Os muros estão de volta à Europa?

O folhetim grego, em torno de um diálogo que parece permanentemente inacabado e adiado entre a Grécia, as instituições europeias e os seus credores internacionais, tem concitado a generalidade da atenção da nossa opinião pública e publicada, a ponto de não faltar quem não seja especialista em assuntos gregos, peritos em economia internacional e europeia e outras sumidades cujas valências nestes domínios estavam absolutamente desperdiçadas e eram de todo desconhecidas. A tal ponto o assunto tem concitado as atenções gerais que, outros de extraordinária relevância, têm sido remetidos, invariavelmente, para notas de rodapé e pés de página informativos. A questão humanitária que continua a assolar a Europa é um desses assuntos.
Por tão repetidas e reiteradas, as tragédias continuam a suceder-se no Mediterrâneo que, neste início de milénio, corre o sério risco de se transformar na maior e mais trágica vala comum desta Europa dos nossos tempos. A instabilidade no norte de África teima em persistir e não pára de aumentar a busca incessante dos que preferem deixar tudo para trás em busca duma terra prometida por que anseiam neste Velho Continente. E para esta tragédia humanitária, a Europa, especialmente a da União, teima em não dar respostas nem encontrar soluções. A Itália tem sofrido a maior pressão migratória e o seu primeiro-ministro Renzi já fez o ultimato final aos seus parceiros europeus. Não, consta, porém, que tenha sido suficientemente persuasivo ou deveras convincente a ponto de levar os seus parceiros de Conselho Europeu a reverem as suas posições. E no entretanto a tragédia vai continuando. E as instituições europeias vão discutindo a melhor maneira de a evitarem. Estranho mundo este….
Na passada semana, todavia, deu-se mais um passo atrás neste processo de desconstrução europeia em curso – passo que voltou a passar despercebido à opinião pública europeia, refém da crise grega. Numa decisão inqualificável, o governo da Hungria decidiu começar a erguer um Muro ao longo dos 175 km de fronteira que separam a Hungria da Sérvia. O primeiro-ministro Viktor Orbán, pese embora o suporte popular que evidencia no seu país, não é propriamente um exemplo da democracia ocidental tal qual a concebemos nos nossos dias. Curiosa e paradoxalmente, é apontado como um servidor da extrema-direita europeia que – vão lá entender-se as razões da geopolítica que a razão tantas vezes desconhece…. – cultiva uma notória proximidade com muitas posições de Putin e da nova Rússia. Pois bem, para evitar a multiplicação da entrada de refugiados – sobretudo moldavos – através da fronteira sérvo-húngara (que este ano já ultrapassaram os 50.000 pedidos) o governo húngaro anunciou a construção de um Muro ao longo daquela fronteira para evitar as migrações terrestres! Esta decisão coloca-nos vários e diversos problemas.
Em primeiro lugar é um sintoma do estado de desunião e de degenerescência a que esta União Europeia chegou, postergando os mais elementares valores e tradições em que se fundou e com base nos quais o projeto europeu foi iniciado. Qualquer semelhança entre esta união e o projeto concebido pelos pais fundadores é, seguramente, mera coincidência; e não mais do que isso.
Em segundo lugar, uma questão profundamente simbólica. Esta Europa, alargada e por isso mesmo ingovernada, que teima em chamar-se da União, por paradoxal que pareça, alicerça-se no derrube do Muro, do Muro de Berlim, que simbolizou a reunificação alemã, mas também o reencontro da Europa consigo mesma, com a sua unidade, com a sua tradição, com a sua história. A Hungria que agora ergue muros, nunca teria ingressado na União se os muros tivessem permanecido de pé e se o Muro de Berlim não tivesse sido derrubado. É o cúmulo do paroxismo e da contradição ser essa mesma Hungria a reerguer muros nesta segunda década do século XXI.
Em terceiro lugar – a prática que agora se anuncia para além de violar princípios, valores e um verdadeiro acervo moral de que a União Europeia se fez depositária, viola também regras e princípios elementares dum direito comum e duma jurisprudência comum que, lentamente, se tem vindo a construir. O que significa que, a passar-se do anúncio à prática das medidas anunciadas, é a própria União que, violando o direito que ela própria tem vindo a construir, corre o sério risco de deixar de ser uma verdadeira comunidade de direito.
Numa União Europeia em que a política prevalecesse sobre o económico e o financeiro e que estivesse solidamente alicerçada num projeto político, estas práticas seriam, pura e simplesmente, impossíveis de acontecer. Nesta União, porém, que confere a primazia ao económico e ao financeiro, secundarizando a dimensão social e o pilar político, e que é servido não por estadistas mas por governantes, parece que tudo é possível, parece que tudo é admissível. Estranha-se, apenas, que haja quem proclame a sua surpresa pela emergência, um pouco por toda a Europa da União, dos extremismos que, no limite, questionam esse mesmo projeto europeu.
Esses radicalismos extremistas, de esquerda e de direita, que dividem e pulverizam os partidos tradicionais nos diferentes Estados europeus, não constituem causa do estado a que a União chegou. Constituem consequência desse mesmo estado. Quem não perceber esta diferença, dificilmente perceberá os dias que se vivem na União Europeia. A começar pela situação grega e a acabar no novo muro da vergonha que para vergonha de todos nós leva no frontispício o nome do Sr Viktor Orbán.

Nos 30 anos da adesão de Portugal à UE (Parte II).

2. Os impactos da adesão
A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, trinta anos após a sua concretização, continua por estudar nos seus múltiplos aspectos e nas suas diferentes dimensões. É uma lacuna que urge suprir e em que os nossos centros de excelência nacionais (com as Universidades e outras instituições de ensino superior à cabeça) já deveriam estar envolvidos.
De uma forma muito simplificada, dir-se-á que essa adesão teve duas consequências principais – uma geopolítica e outra económico-financeira.
No plano geopolítico, a adesão significou a inclusão de um pequeno país, europeu e periférico, na organização político-económica mais representativa da Europa dos meados dos anos oitenta. E que nos anos seguintes não deixou de ganhar protagonismo e importância. Constituiu uma inserção que resultou de uma clara opção política por parte dos partidos que integravam o arco da governação e significava, ela própria, um pacto de regime que, nas suas linhas fundamentais, se tem mantido em vigor até aos nossos dias. Na sua essência, porém, nos primeiros anos, teve a particularidade de constituir uma alternativa à dimensão e vocação atlântica que sempre foi histórica para Portugal mas que, naquela concreta situação dos meados da década de oitenta do século passado, ainda não havia digerido por inteiro o trauma e as consequências dum processo de descolonização que, por tardio, não deixou de fazer a sua mossa e deixar as suas cicatrizes. A “Europa” volveu-se, assim, para Portugal, por alguns anos, em alternativa ao “Atlântico”. Teriam de passar muitos anos para que os nossos governantes percebessem e entendessem que ambas as dimensões não eram antagónicas, antes se completavam. Mais – que quanto mais Portugal valorizasse a sua dimensão atlântica, maior poderia ser a sua importância relativa no quadro europeu em que passava a posicionar-se. Naturalmente – esta inserção política teve o seu custo e o seu preço: Portugal passou a ter de partilhar domínios importantes da sua soberania com os restantes Estados membros das Comunidades a que aderiu. Passou a ter de transferir para as instituições europeias áreas cada vez mais alargadas de competências que até então detinha em exclusivo, passou a ter de se sujeitar às deliberações que nesses domínios fossem tomadas preferencialmente em Bruxelas, viu o direito comunitário passar a ter de se lhe aplicar de forma directa e com primazia sobre o seu próprio direito nacional. Foram, digamos, assim, os custos ou o preço da adesão, o preço de ter passado, também, a ter uma palavra em domínios e matérias que lhe estavam vedados.
Mas foi, talvez, no plano económico ou financeiro que os impactos da adesão portuguesa às Comunidades mais se fizeram sentir e, talvez, maior visibilidade pública ganharam. Fruto do atraso económico e social que conhecia, tendo por comparação os seus novos parceiros europeus, os baixos índices de crescimento e de desenvolvimento e, sobretudo, as assimetrias perante a generalidade dos índices médios comunitários, Portugal foi colocado na cauda de quase todas os rankings que na altura se fizeram. O que contribuiu decisivamente para, no período de transição e mesmo depois dele, virmos a ser beneficiários líquidos dos orçamentos comuns, isto é, recebermos mais (incomparavelmente mais….) das Comunidades do que aquilo com que contribuíamos para o referido orçamento comum. E essa viria a ser uma marca indelével de todo o processo português de integração europeia. Durante anos a fio – durante sucessivos quadros comunitários de apoio – a nossa pertença ao projecto comunitário europeu teve, para o cidadão comum, um único e simples sinónimo: dinheiro, muito dinheiro, que Bruxelas transferia para Lisboa, à razão de milhões de euros/dia. E a nossa elite dirigente facilitou e contribuiu para ampliar essa percepção. Criou-se a mentalidade que o dinheiro europeu não tinha fim, substituía tudo, comprava tudo, compensava tudo, dava para tudo. Com ele pagou-se a desarticulação de vastas zonas do nosso sector produtivo primário e secundário; terciarizou-se a nossa economia; indemnizou-se e pagou-se para não produzir ou deixar de produzir; apostou-se em formação dita profissional que muitas vezes não passou de pura fachada e, sobretudo, apostou-se à outrance em obra pública de betão armado para suprir as necessidades e lacunas do país e para ir muito além delas. O critério era fácil: havia dinheiro, era barato, saltava à vista e rendia votos. Esse terá sido o principal erro associado à nossa integração europeia: a mentalidade que se deixou criar que aderir às Comunidades Europeias significava receber muito dinheiro que podia ser gasto sem regra nem critério e, depois e sobretudo, visto à distância, as opções políticas que presidiram à despesa efectuada com essas quantias fabulosas. Muito pouca aposta na formação humana em razão inversa da aposta feita na obra pública; e, sobretudo, a desindustrialização provocada numa economia que precisava de se regenerar mais do que se terciarizar.
Sendo certo que, como se disse a abrir este texto, o balanço global da nossa adesão às Comunidades Europeias (entretanto transformadas em União Europeia) continua por fazer, e pese embora os erros enormes associados a um caminho que completará 30 anos no próximo dia 1 de janeiro, a verdade que se nos afigura inquestionável é que o saldo da opção tomada em 1977 tem de se haver por francamente positivo. Dito de outra forma – à data que a questão da adesão se colocou, dificilmente a opção tomada por Portugal poderia ter sido outra, diferente ou distinta. Com as portas do Atlântico, à data, circunstancialmente encerradas pela conjuntura histórica acabada de viver, a opção europeia era a única que Portugal tinha se pretendia ter alguma voz ou relevo nos assuntos europeus e mundiais. Se, daí em diante, nem tudo correu da melhor forma ou da forma mais adequada, não se busque a responsabilidade na adesão ou projecto europeu, busquemo-la, antes, nas opções políticas menos acertadas que, também em política europeia, têm sido uma constante aos longos destas últimas três décadas.

Nos 30 anos da adesão de Portugal à UE (Parte I)

1. A adesão de Portugal às Comunidades Europeias
Completam-se hoje, 12 de junho, trinta anos sobre a data em que Portugal assinou, no Mosteiro dos Jerónimos, o seu Tratado de Adesão às, então, Comunidades Europeias. Poucas horas depois, em Madrid, repetir-se-ia o ato com a assinatura do Tratado de Adesão espanhol. Culminando oito anos de intensas e difíceis negociações, iniciadas em 1977 sob os auspícios do primeiro-ministro Mário Soares e do ministro dos negócios estrangeiros Medeiros Ferreira, naquele 12 de Junho de 1985 as Comunidades Europeias davam o primeiro passo para deixarem de ter 10 membros e passarem a constituir, a partir de 1 de janeiro seguinte, a “Europa dos doze”. Assim se manteria até 1995 quando os “doze” deram lugar aos “quinze”, com as adesões da Finlândia, Áustria e Suécia. Trinta anos depois impõe-se recordar o ambiente daquela Europa a que aderimos; e, em texto próximo, ensaiarmos uma avaliação ou balanço dessa aventura europeia nacional.
A primeira questão que importa recordar prende-se com o mito que escutámos durante muitos anos segundo o qual, com a adesão às Comunidades Europeias, Portugal havia “aderido à Europa”. Sempre questionámos essa afirmação, por simplista e incorreta. E, em trabalho académico publicado (“A cooperação europeia e Portugal, 1945-1986”, SPB Editora, Lisboa 1997), tivemos oportunidade de detalhar o erro da afirmação relembrando e recordando, de forma aprofundada, que desde o fim da segunda guerra mundial, pese embora o regime político vigente no país, Portugal esteve, quase sempre, presente e envolvido em todas as organizações europeias que se constituíram, nos mais diferentes domínios de atividade. As exceções foram, justamente, as Comunidades Europeias e o Conselho da Europa. Excluindo estas duas organizações, Portugal esteve nas restantes que se criaram na Europa ou a partir da Europa do pós segunda guerra mundial.
Foi assim, no domínio económico, com a OECE (que se viria a transformar em OCDE), criada para gerir os fundos transferidos dos EUA para a Europa ao abrigo do Plano Marshall, para fazer face à reconstrução europeia (e isto apesar de não termos tido envolvimento direto no conflito militar mundial) – num processo negocial, de resto, recheado de peripécias e movimentações diplomáticas curiosíssimas que permitiu que Portugal tivesse o estatuto de Estado fundador; foi assim, no domínio político-militar, com o Tratado de Washington ou do Atlântico Norte que instituiu a Aliança Atlântica (NATO), unindo os Estados da Europa ocidental aos EUA e ao Canadá, com o pretexto de defender o ocidente do perigo russo, e da qual Portugal foi também membro fundador; foi assim, no plano político-económico, com a EFTA – tentativa de resposta britânica à criação das Comunidades Europeias, de que o nosso país também foi fundador; e foi assim quando, em meados da década de cinquenta, Portugal foi admitido na ONU, a organização global feita à imagem dos vencedores da segunda guerra mundial. Fenece, assim, em absoluto, a ideia que durante muito tempo fez o seu caminho entre nós, segundo a qual, aderindo às Comunidades Europeias, tínhamos “aderido à Europa”. Não, não é verdade; além de já lá estarmos e integrarmos geograficamente essa Europa desde o nosso nascimento como Estado e Nação, já nela e nas suas principais organizações económicas, políticas e militares nos encontrávamos desde o fim da segunda guerra mundial e antes mesmo de aderirmos às Comunidades Europeias.
A segunda questão que importa realçar e recordar é que, tendo “apenas” passado trinta anos sobre o evento que evocamos, no plano histórico parece ter sido uma eternidade tantos e tais foram os acontecimentos que se sucederam, muitas vezes a uma velocidade vertiginosa; a ponto de, deles tendo sido testemunhas diretas, na maior parte dos casos não havermos assimilado totalmente a dimensão daquilo a que assistíamos.
Vivíamos, na altura, em pleno mundo caracterizado por uma ordem mundial estranha – que era o mundo saído da segunda guerra mundial ou, por simplificação de linguagem, o mundo da guerra-fria. Numa palavra, estava-se em pleno mundo bipolar. Eram dois os dois blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; eram duas as superpotências existentes: os EUA e a URSS; eram duas as “Europas” politicamente relevantes: a “Europa Ocidental” e a “Europa Oriental”; eram duas as organizações de defesa preocupadas com o território europeu: a NATO e o Pacto de Varsóvia; eram duas as organizações económicas de feição europeia: a CEE e o COMECOM; eram duas as Alemanhas existentes: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; e, finalmente e para cúmulo, eram duas as cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste.
Quatro anos depois da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, “esta” Europa a que acabávamos de aderir desapareceu. Dentro e fora das Comunidades. Estas, encetaram o caminho da UEM e da união política – e surgiriam as CIG’s que estariam na origem do Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia e abriria caminho para a criação da moeda única europeia; fora das Comunidades, no plano geopolítico, tudo mudou – ruiu o Muro, reunificou-se a Alemanha, implodiu a URSS, dissolveram-se o COMECON e o Pacto de Varsóvia, multiplicaram-se os Estados e as nações no centro e no leste da Europa, renasceram os nacionalismos, abriu-se a porta ao alargamento, ad absurdum, da União Europeia. Estava, pois, criado o caldo de cultura suficiente e necessário para a Europa e o espírito europeu entrarem em crise, serem postos em causa na raiz da sua essência, anunciando períodos de crise que, sabemos hoje, não deixariam de fazer a sua aparição.

Futebol e política. O “caso FIFA”

Foi preciso Loretta Lynch tomar posse, há cerca de um mês, como Secretária da Justiça dos Estados Unidos, para o mundo do futebol sofrer um dos maiores abalos que a sua história regista e quebrar-se, pela primeira vez, a sensação de impunidade que parecia cobrir as atuações dos principais dirigentes da sua estrutura de cúpula mundial. Duma assentada, e sem que nada o fizesse prever, foram detidos oito membros da direção da FIFA, acusados duma diversidade de crimes que incluem a corrupção, a fraude fiscal, o branqueamento de capitais, a burla, vários outros. Dum momento para o outro, o edifício do futebol mundial tremeu – mas, ainda assim, não ruiu. E apesar de o seu líder máximo se encontrar sob investigação policial na Suíça, impedido de abandonar o país, reelegeu-o para mais um mandato de quatro anos à frente da sua federação mundial. Federação que, em muitos domínios, a começar pelo económico e financeiro, se assemelha em muito a um verdadeiro Estado transnacional, alicerçado num poder tentacular, hegemónico, insindicável, não raro despótico.
O poder de que a FIFA tem beneficiado tem progredido na direta proporção da evolução do futebol de uma simples modalidade desportiva para uma indústria e um dos negócios mais relevantes do mundo, movimentando verbas e quantias cada vez mais incalculáveis, estendendo a sua influência a sectores cada vez mais amplos de um número cada vez maior de países e de Estados. Mais do que uma federação ou confederação desportiva, a FIFA é, hoje, uma das mais poderosas organizações internacionais que se movimentam à face do planeta, que beneficia do facto de atuar sem qualquer concorrência e que se dá ao luxo de, inclusivamente, beneficiar de um sistema jurídico próprio, chamando a si, em domínios cada vez mais extensos, a competência exclusiva para a regulação de um leque cada vez mais alargado de matérias. O seu poder é crescente, beneficiando da capacidade de regulamentar um fenómeno que, por natureza, é um fenómeno de massas – o futebol internacional. É a coberto do futebol internacional que gira toda uma poderosíssima máquina organizativa, burocrática, comercial que tanto cumpre a função desportiva que lhe está incumbida como se movimenta no mundo paralelo dos negócios internacionais chegando ao ponto de, não raro, forçar a mão e impor a sua vontade aos próprios Estados que incumbe de organizar as suas provas. Coordena e integra mais de 200 federações nacionais, estabelece protocolos de colaboração com entidades como a ONU ou a União Europeia, gere uma riqueza superior ao PIB de muitos Estados de pequena e média dimensão – e fá-lo, por regra, impunemente e sem prestar contas a quem quer que seja. Verdade se diga – beneficia da demissão e dos favores que muitos Estados lhe prestam e do temor reverencial que suscita em muitos governantes por esse mundo fora. Sobretudo nos Estados menos desenvolvidos e, por isso, mais atreitos e predispostos à traficância de interesses e à submissão colaborante com quem dispõe do acesso e do poder de financiar quem manda e quem governa.
Mas se as suspeitas e os rumores sobre a (i)legalidade das suas práticas e dos seus negócios não são de hoje nem de ontem, foi preciso que a suspeita tocasse solo norte-americano para soarem as campainhas de alerta e se desencadeassem os procedimentos de cooperação judicial internacional em matéria penal que culminaram com as detenções que se fizeram públicas a escassas quarenta e oito horas da FIFA reeleger Blatter para o seu quinto mandato consecutivo. Este, por seu turno, optou pelo eventual único caminho que lhe sobrava – avançando para a sua própria reeleição na convicção que o manto do cargo o possa proteger (ou retardar) as mais que prováveis acusações a que dificilmente escapará. É a típica fuga em frente de quem, por desespero, não consegue divisar caminho alternativo. O seu destino, porém, parece talhado – e não será feito nem de honra nem de glória. Se dúvidas houver, basta atentar no que foi declarado pelo dono do grupo Traffic (um verdadeiro império onde se contava a sociedade até há pouco tempo detentora da SAD do Estoril-Praia), o brasileiro José Hawilla, um dos envolvidos que aceitou colaborar com a justiça norte-americana na investigação sobre fraude, lavagem de dinheiro e corrupção nos últimos 24 anos, durante os quais, segundo as autoridades, foram pagos cerca de 140 milhões de euros em subornos.
É esta, infelizmente, a realidade de futebol internacional, na sua superestrututura dirigente, nos dias que correm. Uma realidade, infelizmente, percepcionada pelo grande público, ainda que não de forma absolutamente igual ou idêntica em todas as latitudes, mas que contribui, indelevelmente, para que o futebol seja hoje em dia uma modalidade que não escapa imune à suspeição da permeabilidade aos mais diferentes tipos de interesses e negócios. E que, em vários continentes – sobretudo em África e na Ásia – não é separada das próprias ligações promíscuas aos detentores dos diferentes poderes políticos instalados. Que manobra, que controla, que compra e de que chega a dispor. É, nessa medida, um agente que atua à escala planetária e que não é estranho ao próprio fenómeno político. Ou não tem sido estranha a esse fenómeno. Se dúvidas houver, basta atentar nas reações políticas que estas diligências judiciais motivaram – de Putin a Cameron, da França à Alemanha. Se a iniciativa judicial norte-americana contribuir para, pelo menos, ajudar a separar as águas entre estas duas dimensões, já terá valido a pena. Independentemente dos objetivos ou sucessos que consiga lograr no estrito âmbito da atividade da FIFA.

Ainda as eleições no Reino Unido

1. Durante semanas a fio, comentadores, observadores e simples curiosos teceram as mais diversas considerações sobre as eleições gerais no Reino Unido, que ocorre­ram na pas­sada quinta-feira, condicionados por um facto absolutamente incontorná­vel: todas, re­pito, todas as sondagens apontavam para resultados muito pró­ximos entre conservado­res e trabalhistas, não raro para um empate técnico en­tre ambos posto que, a diferença entre ambos os partidos cabia nas margens de erro das referidas sonda­gens. Nós próprios, nestas mesmas páginas, há uma semana, o fizemos e demos eco à “informação” que nos ia chegando. O panorama prolongou-se, inclusivamente, para as proje­ções efectuadas à boca das urnas que estiveram na origem das primeiras previ­sões apresentadas por to­dos os canais televisivos. Contados os votos, porém, eis a surpresa e a estupefação ge­ral: não só os conservadores ganhavam as elei­ções como, inclusivamente, reforçavam a sua posição, conquistavam mais assentos par­lamentares e logravam alcançar uma maio­ria absoluta em Westmister, coisa que não sucedia desde os tempos de John Ma­jor. Em contrapartida e ao arrepio do que diziam as ditas sondagens, os trabalhistas sofriam um desaire eleitoral sem paralelo nos tempos recentes, os liberais-democratas foram quase varridos do mapa eleito­ral e os dois “outsiders” conheciam sortes diferentes: o UKIP de Farage conquis­tava mais de quatro milhões (!) de votos mas um (!) único assento parla­mentar – coisas dum sistema eleitoral feito para criar maiorias absolutas e favorecer o bipartidarismo – e o SNP, inde­pendentistas escoceses, faziam quase o pleno na Escócia, elimi­nando aí a expres­são eleitoral trabalhista. Foi, pois, nessa medida, uma noite eleito­ral longa mas de “suspense” e estupefação. Manda a verdade dizer, todavia, que as sonda­gens falharam mais na distribuição dos mandatos do que na percentagem dos vo­tos obtidos por cada partido. Mas nem por isso deixaram de errar clamorosamente nem isso serve de atenuação para o erro e a descredibilização das mesmas.
2. Os resultados conhecidos vão, porém, no imediato, permitir a formação de um governo maio­ritá­rio conservador. Curiosamente, e apesar de ter tido necessidade de aplicar me­di­das de austeridade, Cameron aplicou a receita que acreditou ser a que melhor ser­via aos súbditos de Sua Majestade e não a que lhe era ditada do exterior, pelo Euro­grupo, pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu ou pelo próprio Fundo Monetário In­ternacional. Logrou alcançar um crescimento económico de 2,4% em 2014, uma taxa de desemprego próxima do pleno emprego e um défice orça­mental na casa dos 5,5% (quem disse que os défices orçamentais não podem ser virtuosos?). Colheu os frutos da sua política vendo a mesma ser eleitoralmente recompensada e reconhecida pelo voto popular.
Vai ter, agora, pela frente, de lidar com dois problemas que em muito vão transcen­der a mera política interna britânica: o renascimento da questão escocesa po­tenciada pela ascensão eleitoral do SNP e a questão do referendo sobre a permanên­cia do Reino Unido na União Europeia, prometido para 2017. Neste plano, do relacionamento do Reino com a Europa da União, o resultado eleitoral conhe­cido em Londres constitui, segu­ramente, mais uma dor de cabeça para Bruxe­las. Cameron, para esvaziar eleitoral­mente o UKIP, teve necessidade de, du­rante a campanha eleitoral, encostar o seu dis­curso “à direita”; agora, com a responsa­bilidade única da governação, já sem a moderação europeia introduzida pelos liberais-democratas de Nick Clegg, não deixará de jo­gar a sua posição eleitoral e a força dos seus votos num esforço negocial com Bruxe­las que se assemelhará muito ao que, nos anos oitenta do século passado, foi protagoni­zado por Marga­reth Thatcher – e que lhe valeu o célebre “cheque” como contra­partida das políti­cas agrícolas comuns. Tudo, claro, em nome do apelo a um voto favorável à manutenção do Reino na União aquando da realização do referido referendo. As negociações não serão fá­ceis e Bruxelas irá ter pela frente um opositor determinado e relegitimado eleitoral­mente. Não serão tem­pos de bonança no horizonte europeu com difíceis negociações que com facilidade se podem antecipar.
3. Mas este acto eleitoral veio pôr, ainda, a descoberto, um aspecto que merece alguma pon­deração e um registo especial: a erosão significativa sentida pelo voto trabalhista. E essa não se pode atribuir, exclusivamente, à emergência do voto nacionalista na Escó­cia. As razões serão mais profundas e mais sérias.
Quando a esquerda democrática europeia adotou as políticas da terceira via inspiradas pelo New Labour de Tony Blair, exerceu uma influência sem precedentes na governa­ção da Europa. Recordo, de memória, que pelos finais dos anos noventa do século pas­sado dos quinze governos da UE, onze eram socialistas, trabalhistas ou sociais-democra­tas. Foram os tempos da “Europa rosa” de Blair, Schröder, Guterres, Prodi, Jos­pin…. Muitos outros. Chegaram a ser onze em quinze.
Depois, depois começaram a dar ouvidos à ortodoxia dogmática (onde Mário Soares teve pa­pel de destaque) e quiserem recuar à pureza ideológica e acabar com a “viragem à di­reita” em nome dos princípios velhos. Resultado: começaram a perder eleições a eito em benefício de partidos integrantes do PPE e a, praticamente, serem varridos dos ma­pas eleitorais e/ou parlamentares: Grécia, França, Portugal, Espanha, Alemanha….
O que aconteceu, na passada quinta-feira, no Reino Unido, foi só mais um episódio desta história….
Não está, todavia, dito ou escrito em lado algum que tenha sido o último….
Post-scriptum: começam a vir a público informações e elementos que mostram o envolvimento e a participação determinantes do Papa Francisco e da máquina político-diplomática do Vaticano em todo o processo de preparação da aproximação entre os EUA e Cuba, sinalizada por Obama e Castro. Também nesta diplomacia de confidencialidade, Sua Santidade segue as pisadas e o exemplo do bom e amado Papa-mineiro, São João Paulo II, sem cuja atuação o mundo não teria podido assistir ao fim da guerra-fria, à implosão do império soviético e à reconquista da liberdade pelos Estados além da cortina de ferro.