Um federalista frustrado

Há relativamente poucos dias, participando num encontro das esquerdas europeias, no quadro da sua candidatura a Secretário-Geral do ONU, António Guterres refletia sobre a imensa crise humanitária que se abate sobre a Europa e concluía pela incapacidade desta para reagir de forma eficaz e eficiente a este drama sem igual nos tempos modernos. Defendia, nomeadamente, a existência de uma verdadeira política europeia em matéria de concessão de vistos, de apoio aos refugiados e, como corolário lógico dessa política, a existência de órgãos europeus encarregados de operacionalizarem essa mesma política comum europeia. Partilhando a sua experiência pessoal, os dramas a que assistiu e que vivenciou e, sobretudo, a incapacidade europeia para lhes dar uma resposta consequente, Guterres partilhou a sua desilusão com a capacidade de resposta europeia, a sua tristeza pelo facto de problemas da magnitude da crise humanitária com que teve de lidar continuarem a ser objeto de abordagens de forte pendor nacional e, em síntese, confessou que, sendo um assumido federalista, tinha de reconhecer a sua frustração face aos ideais que professava e à prática com que tinha de lidar. Disse-se, textualmente, um federalista frustrado. Não será, infelizmente, o único.
Percebo e compartilho o estado de espírito do ex-primeiro ministro português.
Lidando com as matérias e as coisas da Europa há mais de vinte cinco anos – em aulas, investigação, livros, conferências, palestras, no exercício da própria advocacia, em tantos outros momentos – nunca perfilhei o modelo federal para o desenvolvimento da União Europeia. Basicamente por duas razões: em primeiro lugar porque sempre entendi que um tal modelo convocava a ter como referência o modelo norte-americano o que, não se aplicando ao continente europeu, seria um redondo disparate ser invocado; em segundo lugar por sempre me ter parecido que a União Europeia, se queria afirmar-se e consolidar-se, só o conseguiria através de uma estrutura político-institucional verdadeiramente inovadora e original, insuscetível de se comparar com qualquer outra previamente existente. O modelo político da União Europeia ir-se-ia construindo e só depois iria sendo teorizado. Acreditava, francamente, neste pressuposto. Advogava, em contrapartida, um modelo de forte pendor intergovernamental onde a matriz estadual se pudesse sobrepor à componente supranacional. Perante os dois caminhos clássicos e teóricos da integração europeia, a minha preferência sempre se orientou para a via intergovernamental. Até que….
O eclodir da crise económico-financeira, e logo social, de 2007 nos EUA, que um ano depois começou a afetar de forma implacável o continente europeu – e de que em boa verdade ainda não nos libertámos por completo. A forma como a União Europeia (não) reagiu a essa crise assumiu-se como determinante na revisão da minha própria visão sobre a evolução do projeto europeu. Coincidindo, no tempo, com a aprovação e a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a crise em que a União mergulhou foi a primeira oportunidade para testar a bondade das soluções (intergovernamentais) preconizadas no novo tratado europeu. Escusado será dizer que o balanço se afigura, hoje, profundamente negativo e criticável. Em vez de encarar a crise europeia como isso mesmo, uma crise à escala continental, a União Europeia, sob a égide da Alemanha da Sra Merkel optou por encará-la como uma crise de alguns países da União, tipicamente do sul, com maus indicadores económicos, assimetrias sociais, tipicamente identificados os pobres da União. E ao perspetivar a crise europeia sob este ângulo, estava dado o mote para a forma de resposta a usar por parte da própria União Europeia: uma resposta igualmente nacional, assente nas particularidades de cada Estado. Em lugar da resposta global, a opção pela resposta nacional – e sempre, sempre, de acordo com os ditames da dupla Merkel/Schauble.
Esta forma de reação, que hoje é quase consensualmente admitida como a menos adequada ao tipo de crise que se abateu sobre o continente europeu, fez-me ganhar a consciência de que há problemas hoje, de tal maneira sistémicos e globais, que não se compadecem com respostas nacionais ou intergovernamentais. Impõem e obrigam a uma abordagem global e sistemática a cargo de entidades colocadas a um nível supranacional. Há crises – e aquela de que curamos e que sentimos bem na pele é um exemplo paradigmático – que não podem ser resolvidas através de um somatório de resoluções parciais. Exigem a tal abordagem global que apenas um poder político de pendor federal estará preparado para dar e para corporizar.
Veio tudo isto a propósito da confissão imensamente humilde de António Guterres se dizer e se assumir como um europeísta federalista profundamente frustrado. Não terá sido o único, seguramente. O depoimento antecedente demonstra que, pessoalmente, também me vi na contingência de alterar a minha visão do projeto europeu e do seu devir, das suas exigências e das suas necessidades, acreditando que apenas uma solução federal (ainda que de tipo original, não necessariamente decalcado do clássico federalismo norte-americano) poderá dar resposta aos imensos e, sobretudo, aos mais importantes, dos problemas com que esta União Europeia em aparente estado de acelerada decomposição se debate e confronta nos dias que passam.
Nessa medida, subscrevo na íntegra a “confissão” de António Guterres: na minha esfera de atividade e de investigação, também eu, europeísta, me digo e me declaro um federalista profundamente frustrado.

Este Brasil não existe

In memoriam de Francisco F. Encarnação Dias
Quem teve a possibilidade de assistir à longa maratona decorrida no passado fim de semana na Câmara de Deputados de Brasília, onde se votava o relatório da Comissão Especial sobre o início do processo formal de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, não consegue calar a perplexidade nem a surpresa perante o espetáculo que teve hipótese de presenciar. Sobretudo porque da sala de sessões da Câmara de Deputados, circunstancialmente transformada em cenário de novela de baixo quilate, emanavam argumentos que qualquer observador constatava nada terem a ver, objetivamente, com a tramitação formal de um processo que, para ser iniciado, deveria ter como requisito primeiro a acusação de prática de “crime de responsabilidade” por parte da Presidente da República, crimes esses que a lei ordinária brasileira define como “atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. De nada disto, porém, se curou quando os deputados federais brasileiros, em ambiente de feira semanal, iam desfilando e anunciando o sentido do respetivo voto e a razão determinante para o mesmo. Escutaram-se invocações de Deus, da família, de pais, de mães, de filhos, de netos, de nascidos e de nascituros, de amigos e de desconhecidos, de perseguições pessoais e ajustes de contas individuais, de ressentimentos e de ressabiamentos; invocaram-se e evocaram-se antigos Presidentes da República, páginas mais negras e menos dignas da história brasileira, lutas antigas feitas recentes, clamou-se contra a corrupção e contra o golpe. Mas ao essencial, pouco ou nada foi dito. E percebe-se porquê.
Basicamente porque a generalidade da atual classe política brasileira, independentemente da sua colocação partidária, aparece-nos indissociavelmente ligada a práticas menos claras de opacas ligações entre o mundo da política, o mundo dos interesses privados e o mundo dos negócios. Sob a generalidade da classe política brasileira paira um manto de suspeição que praticamente não permite, aos olhos dos brasileiros, que quem quer que a integre beneficie de uma presunção de seriedade e de honestidade. O que não pode augurar nada de bom nem de prometedor para os tempos mais recentes do nosso país-irmão.
Mas para este clima de suspeição e de descrença, reconheça-se, muito contribuiu a atuação dos principais dignitários da república, reféns de atos pouco edificantes e que envergonhariam qualquer democracia estabilizada deste nosso velho continente. Dois simples exemplos servem para atestar e comprovar esta desqualificação dos titulares dos mais altos cargos da República para o exercício dos mesmos. Em primeiro lugar – a incompreensível tentativa da Presidente Dilma Rousseff de nomear para Ministro Chefe da sua Casa Civil o seu antecessor no cargo, Lula da Silva, num ato onde ninguém conseguiu divisar qualquer outra finalidade que não garantir a este um foro privilegiado para os problemas que tem com a justiça na decorrência da mega-operação “Lava-Jacto”. É uma nomeação ainda pendente de decisão final da instância judicial federal mas que teve o condão de retirar à Presidente da República o pouco crédito que ainda lhe restava junto da sua base social de apoio. Em segundo lugar, e para nos continuarmos a centrar nas figuras de topo do Estado brasileiro – enquanto decorre o processo de destituição de Dilma Rousseff, o Vice-Presidente Michel Temer distribui pelos amigos um áudio do seu putativo discurso de posse como Presidente, dando a destituição de Dilma por adquirida e por certa a sua subida ao cargo. Na resposta, a ainda Presidente vem acusá-lo de ser um dos dois líderes do chamado “golpe”. Em termos de relacionamento entre Presidente e Vice-Presidente da República, estamos conversados….
Estes factos, porém, dignos duma “República de bananas” e que se teriam por impossíveis de suceder num Estado do primeiro mundo em pleno século XXI, para além da sua gravidade intrínseca que se prende com o funcionamento das próprias instituições constitucionais do Brasil, acarretam ainda um perigo suplementar – é conseguiram dividir praticamente ao meio um país, colocando meio Brasil contra a outra metade. E isso não prognostica nem augura nada de muito bom. Já não é só nos palácios de Brasília que se travam e se jogam as cartadas políticas. É também nas ruas e praças das cidades brasileiras. E sendo o Brasil, neste momento, muito mais do que o país-irmão que Portugal legou ao mundo, o verdadeiro eixo em torno do qual gira a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (apesar do escasso investimento que nela sempre fizeram os governos de Dilma), o que por lá se passe não se pode considerar estranho nem alheio a Portugal. Sem quaisquer resquícios “neo-colonizadores” desprovidos de qualquer sentido mas, igualmente, sem qualquer indiferença de todo incompreendida. Impõe-se, pois, seguir com detalhada atenção e não menor preocupação a evolução da situação política brasileira. A mesma não se pode dizer que nos é estranha ou alheia.
É que este Brasil, de facto, visto do lado de cá do Atlântico, parece não existir nem ter emenda, e sobretudo não aprender nada com a sua própria História. E ou muda rapidamente, começando pela sua classe política – toda – ou pode estar na véspera de dias muito complicados e difíceis. A título de mera hipótese de trabalho, talvez os brasileiros tivessem mais a ganhar se preferissem a mudança radical dos seus eleitos e um acrescido escrutínio das suas escolhas eleitorais, às manifestações públicas tão do seu agrado.

O discurso de Marcelo e a entrevista de Kohl

In memoriam de Francisco F. Encarnação Dias
Na passada semana o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, teve oportunidade de se dirigir ao plenário do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, onde pronunciou um discurso que, no mínimo, se tem de qualificar como brilhante. Foi um discurso como já não é frequente escutar-se por aquelas bandas – assertivo, afirmativo, pedagógico. O discurso de um incorrigível europeísta – como o próprio se designou. O discurso que fez ecoar ante a Assembleia parlamentar europeia o recordatório dos princípios que ditaram o surgimento do projeto comunitário europeu do pós-segunda guerra mundial, sem ter deixado de evocar as transformações que o mundo em geral e a Europa em particular conheceram nos últimos tempos e que, obviamente, convocam a União Europeia a encontrar novas e inovadoras soluções para problemas que são igualmente novos e desafios que se colocam com acrescida acuidade. Foi também o discurso em que Marcelo Rebelo de Sousa se posicionou e tomou inquestionável partido no grande debate que está à porta do Reino Unido e da própria Europa – a partir da realização do referendo do sobre a permanência do Reino na União Europeia no próximo dia 23 de Junho. Dizendo que esta União deve continuar a somar e não a subtrair, foi uma mensagem inequívoca sobre a forma como Portugal se posiciona face a essa jornada decisiva para o futuro de União que se avizinha a passos largos.
Depois, Marcelo Rebelo de Sousa teve a oportunidade para refletir e teorizar sobre a pertença nacional à empresa europeia – como parte absolutamente crucial do seu destino histórico que começou por ter o mar por destino mas estaria sempre incompleta se não se dotasse da indispensável dimensão europeia. Essa dimensão foi-lhe dada e acrescentada, nos tempos contemporâneos, através justamente da pertença ao projeto comunitário. E veio a assumir uma acrescida importância quendo, fruto de erros próprios, típicos de um povo que “não se governa nem se deixa governar”, houve necessidade de o país recorrer a auxílio financeiro externo no início desta década. Com um programa de condicionalidades muito duro e penoso, que causou inúmeros casos de sofrimento em muitas famílias, pessoas e empresas do país, a Europa, por via da troika, respondeu presente, mas Portugal não defraudou as expectativas nem desonrou os seus compromissos. O Presidente da República, numa expressão assaz feliz, sintetizou o que efetivamente aconteceu: “a Europa não faltou no auxílio e Portugal honrou os seus compromissos saindo de forma limpa do seu ajustamento”.
Era importante que estas mensagens que, ciclicamente, são deixadas no hemiciclo de Estrasburgo fizessem o seu caminho e fossem não apenas ouvidas, mas escutadas, por parte dos decisores europeus – em especial por parte dos membros das instituições europeias, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia. Era importante que estas mensagens não se limitassem a ser meros momentos simbólicos e protocolares e caem em saco roto mas servissem, efetivamente, de momentos inspiradores para todos os que são responsáveis pela estruturação das políticas públicas europeias.
Coincidentemente com esta intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa no Parlamento Europeu, veio a público uma das raríssimas entrevistas dadas, na última década, por Helmut Kohl – uma das últimas vozes sobrantes do europeísmo de referência dos finais do século XX. É extraordinariamente interessante refletir e meditar sobre o que o chanceler da reunificação nos vem dizer e sobre aquilo que aproveita para nos recordar. Centrando-nos no aspeto que mereceu mais destaque por parte da comunicação social europeia – a questão dos refugiados e a responsabilidade da Europa para com este drama humana de proporções inimagináveis e que está condenado a aumentar, mesmo considerando o vergonhoso acordo celebrado com a Turquia – é uma vez mais da voz da sabedoria e da experiência que nos vem a leitura mais lúcida deste drama e do papel que a União Europeia deveria assumir perante o mesmo. A primeira constatação é óbvia e resulta da mera evidência dos factos: a Europa não pode, porque não está preparada para tal, transformar-se na terra de acolhimento de todos os refugiados, migrantes e desvalidos que fogem dos diferentes conflitos que ocorrem nos quatro cantos do mundo, abrindo-lhes de par em par as suas portas e oferecendo-lhes toda a proteção social que oferece e confere aos cidadãos europeus. Numa crítica implícita à liberalidade inicialmente preconizada pela Sra Merkel, Kohl não deixa, todavia, de pôr o dedo na ferida. Significa isto que a Europa deverá fechar os olhos aos dramas humanitários que ocorrem nas suas fronteiras e muitas vezes se projetam para dentro das mesmas? De maneira nenhuma! Acontece é que, se a Europa da União pretender ser efetivamente útil na resolução deste drama humanitário, ou na contribuição para a sua resolução, deverá ser prudente – aceitando os refugiados que o sejam por motivos estritamente políticos mas, e nisto reside a exigência formulada por Kohl, contribuindo para fomentar verdadeiras políticas locais que propiciem a retenção dos migrantes nos seus países natais. Decerto – uma postura destas só pode ser subscrita por quem tanto se empenhou em contribuir para que a União Europeia viesse a possuir uma verdadeira e consistente política externa e de segurança comum. Algo que, até ao momento, a atual União sempre se mostrou incapaz de definir, pese embora até possuir uma Alta Comissária com a sua responsabilidade.
Em síntese – eis-nos perante mais uma relevante posição europeísta de Helmut Kohl que, apesar do cansaço da vida e do passar dos anos não deixa de nos agitar as nossas consciências e de nos interpelar profundamente quando lhe é dada oportunidade de connosco partilhar a sua visão sobre a Europa que conhecemos. Esta oportuna mensagem, a par da intervenção do Presidente Rebelo de Sousa em Estrasburgo, constituem dois importantes momentos que deverão ser lidos e guardados para efeitos de meditação futura, atentos os respetivos conteúdos e, também, a sua complementaridade. Não é todas as semanas que podemos beneficiar de dois momentos de tão elevada qualidade.

A VI Internacional

O mundo agitou-se com a divulgação dos chamados “Panama Papers” – um vastíssimo conjunto de mais de onze milhões de documentos divulgados por um consórcio internacional de jornais e jornalistas de investigação das mais diversas proveniências e origens e com base na firma de advocacia Mossack Fonseca, com sede no Panamá e especializada na gestão de capitais e de património e na criação de empresas sedeadas em algumas das principais praças offshores que existem espalhadas pelos quatro cantos do mundo.
O espanto e a perplexidade da divulgação não radicaram tanto na dimensão ou no volume da informação disponibilizada e tornada pública quanto no conhecimento da identidade e das responsabilidades públicas e políticas de muitos dos beneficiários das contas e operações bancárias ora reveladas. Encontrar, nessa listagem, nomes de principais dignitários, atuais e passados, de vários e importantes Estados que conhecemos na atualidade é um facto de gravidade sem precedentes. Permite inferir a ideia de existência de uma verdadeira “Internacional, a “VI Internacional”, a “Internacional de Malfeitores” que se dão ao luxo de atuarem à margem da lei e, sobretudo, de toda a postura ética, e que mesmo assim exercem o poder político em diferentes latitudes deste mundo sem regra nem norte.
É evidente que, em muitos dos casos revelados, é de verdadeiras questões de legalidade que estamos a falar. Em todos, porém, para além da citada dimensão legal, existe um incontornável plano de responsabilidade ética que foi, claramente, ultrapassado. E o critério ético não se afere por padrões nem de legalidade nem de justiça. Está muito para além de ambos.
A este propósito, porém, convém introduzir alguma racionalidade no debate e discernir duas situações diferentes que a voragem noticiosa nem sempre permite distinguir: o recurso a offshores para albergar património e ativos financeiros não é, em si mesmo, uma atividade ilícita ou condenável. Aliás, importa sublinhar que, na atualidade e num mundo onde o capital tende a circular de forma cada vez mais irrestrita, quanto maior for a propensão dos Estados para aumentar as cargas fiscais que impõem aos seus cidadãos, maior será a tendência para o recurso a territórios onde, praticamente, a fiscalidade não existe ou, existindo, é meramente residual. Coisa distinta, porém, e é dessa que curamos, é recorrer a offshores para ocultar ou esconder património e ativos financeiros, de duvidosa origem e proveniência desconhecida, na maior parte dos casos tendo, a montante, situações ilícitas relacionadas com corrupção, tráficos, ou outras atividades criminalmente relevantes. É precisamente aqui se coloca a questão e é sobre esta situação que o escândalo embrionário acabado de se conhecer nos deve convocar à reflexão. Porque, por muita capacidade argumentativa, ou inventiva, que possa existir, na esmagadora maioria dos casos e das situações relatadas ninguém em seu perfeito juízo é capaz de defender ou sustentar a licitude na acumulação dos patrimónios e fortunas reveladas. O que nos remete para o tal plano metajurídico – o plano da dimensão ética. Ficámos a saber, de forma inequívoca e em muitos casos confirmando suspeições pré-existentes, que parte significativa dos dirigentes que governam este mundo sem rumo evidenciam graves défices de atuação no plano ético e dos valores, acumulando riquezas impossíveis de explicar à luz de qualquer racionalidade e de qualquer atividade lícita, fortunas essas que são escondidas em territórios onde a fiscalidade é quase inexistente, a disposição para a cooperação judiciária internacional praticamente uma impossibilidade e o segredo a regra sagrada que quase não conhece exceções.
Mas também aqui não podemos perder de vista um dado relevante, não raro omitido. Se atentarmos na localização geográfica de muitas das offshores que permitem a ocultação destas fortunas insuscetíveis de acumulação fruto do trabalho honesto, chegamos à conclusão que uma grande parte delas se localizam em respeitadíssimos Estados desenvolvidos e do primeiro mundo, algumas, mesmo em Estados membros da União Europeia, outras em Estados ou territórios sob influência direta daqueles – e que é aí, à vista de todos mas segundo um regime de opacidade total, que opera a Internacional dos Malfeitores e que se dá guarida a muitas situações de ilegalidade evidente e a muitas mais de atuação desprovida de qualquer ética. Isto é, estes paraísos fiscais são, hoje em dia, importantes fatores de concorrência económica entre Estados irmanados noutras organizações, associados noutras instituições, mas que não deixam de querer concorrer entre si em matéria de atração de capitais financeiros, quaisquer que seja a respetiva proveniência ou a sua origem ou licitude. O que nos conduz, imediatamente, a uma conclusão que tem tanto de simples em enunciar como de difícil em concretizar: enquanto for tolerada a existência destes paraísos fiscais, dificilmente se poderá aspirar a uma saudável convivência económica internacional, num mundo que, também neste domínio, é cada vez mais competitivo e cada vez mais dominado por obscuras oligarquias financeiras que, à custa do seu poder económico, vão sedimentando e fortalecendo o seu poder político. A VI Internacional não é, apenas, expressão de quem foge às suas obrigações fiscais e oculta patrimónios e fortunas. É, também, a expressão de uma parte significativa de quem exerce hoje o poder político. Esse é o nosso drama. Nunca, até aos nossos dias, uma Internacional teve tanto poder económico-financeiro e exerceu tanto poder político.

A longa viagem de Barack Obama

Rompendo um silêncio de quase 90 anos, tantos quantos os que distam da última visita de um Presidente norte-americano a Cuba, os Presidentes de Cuba e dos Estados Unidos encontraram-se em solo cubano no início desta semana. Foi um momento histórico que culminou a aproximação entre os dois Estados iniciada no ano passado quando ambos decidiram reabrir reciprocamente as suas Embaixadas. Não assinalou, ainda, a completa normalidade das relações entre os dois países, porquanto subsiste o embargo norte-americano que, há mais de meio século, penaliza Cuba na sequência da crise dos mísseis nucleares soviéticos. E, desde logo, foi uma deslocação que teve desigual importância para ambos os Estados.
Para Cuba, esta visita afigura-se de primordial importância. De há muitos anos a esta parte a dependência de Cuba de um suporte económico exterior afigura-se vital para a sua subsistência. Primeiro, foi a dependência da falecida URSS e de alguns dos seus satélites como Angola; depois, quando as condições económicas (e uma nova conceção política) levaram a nova Rússia a suspender esse auxílio à ilha de Castro, tal papel foi desempenhado, essencialmente, pela Venezuela de Hugo Chavez. A crise petrolífera e o desmoronamento económico da Venezuela, todavia, vieram ditar o fim das liberalidades para com a ilha. Terá sido isso, aliás, que escassos dias antes de Obama pisar solo cubano Nicolas Maduro terá ido transmitir a Raul Chavez, numa viagem que foi pouco noticiada, mas nem por isso de menor importância. Cuba necessita, assim, de encontrar quem alimente a sua economia – e os Estados Unidos e as grandes empresas norte-americanas estão, apenas, a 150 km de distância.
Para Barack Obama, porém, esta viagem é politicamente mais complexa. Apesar de ser das deslocações ao exterior geograficamente mais curtas efetuadas ao longo dos seus mandatos é, no plano político, das mais longas e mais complexas. Os curtos 150 km de distância geográfica transformam-se nuns intermináveis 150 km políticos. Desde logo por não ser pacífica nos próprios EUA, com a maioria republicana no Senado a criticá-la fortemente e a prometer vetar quaisquer acordos políticos que Obama queira negociar. Depois, porque não é bem-vista pela própria oposição interna cubana – que acusa o Presidente dos EUA a legitimar, com a sua presença, um regime despótico e ditatorial, um dos últimos bastiões dos “regimes do muro” e da guerra-fria que subsistem na atualidade. Também por ser na ilha que se encontra a célebre prisão de Guantánamo, que Obama prometeu encerrar na sua primeira campanha eleitoral, mas que ao fim de oito anos e dois mandatos presidenciais continua a ser asilo de terroristas aos quais os EUA não sabem o que fazer nem a que jurisdição submeterem. Finalmente, por se realizar a um país conhecido pelas constantes violações dos direitos humanos, bandeira que qualquer administração norte-americana gosta de brandir e exibir. E neste domínio, parece que a viagem de Obama estará condenada ao insucesso. Raul Castro, de resto, na conferência de imprensa conjunta que deu com o Presidente norte-americano, fez gáudio disso mesmo, de em linguagem ostensivamente provocatória negar a existência de presos políticos em Cuba e a violação de direitos humanos na ilha. Obama, por seu lado, parece apostado em que a abertura económica da ilha levará, necessariamente à sua abertura política e à reforma do seu sistema constitucional e de governo – fiel à crença de que as mutações económicas acabam por gerar transformações políticas. É um facto que em algumas latitudes assim tem sido; continua por demonstrar que essa é a regra que se aplica em todas as situações.
Por todas estas razões – e as expostas não são mais do que as mais relevantes de entre outras várias que se podiam mencionar – Barack Obama tem, nesta sua deslocação a Cuba uma viagem que é, paradoxalmente, das mais curtas dos seus mandatos no plano puramente geográfico, mas uma das mais distantes e longínquas que poderia efetuar no plano político. Se conseguir fazer com que a distância política entre Cuba e os Estados Unidos se aproxime, por pouco que seja, da sua distância geográfica, será caso para dizer que a deslocação valeu a pena. E creio ser esse, a final, o grande objetivo prosseguido pelo Presidente norte-americano.
Post-scriptum – escritas as linhas que antecedem, ocorreram os atentados de ontem em Bruxelas. Sobre eles uma única reflexão se impõe deixar e partilhar: é tempo de deixarmos de ser todos franceses, espanhóis, britânicos ou belgas. Perante as ameaças terroristas, temos de ser todos europeus na luta contra a carnificina, o crime e a barbárie. Porque está demonstrado que só uma profunda união entre os Estados europeus, uma intensificação da cooperação policial, um aumento da partilha de informações e um combate coordenado a esta praga poderá ser minimamente eficaz nesta luta. Desenganem-se os que pensam que Estado algum, individualmente e isoladamente, consegue defender a integridade do seu território. É de progresso e não de retrocesso que a Europa necessita e precisa.