo de Salamanca refletia, já em 1922, praticamente há um século, sobre o fenómeno da desestruturação e desintegração de Espanha, com base e a partir de uma das suas principais fragilidades – o seu plurinacionalismo. Decerto – o enquadramento de que Gasset parte é substancialmente diferente da situação dos nossos dias. A essência do diagnóstico, porém, perma­nece incólume e intocável.

Quando Gasset escreveu a sua obra, a Espanha das primeiras décadas do século XX defrontava-se com as ameaças que incidiam principalmente sobre as suas principais possessões ultramarinas. E o filósofo identificava tais ameaças com a plurinacionalidade dessas mesmas diferentes colónias que, gradualmente, pressionavam o centro da governação, num movimento que era oriundo das periferias para esse mesmo centro do poder. E, refletindo sobre a realidade peninsu­lar dessa Espanha do seu tempo, atreveu-se a prever que idêntico movimento acabaria por se replicar na própria Península, fruto dos regionalismos que, tendo na sua base diferentes nacionalismos, acabariam por conduzir, fatalmente, a fenómenos secessionistas. A desintegração ultramarina seria, assim, a antecipação ou prelúdio, o prenúncio da desintegra­ção peninsular espanhola.

Ora, nunca como hoje a profecia ou leitura feita por Ortega y Gasset esteve tão perto de se concretizar e de se tornar realidade. A situação que está a ocorrer na Catalu­nha ilustra-o na perfeição. E é sobre isso que devemos meditar.

O poder central de Madrid até pode vir a conseguir estancar todas as pressões nacionalistas e independentistas que se fazem sentir na Catalunha. Poderá, no limite, conseguir impor a força da legalidade constitucional e fazê-la prevalecer sobre o espírito nacionalista e as ânsias independentistas que, admitamo-lo, até podem ser atualmente minoritárias. Tudo isso é possível; tudo isso é provável. Nada disso garantirá, porém, a resolução de fundo para o problema que a Espanha tem. E esse problema é, justamente, a multiplicidade das suas nacionalidades. Como já tivemos oportunidade de escrever e de anotar, por diversas vezes, a Constituição espanhola parte e assenta num equívoco. Esse equívoco chama-se “nação espanhola”. Pelo simples e elementar facto de que é uma realidade virtual, que não existe no terreno. Que foi ficcionada pelos pais da Constituição de 1978; mas que nunca saiu do domínio da ficção. A Espanha não é uma nação; é um Estado multinacional ou plurinacional, onde convivem e confluem várias nações. Nações essas que, em regimes democráticos, mais tarde ou mais cedo aspirarão a organizar-se politicamente sob a forma de Estados. Essa é uma inevitabilidade história e uma aspiração a que, por regra, nenhuma nação renuncia ou foge. Por isso, quando este fenómeno é contrariado, nascem e emergem os nacionalismos perigosos, fonte de muitos dos problemas que a Europa tem conhecido. Mas o nacionalismo apenas se torna perigoso quando é reprimido ou combatido.

Este princípio, de resto, do chamado Estado nacional e de dar a cada nação a possibilidade de se organizar politicamente sob a forma de Estado, não é uma descoberta recente. Já no início do século XX o Presidente dos EUA Wilson o enunciava como uma das condições necessárias para evitar novos cataclismos como o da primeira guerra mundial. Não é por ser antigo que perdeu validade.

Voltando ao caso espanhol – aquilo a que assistimos na Catalunha pelos dias de hoje é à emergência do nacionalismo catalão em busca da sua organização política autónoma. O gene da nação está-lhe imanente e, por isso, esta é uma batalha condenada a não terminar. Pode ser derrotada, pode ser amordaçada, pode ser apoucada. Dificilmente será vencida.

Nesse quadro, melhor fariam os dirigentes de Madrid em buscar uma solução de longo prazo do que uma vitória de curto prazo. Para tal, porém, também se requereriam políticos com sentido de Estado, mais do que governantes com sentido eleitoral. E isso é coisa que também pela Espanha dos nossos dias não abunda.

Uma Catalunha independente?

No passado domingo a Catalunha foi a votos para, num arremedo de referendo, se expressar sobre a sua independência. O fundamento para a realização dessa espécie de referendo foi, assim nos foi dito, o exercício democrático do direito dos catalães a expressarem a sua opinião sobre o seu futuro político. Tratou-se, portanto, assim foi contado ao mundo, de uma manifestação do princípio democrático. Acontece, porém, que se levarmos a análise a um maior grau de profundidade e não nos ficarmos pela superficialidade da espuma dos sias, talvez esse dito princípio democrático tenha muito pouco de democrático.

Os organizadores do dito referendo limitaram-se a constatar que, a simples possibilidade de os catalães depositarem um papel numa urna, significaria que se estava perante um exercício de democracia. Nada mais falso, nada mais errado, nada mais desconforme com as regras e os princípios. É verdade que, sem votos, não existe democracia. Nenhuma democracia pode prescindir do exercício inalienável do direito de escolhe e esse direito exerce-se através do voto. Acontece, porém, que o voto, por si só, não é suficiente para demonstrar a existência de uma democracia. Também se vota na Venezuela. Também se vota na Coreia do Norte. Também se votava no Portugal de antes do 25 de Abril. E a ninguém de bom-senso passará pela cabeça sustentar ou defender que, na Venezuela, na Coreia do Norte ou no Portugal salazarista vigoravam regimes ou sistemas democráticos. Assentemos, portanto: sem votos não há democracia; mas o voto por si só não chega para afirmar a existência da democracia. Esta, para existir, na sua plenitude, supõe e exige que, a montante, antes do momento de se exercer o voto, estejam reunidos um conjunto de requisitos e pressupostos, também eles definidores do princípio democrático: no momento de apresentação de candidaturas, no momento de fixação de garantias sobre a forma como as votações decorrem, no momento de contagem e apuramento de resultados, no momento de fixação do colégio eleitoral, no momento de composição de assembleias de voto, etc, etc. Em todos esses momentos, a montante e prévios ao exercício do direito de voto, as regras democráticas da transparência e da legalidade hão-de estar presentes se quisermos ou pretendermos estar ante uma verdadeira manifestação do princípio democrático. Ora, nada disto ocorreu, no passado domingo, na Catalunha.

O pretenso referendo foi convocado à revelia da lei e por quem não tinha competência legal para o fazer; os cadernos eleitorais não existiam, possibilitando que um cidadão votasse mais de uma vez; as urnas não funcionaram em assembleias eleitorais devidamente constituídas mas chegaram a estar postas na rua; o secretismo do voto pura e simplesmente não existiu; as garantias de regularidade e transparência do processo eleitoral eram palavra vã; o apuramento dos resultados chegou a dar percentagens totais que em alguns casos ultrapassavam os 100%….

Tudo isto, e muitas outras irregularidades que se poderiam apontar, é suficiente para demonstrar o contrário do que se pretendeu afirmar com a realização do dito referendo: em nada o mesmo contribuiu para ilustrar o exercício da democracia por parte dos catalães.

E, como era de esperar, foi-nos dito que uma ampla maioria de votantes, na ordem dos 92% haviam votado a favor da independência da Catalunha. Com um tal enquadramento o espanto só pode, mesmo, residir na percentagem de votos que é indicada: “só” 92%? Obviamente que a própria comunidade internacional não esteve desatenta e não há notícia de quem quer seja, até agora, ter reconhecido tal referendo. Eventualmente, apenas Nicolas Maduro….

O problema é que, segundo notícias recentes, será este simulacro de referendo que estará na base das exigências do sector mais nacionalista do governo autónomo da Catalunha para, dentro de horas, proclamar a independência unilateral da Catalunha. Ora, a ser verdade e a confirmar-se um tal passo rumo ao abismo, parece inevitável que ao governo de Madrid outra opção não restará do que utilizar a sua bomba atómica constitucional – célebre artigo 155º da Constituição que prevê as situações em que o poder central possa derrogar e reverter as autonomias. Como se percebe, seria uma solução para a rebelião mas não uma solução para o problema.

As autoridades centrais de Madrid desde sempre enfrentaram este desafio no plano jurídico, remetendo sempre para os Tribunais as decisões mais difíceis de tomar. Nunca assumiram a vertente política do caso e, por isso, nunca encetaram verdadeiras negociações políticas com as instâncias autonómicas de Barcelona. Foi um erro crasso que seguramente ainda lhes virá a custar caro. Mais caro do que já custou. É que se na Catalunha nem todos são independentistas ou soberanistas, quase todos ou a imensa maioria são, neste momento, anti-madridistas. E isso em nada contribui para a resolução do diferendo que existe, que é real e que está instalado.

Numa palavra, o desatino com que este processo tem sido conduzido de parte-a-parte só pode levar a uma “solução lose-lose”, em que ambas as partes saem perdedoras. Não se adivinha saída mais provável para esta crise. Em qualquer dos casos, parece certo que, por muitos e longos anos, a Espanha que conhecemos já acabou. Doravante será, sempre e necessariamente uma coisa diferente. Podemos não saber o quão diferente será. Mas será, certamente, diferente. Com ou sem a Catalunha.

Paradoxos europeus

Durante os chamados “anos de chumbo” da crise europeia que teve o seu início em 2008 – proveniente do outro lado do Atlântico, onde rebentou um ano antes – parte significativa da Europa entreteve-se a criticar e a censurar a atuação da chanceler alemã, Angela Merkel, responsabilizando-a por quase tudo o que de negativo afetava a Europa, mormente as duras medidas de austeridade que foram impostas a muitos Estados europeus, nomeadamente os Estados do sul da Europa, que eram os que mais se debatiam com a célebre questão das dívidas públicas quase insustentáveis. Merkel era, por esses dias, a personificação e o rosto da austeridade, a cara das duras medidas que se abatiam sobre parte muito significativa dos europeus e que se traduziram nos resgates financeiros que não pouparam a Grécia, a República da Irlanda, Portugal, Chipre e a Espanha (ainda que esta de forma encapotada, sob a forma de apoio exclusivo à banca).

Escassos anos volvidos, deixada para trás – assim se acredita! – a crise europeia, as eleições legislativas do passado fim de semana na Alemanha vieram pôr em destaque que Angela Merkel emergiu como um dos principais rostos não só da Alemanha como, também, do que sobra desta União Europeia que, por vezes se nos afigura caminhar em passo acelerado para o seu processo de desintegração.

Fruto de uma política profundamente humanista e personalista – que a levou a abrir as portas da Alemanha a mais de um milhão de refugiados da guerra síria que demandaram o continente europeu em busca apenas e só de serem felizes e realizarem os mais básicos dos direitos humanos, e que lhe custou alguns milhões de votos – sem igual nem paralelo na história europeia, sobretudo na história recente da Europa, e face ao descalabro eleitoral social-democrata e socialista, que obteve os seus piores resultados desde o fim da segunda guerra mundial, Merkel volveu-se na imagem e no rosto visível que concitou as atenções tanto de alemães quanto de europeus na esperança de conter e de travar o movimento ascensional de uma extrema-direita constituída em torno da Aliança para a Alemanha (AfD), mas desprovida de coerência doutrinária ou homogeneidade ideológica.

O objetivo apenas parcialmente foi alcançado. Merkel logrou obter o seu quarto sucesso eleitoral, ainda que sem alcançar a procurada maioria absoluta. E apesar da sua política humanista – ou por causa dela – das esperanças que nela depositou uma parte significativa da Europa, a AfD guindou-se ao terceiro lugar no sufrágio, obtendo 13% dos votos e fazendo entrar no Bundestag, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, deputados de uma extrema-direita antieuropeia, anti-imigração, xenófoba e profundamente racista. Na noite do passado domingo, parte significativa da Europa deu consigo a recordar alguns dos seus piores demónios internos, que julgava já enterrados definitivamente no baú das recordações e dos seus próprios horrores. A chanceler, se não foi capaz de travar esta ascensão ficou, todavia e paradoxalmente, ainda mais responsabilizada na construção de uma alternativa política de governação para o gigante económico europeu. Alternativa que, sabe-se já, não deverá contar com o apoio e a participação social-democrata: Martin Schulz foi claro na noite eleitoral – o destino do seu partido seria ir para a oposição no próximo quadriénio, reorganizando-se para o combate de daqui a quatro anos. À chanceler, por simples exclusão de partes, não restam mais de duas possibilidades para continuar a governar a Alemanha: ou partir para a legislatura com um governo minoritário, o que está longe da tradição política do Bundestag, ou tentar formar a inédita (a nível federal) e improvável “Coligação Jamaica”, associando os democratas-cristãos da CDU/CSU aos Verdes e aos liberais do FDP que regressaram ao Parlamento depois de quatro anos de ausência. A formação desta improvável coligação não deixará de constituir importante teste para a capacidade negociadora de Merkel – que tentará moderar e conciliar as exigências da sua esquerda (Verdes) e da sua direita (Liberais). Talvez o maior teste em termos de negociação política desde que ocupa a chancelaria.

Paradoxalmente, porém, não serão só os alemães que estarão expectantes e atentos. Também aos europeus, a todos nós cidadãos desta União Europeia sobrante, o que se vier a passar não nos será, de todo, indiferente. Pelo papel liderante que desempenha na União, a posição do governo de Berlim será determinante para muitos dos dossiers que estarão em cima da mesa de Bruxelas. Do Brexit à reforma institucional e ao aprofundamento da zona euro – a palavra final passará sempre pelo governo de Berlim. Também nessa medida o paradoxo se verifica – quem ontem era detestada pelas suas opções políticas, é vista hoje como a única capaz de sustentar as reformas que a União necessita e carece urgentemente. Reformas como aquelas que, por exemplo, Merkel já havia dado mostras de ter articulado com Macron. E que, agora, estão objetivamente postas em causa, sobretudo pela agenda europeia dos renovados liberais alemães. Outro paradoxo do passado domingo: mesmo sem ter ido a votos, Emmanuel Macron foi um dos grandes derrotados do sufrágio alemão. Os resultados saídos das urnas alemãs podem ter hipotecado o apoio alemão a parte importante da sua agenda política europeia.

Assim se vai fazendo e construindo a política europeia dos nossos dias: navegando à vista, sem uma linha de rumo definida, com avanços e recuos. E com paradoxos; muitos paradoxos – que só servem para a tornar cada mais indecifrável e menos previsível.

Nos cem dias de Macron

A passagem dos primeiros cem dias da presidência de Emmanuel Macron coincidiram, para quem esteve atento ao pormenor e ao detalhe, com a divulgação de sondagens e estu­ dos de opinião que reflectiram uma acentuada queda da popularidade e índice de aprova­ ção do Presidente da República junto do eleitorado francês. Pouco mais de três me­ ses depois de haver cilindrado e pulverizado todas as oposições, o centrista que apare­ ceu como demasiadamente liberal para muitos socialistas e o liberal que não dei­ xava de ter uma importante veia socialista para outros tantos republicanos, começou a sen­ tir na pele o inevitável choque de realidade que, mais tarde ou mais cedo, teria inevitavel­ mente de o atingir.

Curiosamente – e sem deixar de ser paradoxalmente – é no momento em que conhece as suas primeiras dificuldades políticas internas que Macron assume protagonismo pelas propos­ tas que avança no domínio e no plano europeu.

A defesa da criação de uma espécie de Fundo Monetário Europeu, a admissão da existên­ cia de um ministro das finanças da zona euro, o aprofundamento da própria união económica e monetária – constituem algumas das propostas que, no plano euro­ peu, Emmanuel Macron tem acolhido e sustentado.

Isto é – deliberadamente ou não, o Presidente francês tem tentado suprir as insuficiên­ cias denotadas no plano da política interna com a aposta deliberada nas questões euro­ peias. Dando a entender – e bem – que percebeu e compreendeu o papel que a França, conjunta­ mente com a Alemanha, pode vir a desempenhar no projecto europeu. Reacti­ vando o célebre “eixo Paris-Berlim”, personificado por Kohl e Mitterrand e, posterior­ mente, deixado cair em desuso por um Chirac cujos danos que infligiu à Europa – quando resol­ veu reavivar os fantasmas da Europa nova e da velha Europa – ainda estão por determi­ nar em toda a sua extensão e, seguidamente, enterrado por um Sarkozy que se subme­ teu em toda a linha e de forma indecorosa aos ditames da chanceler Merkel. Hollande, pelas razões óbvias e conhecidas, nem sequer pode ser chamado para estas con­ tas.

Esta ambição europeia de Macron – que já deixou indícios suficientes de não se preten­ der conformar com uma simples referência numa nota de rodapé da história do projeto euro­peu – pode vir a beneficiar, inequivocamente, da renovação do mandato de Merkel, que se anuncia como o cenário mais provável a sair das eleições legislativas germânicas do próximo dia 24.

Essas eleições, de resto, fecharão o ciclo das eleições legislativas e presidenciais ocorridas em 2017 que se revelarão determinantes para o futuro da União Europeia. Serão, tudo o indica, a consagração dos mandatos sucessivos de Angela Merkel – ainda que estando longe de poder vir a alcançar uma qualquer maioria absoluta que lhe permita vir a formar um governo unipartidário em Berlim. Eis-nos, pois, com enorme probabilidade, chegados à situação tida por paradoxal há poucos anos: Angela Merkel estará em vésperas de se volver na estadista de referência do projeto europeu. Quem o diria nos anos de chumbo da crise! Para a concretização deste estatuto, muito poderá Merkel vir a beneficiar da ambição francesa protagonizada por Macron. Este tem dito e feito propostas que a Alemanha tem gostado de escutar. Basta termos assistido ao debate eleitoral que a chanceler travou com o social-democrata Schulz para ficarmos a perceber os caminhos comuns que Paris e Berlim podem estar dispostos a trilhar. E, nessa medida, o futuro do projeto europeu poderá não ser tão sombrio como o foi o seu passado recente e o tem sido o seu longo presente. Oxalá não surjam, de onde menos se possa esperar, obstáculos ou entraves, endógenos ou exógenos, ao aprofundamento desse projeto. Por vezes, donde menos se espera, é donde vêm os entraves mais difíceis de ultrapassar.

E com isto estaremos reconduzidos à possível – e desejável! – reconstrução da velha aliança franco-alemã que, tendo estado na origem do projeto europeu, poderá voltar a estar na origem da sua refundação. É o seu alfa e será o seu ómega.

Uma nova normalidade

Os tempos mais recentes têm sido pródigos em notícias esparsas, aparentemente não relacionadas entre si, que nos dão conta da realização de “pequenos” crimes cometidos um pouco por toda a Europa, tendo por alvo quer agentes de forças de segurança, quer militares, quer simples cidadãos individuais e indefesos. Por regra, são incidentes com viaturas automóveis, atropelamentos, crimes cometidos com armas brancas proibidas, um ou outro com armas de fogo. Crimes que, nas sociedades ocidentais de há poucos anos se incluiriam na lista da pequena criminalidade que deveria ser tratada no âmbito da segurança pública.

Acontece que, a ligar todas estas ações criminosas, tem surgido quase sempre a sua reivindicação por parte do Daesh – que tanto reclama a autoria e paternidade dos grandes atentados como o de há duas semanas em Barcelona como, simultaneamente, reivindica os “pequenos” crimes praticados em Bruxelas, em Cambrils, em Estocolmo ou em Turku, por exemplo.

Significa isto que, hoje em dia, face à radicalização jiadista em curso em muitas comunidades muçulmanas, nenhum lugar, verdadeiramente nenhum lugar, do Ocidente se pode considerar um lugar seguro e um lugar onde estejamos a salvo dos que invocam Deus para cometerem toda a espécie de barbárie e de carnificina. E que, cúmulo dos cúmulos, justificam essa mesma barbárie com a invocação desse mesmo Deus. Paradoxos e contradições.

Mas isto significa, também, que não basta nem chega proclamar que não devemos deixar que os terroristas condicionem e determinem o nosso modo de vida e influam sobre as nossas decisões. É falso. É mentira. Por muito que nos custe termos de o admitir, os terroristas já condicionam e já determinam e já influem sobre o nosso modo de vida. E, no mínimo, ingénuo será todo aquele que programar qualquer alteração à sua rotina diária sem levar em consideração essa nova normalidade que se instalou nas nossas vidas e na vida de muitos dos nossos concidadãos europeus (sim, porque não nos esqueçamos que todos nós, europeus dos Estados da União, além de sermos cidadãos de cada um dos seus Estados, estamos unidos por uma cidadania comum que é a europeia; uma cidadania que tem a particularidade de, pela primeira vez, nos aparecer dissociada do conceito de nacionalidade).

É, pois, com uma nova normalidade que temos de nos confrontar.

Nessa perspetiva, o desafio que temos pela frente não pode nem deve ser a negação dessa mesma realidade que a todos se nos impõe e que a todos nos condiciona. Fazê-lo equivaleria a usar a tática da avestruz, enfiando a cabeça na areia para não vermos nem conhecermos dessa mesma realidade.

Pelo contrário – o desafio que temos por diante passa pela adoção de todas as medidas que se afigurem necessárias para reverter essa nova normalidade, não nos conformando com ela, mas partindo do princípio – inteligente – de que ela está aí e veio para ficar se nada fizermos para a alterar.

E no domínio das medidas a tomar, um princípio existe que se afigura inquestionável. Nenhum Estado, hoje em dia, tem a possibilidade de, por si só, isoladamente, combater este fenómeno do terrorismo hodierno. Nenhum Estado. Impõe-se, inelutavelmente, reforçar e aprofundar a cooperação internacional no combate ao terrorismo. E não deixar que este reforço e este aprofundamento se limite a nobres proclamações, de muito escasso efeito prático.

Se levarmos em consideração que, só no quadro dos Estados-membros da União Europeia existem mais de 50 serviços e autoridades com competências (nacionais ou regionais) para atuarem nos domínios da prevenção e combate ao terrorismo, percebemos com facilidade que a ineficácia terá de ser a regra e a norma. Talvez, por isso, começar por criar um serviço europeu, supranacional, de informações e inteligência possa ser o ponto de partida para um eficaz combate multidisciplinar a este fenómeno novo que já condiciona as nossas vidas e a nossa nova realidade. Dir-se-á: tal constituiria mais uma diminuição do que resta da soberania dos Estados. É verdade. Mas perante desafios transnacionais, a resposta não pode ser nacional. Será, provavelmente, o menor dos preços que teremos a pagar para garantia da nossa segurança.