by João Pedro Simões Dias | Jan 14, 2016 | Diário Económico
2016 começou, infelizmente, com mais um trágico registo para o negro livro dos atentados que têm varrido a Europa e as suas zonas envolventes, protagonizados pelo daesh, empenhado em (re)construir o Califado a partir dum pretenso Estado Islâmico em construção. Foi mais uma manifestação sanguinária, repulsiva e condenável que desta vez teve por palco outro estado islâmico – essa Turquia cada vez menos previsível, em acelerada transmutação que, pese embora seja a única bandeira muçulmana içada ao lado das demais bandeiras dos Estados da Aliança Atlântica, e continue a proclamar a sua intenção de se juntar à União Europeia, não escapa à acusação de manter uma posição dúbia na guerra sem quartel que a coligação ocidental (estruturada principalmente em torno dos EUA, da França, da Rússia e do próprio Reino Unido) tem dirigido contra as bases de direção política e os campos de treino que o daesh mantém, sobretudo no território que outrora integrava a Síria e em zonas cada vez mais extensas do Iraque. Oscilando entre a condenação do Estado Islâmico e o terror que tem levado aos curdos – que continuam a ser aliados ocidentais na guerra contra os extremistas pese embora esse mesmo Ocidente nunca se tenha empenhado em dar-lhes a pátria que a nação curda reclama – a Turquia foi a vítima mais recente da barbárie hedionda e demoníaca.
O que nos veio recordar – se preciso fosse – que o terrorismo que mata em nome dum deus qualquer, está dentro e nas imediações desta União Europeia que por vezes dá mostras de caminhar aceleradamente num processo de desconstrução e de regressão. E se há matéria e domínio onde se impunha que a UE e os seus vizinhos concertassem uma efetiva política comum e de partenariado, o combate ao terrorismo afirma-se como o campo por excelência dessa luta sem quartel. Não só por ser o território onde nenhum Estado isoladamente consegue afirmar a sua superioridade como, sobretudo, por ser o plano onde se cruza uma opção fundamental que a cada dia que passa se afigura mais inevitável: a opção entre os valores da liberdade e da segurança. Dito de outra forma – é cada vez mais evidente que teremos que escolher o quantum de liberdade de que queremos ou estamos dispostos a abdicar para garantia da nossa segurança. Mas essa escolha, para ser consequente e eficaz, apenas pode ser feita no quadro duma entidade supranacional, dotada de efetivas competências, meios e determinação política para encetar o combate que é necessário travar. Se os acontecimentos não se encarregarem de destruir o que resta da UE, esta será a escolha que os governantes de turno, mais tarde ou mais cedo, serão chamados a efetuar. Veremos se a tanto chegará a coragem e a vontade políticas.
by João Pedro Simões Dias | Nov 15, 2015 | Diário Económico
O terrorismo voltou, em força, a atacar a Europa. A mais recente batalha desta “terceira guerra mundial em parcelas”, como lhe chamou Sua Santidade o Papa Francisco, voltou a ter Paris por palco e a França por alvo. Num ataque mais elaborado, mais planificado e portanto mais cobarde que os anteriores, o daesh voltou a trazer para a Europa e para a pátria da liberdade, da igualdade e da fraternidade a carnificina bárbara, a que já nos habituou.
Inevitavelmente o debate teria de se colocar – facilitará, a livre circulação de pessoas consagrada pelos acordos de Schengen no espaço europeu, a eclosão destes fenómenos?
A França começou por pensar que sim – uma das primeiras medidas tomadas na sequência dos atentados foi decretar a reposição de controles nas suas fronteiras. Outros países seguiram-lhe o exemplo. O debate está, portanto, relançado e é impossível fugir a ele.
A abolição dos controles fronteiriços internos na Europa, instituída pelos Acordos de Schengen, marca um dos momentos mais simbólicos do processo de construção da unidade europeia. Consagra plenamente o princípio da liberdade de circulação de pessoas, pilar fundamental e pedra angular do mercado comum europeu. Com igual carga simbólica, só mesmo a introdução do euro que traduzia a criação da união económica e monetária. Numa União Europeia burocratizada, na imensa maioria das vezes presa a decisões que pouco ou nada dizem aos seus cidadãos, a abolição das fronteiras internas e a criação de uma moeda comum significaram os dois momentos mais visíveis e mais tocantes para a vida dos cidadãos em concreto.
Com o euro, sabe-se o que se passou. Uma primeira crise económica e financeira à escala mundial chegou para evidenciar as omissões associadas à moeda única e as falhas na sua criação e na falta de instrumentos complementares à existência de uma moeda. À pressa e sob a pressão dos factos, houve que tentar remediar as omissões e suprir e integrar as lacunas.
Relativamente a Schengen teremos, provavelmente, chegado ao momento em que a reflexão terá de ser efetuada. Sobretudo porque, constata-se agora – apesar de alguns o terem denunciado, com pouco sucesso diga-se, no tempo certo – que o princípio da liberdade de circulação e da abolição de fronteiras repousa num equívoco que permanece sem resposta. O equívoco é o seguinte: a União Europeia determinou a abolição dos controles fronteiriços entre os Estados membros que aderiram a Schengen; porém, não curou de criar, a nível supranacional, um sistema eficaz de segurança das fronteiras, de vigilância e controle dos movimentos de cidadãos, da própria criminalidade transnacional. Na sua essência, essas tarefas continuaram entregues aos diferentes Estados nacionais – que perderam a possibilidade de controlar quem entra nos seus territórios mas permanecem responsáveis, em última instância, pela manutenção da segurança dentro das suas fronteiras. Enquanto tudo corre bem, estas omissões e deficiências sistémicas podem ser omitidas ou esquecidas. Quando as coisas começam a correr mal, olha-se para o sistema e repara-se nas suas omissões. O que acaba de ocorrer em Paris (como o que anteriormente acontecera em Madrid, em Londres e também em Paris) é um desses momentos. Um momento que, seguramente, vai obrigar a repensar as regras implementadas e o sistema vigente. E a tendência é para que assistamos a um reforço da componente securitária em matéria de segurança interna naqueles Estados que se considerem mais ameaçados ou mais vulneráveis.
Daí que, associado ao debate sobre o futuro de Schengen, vá aparecer inevitavelmente um outro: irão, a França e os restantes Estados europeus, ceder aos criminosos e reduzir drasticamente direitos e liberdades consagrados na nossa civilização, fazendo aquilo que os facínoras querem com estes atos de violência? Ou terão o discernimento para afirmarem as suas opções, intensificando o combate à barbárie, mas mantendo a afirmação dos nossos valores e forma de vida? Vamo-nos voltar a fechar sobre nós mesmos, como pretendem os terroristas, ou tentar uma presença civilizacional em várias partes do mundo, não cedendo ao medo nem à chantagem das armas? Mais coisa menos coisa, é isto que vai ter de ser discutido e irá estar subjacente a todas as discussões. Simplificando: como vamos conciliar as nossas liberdades e direitos, de que não queremos prescindir, com as exigências da nossa segurança que não poderemos deixar de reclamar? Também para este debate teremos de estar preparados.
Não sendo dos que pensam que a resposta nacional resolverá as questões do terrorismo a nível europeu, somos todavia dos que acreditam que o sistema vigente não resistirá à prova dos factos: e que Schengen, objetivamente, como o conhecemos, morreu a 13 de novembro de 2015. Foi enterrado nas ruas de Paris. Doravante, ou caminharemos na estrada da renacionalização das políticas de segurança nacionais ou assistiremos ao aprofundamento da dimensão comunitária nesta matéria e neste domínio, com a criação de mecanismos à escala europeia que permitam compensar a perda de soberania dos Estados europeus neste domínio. Esta seria, seguramente, a opção mais eficiente, mais eficaz e mais aconselhável. Se, para tanto, houvesse coragem política e lideranças de exceção. Como, uma vez mais, os factos acabarão por se impor, o mais provável é que assistamos à inflexão do caminho e ao retrocesso do pilar europeu da liberdade de circulação de pessoas. Não sendo um bom augúrio, é o que se afigura mais provável. Sobretudo nesta Europa e com estes governantes.
by João Pedro Simões Dias | Set 8, 2015 | Diário de Aveiro
Cada tempo histórico tem tido, a partir do início do século passado, a sua organização internacional de referência, em torno da qual é suposto a comunidade internacional se estruturar e nela se rever. No início do século XX, após a primeira grande guerra, esse papel foi desempenhado pela Sociedade das Nações. Indissociavelmente ligada ao Tratado de Versalhes, que os vencedores da guerra impuseram à Alemanha derrotada, a origem da organização de Genebra está umbilicadamente ao poder exercido pelos vencedores da guerra; paradoxalmente, os EUA que a idealizaram quando o Presidente Wilson preconizou os célebres “catorze pontos de Wilson” como as condições mínimas para o restabelecimento da paz mundial, acabariam por nunca ratificar o Tratado de Versalhes e, consequentemente, o país nunca aderiu à organização.
Também por este facto – mas não apenas por este facto – a eclosão da segunda guerra mundial – esse conflito que Adriano Moreira nunca se cansa de qualificar como mundial pelas suas consequências mas exclusivamente europeu pelas suas causas – revelaria todas as insuficiências e debilidades da SDN para evitar o conflito, mostrando-se incapaz de travar o movimento ascendente das forças do mal que conduziram o mundo para a catástrofe de 1939-1945. E o final do conflito veria nascer a nova organização da nova ordem internacional que se começava a estruturar: a Conferência de São Francisco determinaria o nascimento da Organização das Nações Unidas. Uma vez mais, eram os vencedores de um conflito militar – a segunda guerra mundial – a ditar a sua ordem e a impor a sua lei, reservando para si um papel determinante no principal órgão da entidade nascente – o Conselho de Segurança. Se é verdade que os cinco grandes, sozinhos, não conseguem fazer prevalecer a sua vontade contra os restantes membros do Conselho, a verdade é que nenhuma resolução ou deliberação deste pode ser aprovada com o voto contra de qualquer um desses cinco Estados que, ademais, têm o estatuto de membros permanentes. EUA, Reino Unido, França, China e Rússia são, assim, os aristocratas de um modelo institucional com elevados défices de democracia.
O certo é que a ordem internacional do pós-guerra já ruiu há mais de 25 anos, quando o Muro de Berlim foi derrubado mas, pese embora a emergência de novas organizações mais ou menos institucionalizadas – de que o G20 é o melhor exemplo – a organização de Nova Iorque continua a ser aquela onde é possível “todos encontrarem-se com todos” e, nessa medida, a desempenhar um papel determinante nesta nova ordem internacional que alguns qualificam como uma autêntica “desordem madura”. O problema está em que o mundo mudou mas a ONU cristalizou e não acompanhou essa mudança e essa evolução. Desde logo, é de sobremaneira questionável que os cinco grandes aristocratas que “venceram” a segunda guerra mundial sejam, ainda hoje, as potências de referência no mundo atual. Se já o era na data de fundação da ONU – desde logo com a inclusão da França nesse selecto grupo, o que apenas se compreende por deferência dos demais e pela ascendência protagonizada por De Gaulle – por maioria de razão o é ainda mais nos dias de hoje. Por outro lado, parece inquestionável que novas potências emergiram nos setenta anos subsequentes ao fim do conflito e, legitimamente, podem aspirar a um lugar no Conselho de Segurança. A Alemanha, a Índia, o Japão, o Brasil – serão, apenas, alguns, talvez os principais, dos exemplos que se podem mencionar. O caso da União Europeia não pode, evidentemente, deixar de ser referido, embora seja pacífico que a Europa da União ainda não encontrou suficiente grau de integração política que lhe permita reclamar um lugar no Conselho de Segurança. Verifica-se, assim, que a organização que aspira a ser a referência da ordem internacional, e que em determinado momento o foi efetivamente, denota, atualmente profundo desfasamento relativamente a essa mesma ordem internacional.
Mas esse desfasamento não se faz sentir, apenas, ao nível da sua estrutura institucional ou dos Estados. Revela-se, igualmente, no acervo de competências que a organização tem o dever de chamar a si. Novas competências que emergem de novos problemas que existem atualmente e não existiam nos meados do século passado. A lista é significativa. Creio devermo-nos centrar essencialmente nas questões humanitárias e do novo direito internacional humanitário que, muito lentamente, se vai começando a construir para dar resposta a alguns dos mais dramáticos problemas que o mundo dos nossos dias conhece. Influenciada pelas imagens dramáticas que nas últimas semanas nos têm entrado pelas nossas casas adentro, a comunidade internacional clama em silêncio por uma solução humanista e personalista que ponha fim ao drama que apoquenta qualquer consciência bem formada. E que interpela essa mesma comunidade internacional. Ver este drama como um problema exclusivo dos Estados de destino ou do que resta dos Estados de origem destes migrantes é um erro tremendo. Porque atrasará a sua resolução e só fará aumentar o drama. Nos últimos dias, por sinal, vieram da ex-Secretária de Estado norte-americana e candidata democrata à presidência dos EUA, Hillary Clinton, fruto seguramente da sua experiência em política internacional, as palavras mais sábias e mais ponderadas sobre o tema: o drama que se vive é um problema de toda a comunidade internacional e toda a comunidade internacional, EUA incluídos, deve ser convocada para a sua resolução. Ora, essa convocatória não pode passar ao lado da organização de referência da comunidade internacional, da Organização das Nações Unidas. Mas isso dificilmente se conseguirá enquanto a organização não for objeto da reforma que se impõe e que se exige. Para melhor responder aos desafios do mundo contemporâneo e dos dias que passam. Sem esse trabalho, dificilmente a tarefa terá êxito. Nele se deveriam concitar os esforços da comunidade internacional em mudança acelerada e acentuada.
by João Pedro Simões Dias | Jul 14, 2015 | Diário de Aveiro
Enquanto a União Europeia tem andado entretida em torno dos encontros e desencontros com o governo grego de Alexis Tsipras, passando para o mundo a imagem duma organização internacional paralisada e imobilizada, refém das errâncias táticas do governo de um dos seus Estados-membros, na Europa que existe para lá das fronteiras externas da União – porque para além da UE existe mais Europa, para surpresa de alguns…. – assinala-se por estes dias a passagem do vigésimo aniversário de um dos mais horríveis e bárbaros crimes perpetrados contra a Humanidade e em solo europeu, nos anos mais recentes: o massacre de Srebrenica.
O horror remete-nos para a última guerra civil e fratricida vivida em território da Europa, no pós segunda guerra mundial, tendo por pretexto o desmembramento da ex-Jugoslávia – eventualmente o único erro em matéria europeia cometido pelo chanceler de boa memória, Helmut Kohl, ao apressar o reconhecimento alemão da Croácia auto-emancipada de Belgrado. Este reconhecimento, precipitado, apressou o fim da Jugoslávia da pior maneira possível – pela via armada, com a multiplicação dos conflitos e das guerras intra-nacionais e o sempre indesejado recrudescimento dos diferentes nacionalismos que Tito amordaçara e suprimira. Foi no quadro desse conflito generalizado, mas territorialmente circunscrito que, entre 11 e 20 de Julho de 1995, mais de 8.000 bósnios muçulmanos foram assassinados em massa por parte do exército servo-bósnio, armado pela Sérvia e comandado por Ratko Mladi? (que atualmente se encontra a ser julgado pelo Tribunal Penal para a Antiga Jugoslávia) perante a lamentável inação das forças das Nações Unidas a quem foi pedido que reforçasse a sua presença de capacetes azuis e defendesse aquela população.
Foi este mesmo Tribunal, de resto, que reconheceu este massacre como o primeiro genocídio da História a seguir ao Holocausto. O termo, aliás, voltou a ser utilizado pelo ex-Presidente dos EUA, Bill Clinton, na cerimónia oficial evocativa da tragédia. Curiosamente, também há poucos dias, em pleno Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Rússia de Putin vetou uma resolução apresentada pelo Reino Unido que qualificava esse mesmo massacre como um genocídio. Dir-se-á que os amigos nunca se esquecem nas horas difíceis….
Recordar Srebrenica no tempo histórico que vivemos e no circunstancialismo que a Europa conhece, pode ser mais do que uma simples e trágica coincidência. Quando, impotentes e quantas vezes revoltados, assistimos à desagregação do projeto europeu idealizado pelos pais fundadores como indispensável para garantir um futuro de paz na Europa, mais do que para assegurar vantagens económicas a uns Estados sobre outros, não podemos deixar de invocar os trágicos acontecimentos que assolaram este velho continente há, apenas, duas décadas. E era bom que aos governantes de turno, pese embora os saibamos destituídos da dimensão de estadistas, as mesmas imagens e os mesmos acontecimentos não se lhes escapasse da memória. Porque, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, poderão estar a conduzir os restos sobrantes desta Europa ainda chamada da União para um destino e um futuro muito semelhante àquele que presidiu ao desmantelamento da velha Jugoslávia. Quem excluir, apenas porque sim, essa possibilidade, ignora os demónios que a Europa tem dentro de si, que tendem a despertar ciclicamente, e que nos últimos cem anos já a destruíram por duas vezes. A começar pelo demónio do nacionalismo que continua à espreita e pronto para renascer. E o dos populismos extremistas, de esquerda e de direita, que têm o estranho hábito de conseguirem coincidir nos momentos historicamente mais relevantes. Nunca é demais recordá-los e estarmos atentos para os seus efeitos nefastos.
Srebrenica constituiu, provavelmente o mais recente exemplo da manifestação desses mesmos demónios europeus. O problema é que não está dito nem escrito, em lado algum, que tenha sido o último. Tenhamos sempre bem presente que a barbárie que aqui recordamos aconteceu aqui, na Europa. E foi só há 20 anos.
by João Pedro Simões Dias | Jul 8, 2015 | Diário de Aveiro
Depois do referendo do passado domingo criou-se, no mainstream do politicamente correto europeu, a ideia que os gregos haviam dado uma verdadeira lição de democracia à Europa e aos europeus que, com ela se deviam conformar e a deviam acatar. Com as devidas desculpas a quem professa tal credo, discordo do mesmo. Entendamo-nos:
A Grécia e os gregos, pátria, referência e matriz da democracia ocidental, são credores dos maiores encómios por parte dos europeus e da civilização ocidental. Quantas vezes, hoje, são “descobertos”, invocados e aplicados princípios e regras que, uma investigação mais aturada, acaba por revelar já terem sido descobertas e praticadas na Grécia antiga! Somos, por isso, devedores dessa contribuição grega para a civilização em que nos inserimos. Creio, todavia, que o crédito fica por aí. Com um pouco mais de boa vontade, estender-se-á à oposição que protagonizaram aos exércitos nazis por altura da segunda guerra mundial. Admito que também lhe possamos dever isso. E aceito que reconheçamos que o povo grego tem sido martirizado, humilhado e sofrido um empobrecimento sem limites fruto exclusivo das escolhas que têm efetuado.
Já não lhes devemos, porém, as opções políticas que têm feito, as escolhas erradas que têm efetuado, a destruição da sua economia que protagonizaram, a corrupção que encobriram, a desestruturação do Estado que originaram, o clima de impunidade e saque fiscal de que tanto gostam, os desvarios financeiros de que deram provas. E sobretudo, não lhes devemos a dívida que construíram, os défices orçamentais que aceitaram, o caos financeiro em que se meteram. Isso, nós não lhes devemos nem, por isso, podemos ser minimamente responsáveis. No limite, nós, europeus, podemos ser acusados de, assistindo a tudo isso termos sido complacentes. A complacência, todavia, não gera conivência nem produz co-responsabilização.
Admirador, portanto, da clássica civilização grega, não me sinto minimamente obrigado a admirar a prática dos atuais dirigentes políticos da Grécia contemporânea. Mais – acredito que essa prática envergonharia os expoentes e os arautos do pensamento político clássico ateniense. Muitos destes vultos de sempre, terão dado verdadeiras voltas nos seus túmulos assistindo aos princípios de governo dos seus atuais descendentes.
Dito isto, impõe-se destruir outro mito que saiu reforçado do referendo do passado domingo: não existiria Europa sem a Grécia. Coloquemos as coisas em perspetiva: se não poderia existir espírito europeu sem a contribuição dos clássicos gregos, estamos de acordo; se não poderia existir União Europeia sem a atual Grécia, lembremo-nos apenas das dezenas de anos de existência da mesma União (Comunidades Europeias) sem a Grécia a integrar. E não foi por isso que o projeto europeu deixou de ser criado e gerado pelos pais fundadores.
Vem isto a propósito das afirmações precipitadas que quiseram impor o resultado do referendo grego do passado domingo a toda a Europa comunitária, aos seus Estados e às suas instituições, como se o mesmo tivesse uma eficácia extra-territorial, impondo-se a Estados terceiros, a povos terceiros, mesmo àqueles que não haviam votado no referendo grego. Ou seja, os gregos teriam o dom de votar e decidir por todos os europeus; estes, dever-se-iam conformar e aceitar as escolhas gregas. Sem tugir nem mugir.
Acontece que este raciocínio esquece um “detalhe” fundamental – as democracias dos restantes Estados parceiros da Grécia, em nada são inferiores ou menores que a democracia grega. E se o gregos têm o dever de tratar da sua vida e defender os seus interesses, os restantes Estados Europeus têm idêntica obrigação e direito. E um desses direitos, se assim o entenderem, é decidir que não querem continuar a pôr dinheiro em cima do problema grego, para onde já transferiram mais de 260MM€! Visão egoísta? Pode ser que sim. Não mais egoísta, porém, do que algumas opções políticas gregas que têm pretendido condicionar a Europa, os seus Estados e as suas instituições. Imagine-se que alguém propunha um referendo europeu para os europeus decidirem se queriam que os seus impostos fossem pagar dívidas dos gregos. Alguém tem dúvida do que diriam os europeus?
Resta-nos, assim, recentrar o problema e a questão principal. A Grécia é importante para o projeto europeu e nele deve continuar. A situação em que voluntariamente se colocou e as suas próprias debilidades obrigam-na a negociar com os seus credores, obtendo plataformas de entendimento, consensualizando e acordando, cedendo e não impondo, abdicando de qualquer pseudo-superioridade moral por referência aos seus parceiros e credores. O seu povo já tem sido sujeito a sacrifícios sem paralelo por se haver colocado (in)conscientemente em situações que a tanto obrigaram. Merece tolerância, compreensão e auxílio europeu. A Europa, Estados e instituições credoras, por seu lado, têm o direito de exigir o cumprimento das regras da zona euro, o reembolso do que emprestaram aos gregos mas, simultaneamente, o bom-senso de não asfixiarem este povo e este Estado, sob pena de todos saírem a perder. Não são, pois, difíceis de enunciar os princípios que devem nortear um acordo que se deseja e por que se anseia.
Agora, por favor, não nos venham tentar impingir a ideia de que somos todos gregos porque, felizmente e a bem da própria Europa, não, não somos todos gregos. Somos todos europeus. Unidos, mas na nossa diversidade. A saída da Grécia da zona euro significaria um forte golpe no projeto político que constituiu o euro. Mas a sua permanência a qualquer custo, sob chantagem negocial, poderia acarretar, para este projeto, efeitos tão ou mais perniciosos que se impõe evitar. É a hora de a Europa que sobra e resta demonstrar que ainda tem um mínimo de bom-senso e de equilíbrio. Porque, no final, vai ser da Europa, dos seus Estados e instituições, a palavra final desta tragédia grega.