Eleições no Reino Unido

Na próxima quinta-feira o Reino Unido vai a votos para escolher a nova Câmara dos Comuns para o quinquénio que se aproxima. À semelhança do que acontece com as eleições legislativas nos demais grandes Estados europeus, fruto da cada vez maior interdependência das soberanias restantes, o respetivo resultado está longe de dizer respeito unicamente aos súbditos de Sua Majestade, podendo projetar-se mediatamente na vida de muitos mais europeus com quem o Reino partilha (pouco) a pertença a um mesmo espaço geostratégico, político e económico, como é a União Europeia. Serão, por isso, eleições que, longe de se destinarem apenas a escolher quem vai ser o próximo ocupante do nº 10 de Downing Street ou quem vai ocupar os 650 lugares do parlamento do Palácio de Westminster terão inegáveis repercussões na própria política europeia e na posição que nos tempos mais próximos o Reino Unido pode vir a ter ou a desempenhar no quadro da União.
Sabemos que, historicamente, o Reino de Sua Majestade nunca primou pelo entusiasmo face ao projeto europeu – ou, pelo menos, ao projeto europeu com o rumo que se lhe conhece. Pese embora o paradoxo de ter sido um dos seus maiores heróis da contemporaneidade – o primeiro-ministro Winston Churchill – uma das vozes mais relevantes em defesa da união da Europa, o certo é que a Europa cuja união Churchill preconizou já não existe há muito, a ordem internacional mudou radicalmente e o projeto europeu que mobiliza os britânicos afere-se quase exclusivamente pela sua dimensão económica, prescindindo de tudo quanto possa ser qualquer aproximação ao domínio do político, posto que, para este, continuam a existir a suas instituições nacionais, mormente o seu parlamento, com um leque de competência cuja intangibilidade reside quase no domínio do dogma. E por isso o Reino não participa na moeda única, não assinou o pacto orçamental, subscreveu com reservas os acordos de Schengen e beneficia de uma série de cláusulas “opting-out” em várias políticas comuns europeias. Está, de certa forma, com um pé dentro e um pé fora da União: dentro naquilo que lhe pode ser económico-financeiramente vantajoso; fora naqueles domínios que obriguem ou suponham maiores transferências de soberania de Westminster para Bruxelas.
Beneficiando de um sistema eleitoral maioritário a uma única volta, em que por cada circunscrição é eleito o candidato que se limitar a obter mais votos, independentemente de quantos eles sejam, as sondagens mais recentes apontam para um empate técnico entre os dois partidos que no último século mais preponderância tiveram na cena política britânica: os conservadores do primeiro-ministro David Cameron e os trabalhistas de Ed Miliband. O clássico terceiro partido – “partido charneira” que na legislatura cessante garantiu a maioria parlamentar a Cameron – os liberais-democratas de Nick Clegg parecem afastados da possibilidade de manterem esse estatuto, o qual poderá vir a ser ocupado pelo UKIP de Nigel Farage ou, mesmo, pelos independentistas escoceses. Garantida parece estar a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de conservadores ou trabalhistas lograrem uma maioria absoluta que lhes permita governar isoladamente. E é – ou será – justamente no plano das eventuais coligações pós-eleitorais que se poderá vir a jogar muito da postura britânica face à União Europeia nos próximos tempos. Cameron, necessitando de fazer alguma aliança eleitoral, não deixará de olhar ou para os seus atuais parceiros liberais-democratas ou para os nacionalistas de Farage, que venceram as últimas eleições para o Parlamento Europeu. Miliband, colocado na mesma situação poderá ver-se na contingência de ter de escolher entre os mesmos liberais-democratas ou os independentistas escoceses. Destas possíveis diferentes combinações político-partidárias é inegável que a aliança entre conservadores e nacionalistas seria a que mais e maiores mudanças poderia provocar no posicionamento europeu do Reino Unido. Cameron, que prometeu para 2017 a realização de um referendo sobre a permanência do Reino na União Europeia, não deixaria de ver reforçada a componente eurocética do seu partido e dificilmente resistiria a um endurecimento dessa mesma posição; em termos estritamente políticos, seria mais uma adversidade com que a Europa da União iria acabar por ter de se defrontar. Seria, objectivamente, um retrocesso para qualquer sonho ou réstia de esperança num projeto de afirmação política da Europa da União – projeto que dificilmente se fará sem o Reino Unido e ainda mais dificilmente se fará contra o Reino Unido.
E, a assim acontecer, não deixará de ser mais um revés para este projeto europeu em decadência. Revés porquanto, face aos desenvolvimentos políticos conhecidos quer na Alemanha quer em França, poucas terão sido as vezes, nos últimos sessenta ou setenta anos, em que confluíram tantas e tão vantajosas condições para que Londres possa, efetivamente, assumir na Europa da União o papel liderante que sempre se eximiu a desempenhar. E que, curiosamente, talvez mais nenhum Estado esteja em melhores condições de desempenhar. Se esta Europa da União se quer renovar e ambiciona desempenhar uma missão no mundo, começar por renovar os seus centros de poder será conditio sine qua non. E nesse contexto, pela sua posição estratégica, pela sua ancestral vocação marítima, pelos laços privilegiados que mantém com o aliado norte-americano, o envolvimento do Reino Unido afigura-se como determinante e fundamental.
A Europa nova que se impõe construir ou reerguer, a partir dos restos desta União em decadência, não pode nem deve prescindir da colaboração britânica porque não pode nem deve reerguer-se a partir do papel das suas potências clássicas. Por muito que isto não esteja na mente e no espírito dos súbditos de Sua Majestade quando, na próxima quinta-feira exercerem o seu direito de voto, também será isto que estará em causa.

A nova Igreja do silêncio

Logo no início do seu pontificado, escassos dias após assumir a cadeira de Pe­dro, quando visitava Assis, a cidade de S. Francisco, um dos Santos patro­nos de Itália, al­guém supli­cou a São João Paulo II, pon­tífice recém-eleito, que não esquecesse a Igreja do Silêncio, referindo-se à cristandade que era oprimida no exercício dos seus direitos fundamentais, para lá da cortina de ferro. A resposta veio pronta por parte do Bispo de Roma: “já não é a Igreja do Silêncio porque fala através da minha voz”; estava dado o mote que, mais do que tranquilizar quem inter­pelava o novo Papa, vol­veu–se numa constante referência do seu pontificado.
Vale a pena recordar este episódio singelo, vivido nos finais dos anos setenta do século passado, já lá vão quase quarenta anos, para percebermos o drama e o desafio com que se defronta, atualmente, o Papa Francisco – também ele confrontado com a emergência de uma nova “Igreja do Silêncio” que começa a nascer fruto do reordenamento geopolítico que ganha forma na região do Oriente Médio e se estende pelo norte do continente africano, tendo destruído as tradicionais formas de organização política que enquadravam as sociedades locais, dando lugar ao completo vazio de qualquer poder político estabilizado e propiciando o surgimento de fenómenos novos de dominação e imposição da barbárie, do terror e do caos. São estes fenómenos novos, e até agora praticamente desconhecidos em tão grande amplitude territorial, que têm evidenciado as mais bárbaras, trágicas e selváticas práticas de dominação e submissão misturando crenças religiosas, rivalidades étnicas e brutais doses de terror institucionalizado. De entre as vítimas privilegiadas destes novos poderes emergentes têm-se contado várias comunidades cristãs que têm sofrido na pele os horrores dos massacres que são divulgados como infames instrumentos de propaganda e de divulgação.
Constituem a nova “Igreja do Silêncio”, cuja condição e sofrimento tem sido continuadamente denunciado pelo Papa Francisco – que não se tem cansado de pedir as orações dos cristãos, de todos os credos e confissões, por aqueles que, nos nossos dias, constituem os novos mártires deste novo século. Execuções sumárias, fuzilamentos, decapitações, emulações – de tudo um pouco tem havido notícia. E perante estas novas manifestações da barbárie, tem sido a palavra do Pontífice a que mais se tem escutado na denúncia desta tragédia que ocorre a poucas centenas de quilómetros da velha Europa que, quando interpelada a pronunciar-se, pouco mais faz, ou pode fazer, do que condenar a violência emergente e reconhecer a sua falta de meios para poder ter uma intervenção mais ativa. Resta-nos, por isso, a esperança que, uma vez mais a palavra possa demonstrar a sua força e impor-se à própria realidade. Um pouco à semelhança do que aconteceu no final do século passado, com a contribuição dada por São João Paulo II para a queda dos poderes erráticos que se acobertavam para lá do Muro da vergonha que dividia a própria Europa e também silenciava as vozes contrárias e que se lhes opunham, acantonando-as nos vários Gulags que a História não deixou de registar para memória futura.
Decerto – ajudaria bastante, e não deixaria de diminuir o tempo e a duração do sofrimento de muitos que padecem e sofrem a errância dos poderes emergentes, que a palavra pontifícia pudesse ser acompanhada de ações concretas desenvolvidas pela comunidade internacional através das suas organizações de referência. Neste contexto, é sempre para a Organização das Nações Unidas, e para as suas diversas agências especializadas, que se viram os primeiros olhares e que se lançam as primeiras esperanças. Infelizmente, por regra, têm sido esperanças em vão. O que, no limite, nos poderá levar a equacionar uma outra realidade: a da falta de adequação entre o mundo dos nossos dias e a organização global que é suposto representar e simbolizar a própria comunidade internacional. A desadequação compreende-se e percebe-se: as Nações Unidas são, ainda hoje, a organização sobrante dum mundo que já não existe, de um mundo que saiu da segunda guerra mundial, mas que já tem pouco ou nada a ver com o mundo dos nossos dias, com o mundo em que vivemos. O mundo evoluiu, a comunidade internacional transformou-se, a relação de forças nele existente foi profundamente alterada – mas a sua organização de referência global permaneceu, imune a qualquer transformação, imóvel e imutável. E por isso o Conselho de Segurança continua a ser a sua sede privilegiada do poder; mas o Conselho Económico e Social permanece por institucionalizar e o Conselho das Religiões não passa de um anseio, num mundo onde o papel e o diálogo entre as diferentes religiões e as diferentes Igrejas se afigura, a cada dia que passa, uma necessidade cada vez mais premente.
No entretanto, é a palavra do Bispo de Roma que vamos escutando na denúncia das atrocidades que vão sendo sofridas por todos aqueles que constituem esta nova “Igreja do Silêncio” e por ela se vão sacrificando não raro à custa da própria vida – aguardando, pacientemente, que os detentores do verdadeiro poder político, legítimo e legitimado, se lembrem das responsabilidades que lhes incumbem na contribuição para o (re)estabelecimento de uma ordem internacional digna desse mesmo nome.

O genocídio arménio, questão de “autenticidade”

1. E de repente a comunidade internacional foi agitada nas últimas quarenta e oito horas com a origem mais improvável que imaginar se poderia – o Vaticano, a Basílica de São Pedro, uma homilia do Papa Francisco. Em Eucaristia proferida em celebração destinada a evocar a vida do místico arménio do século X, São Gregório de Narek, que foi declarado doutor da Igreja Católica, e na presença do Presidente da República da Arménia, Serzh Sargsyan, elencando as grandes tragédias do recém-acabado século XX, Francisco referiu-se à primeira das três tragédias que abalaram esse século: o assassinato das centenas de milhar de arménios, maioritariamente cristãos, às mãos do Império Otomano. Assassinato que terá atingido cerca de milhão e meio de arménios e pelo qual a generalidade dos historiadores não hesita em responsabilizar os turcos que integravam aquela entidade política imperial. Os factos passaram-se no decorrer da primeira guerra mundial, pelos anos de 1915-1917, e revelaram, inquestionavelmente, um desejo incontido de eliminar ou banir um povo inteiro, uma população inteira. Numa palavra – um genocídio. Com mais rigor e precisão, o primeiro genocídio do século XX. Foi isto que Francisco verbalizou e, implicitamente, denunciou, antes de enumerar os restantes genocídios registados naquele século e que ocorreram no Camboja, no Rwanda, no Burundi e na Bósnia-Herzgovina. Sem esquecer, obviamente, os crimes contra a humanidade perpetrados pelos regimes nazi e estalinista.
Era expectável que o regime turco, em clara rota de afastamento dos valores ocidentais, e da própria União Europeia, reagisse às declarações de Sua Santidade. E a reação não se fez esperar – escassas horas após a referida homilia papal, o Embaixador do Vaticano na Turquia foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Ancara e foi-lhe transmitido que o Governo turco “lamentava profundamente” o que acontecera e ficara “desapontado” com as palavras do Papa, que foi acusado de ter criado um “problema de confiança” entre a Turquia e o Vaticano. E o Embaixador turco na Santa Sé, chamado de imediato a Ancara. Não é provável que regresse nos tempos mais próximos.
Esta não foi, todavia, a primeira vez que a Igreja de Roma assumiu os factos ocorridos como um verdadeiro “genocídio”. Nos idos de 2001, num documento que se manteve confidencial, São João Paulo II utilizou as mesmas palavras e idêntica qualificação do martírio imposto aos cristãos arménios. Francisco, porém, foi mais longe – e numa postura de autenticidade relembrou publicamente e pela sua própria voz, o primeiro genocídio do século XX porque, disse, é preciso fazer estes exercícios de memória para se conseguir erradicar o mal das nossas sociedades. Limitou-se, Sua Santidade, nesta matéria, a seguir os ensinamentos do Papa-mineiro e a reconhecer publicamente o que a generalidade dos historiadores e investigadores não turcos e países como a Argentina, a Bélgica, o Canadá, a França, a Itália, a Rússia e o Uruguai já reconheceram há muito. Do outro lado da barricada, do lado do politicamente correto, aliados políticos da Turquia – com os EUA à cabeça – ainda não ousaram dar esse passo no sentido da autenticidade na política internacional. Portugal, como seria mais ou menos óbvio, continua a contar-se neste segundo grupo. De espantar seria o contrário.
2. De vez em quando a política internacional traz-nos algumas notícias positivas. Desta feita, contrariando o adágio segundo o qual “de Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”, chegou uma boa carta. Uma carta que trazia boas notícias. Não chegou a Portugal mas chegou a Nova Iorque, aos competentes serviços da ONU. Dizia a missiva que o governo de Madrid retirava as objeções que havia formulado em 2013, num diferendo que remontava a 2009, quando Portugal apresentou a proposta de extensão da sua plataforma continental das 200 para as 350 milhas, permitindo o alargamento da Zona Económica Exclusiva portuguesa. Entendia o governo de Madrid que as Selvagens não eram verdadeiras ilhas mas rochedos, pelo que não se lhes deviam aplicar as regras relativas à contagem daquela plataforma. Com esta atitude, fica ultrapassado o principal obstáculo ao reconhecimento da pretensão portuguesa por parte das Nações Unidas que, a verificar-se, permitirá a Portugal usufruir da maior plataforma continental europeia e uma das maiores do mundo.
Perguntar-se-á: o que terá levado o governo de Madrid a recuar na sua posição de oposição inicial à pretensão portuguesa? Nada ainda foi revelado a esse respeito a não ser o conhecimento de que a mudança de posição espanhola se seguiu ao facto de, há cerca de duas semanas, Portugal ter informado a mesma ONU de que não formulava quaisquer objeções a que a plataforma continental espanhola fosse alargada para oeste das Ilhas Canárias, conforme pretende o governo de Rajoy.
Realpolitik oblige….

Je suis Charlie

A Europa, na pátria europeia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, que ousou rebelar-se contra o monarca absoluto em nome de princípios que, mais tarde, a República viria a consagrar sob a trilogia “liberdade – igualdade – fraternidade”, voltou a ter de se deparar com a barbárie e o terror do terrorismo profissional, altamente treinado e preparado, que se serve e recorre ao pretexto de Deus para causar a morte, a destruição e a barbárie. Foi a oportunidade para recordarmos Madrid (Atocha) em 2004 e Londres em 2005. Para já não falarmos em Nova Iorque em 2001.
Desta feita a trincheira do combate foi um rico e central bairro parisiense e as vítimas inocentes jornalistas que nunca usaram outra arma que não as suas canetas e pincéis para expressarem o seu pensamento. Foi quanto bastou para perderem as suas vidas.
Já tive oportunidade de afirmar que este exemplo da barbárie coloca à Europa cinco dilemas e um problema. Os dilemas serão não permitir que se confunda o islamismo com o terrorismo; não permitir que germine a islamofobia; saber resistir e não ceder à chantagem do medo; saber conciliar os valores da liberdade com as exigências da segurança; saber integrar e conviver com “o outro”, o que não lhe é igual.
Mas para além destes dilemas, existe igualmente, um não pequeno problema com que a Europa terá de se debater: haverá hoje líderes e lideranças na Europa da União à altura dos dilemas que se lhe colocam?
Assistindo aos primeiros desenvolvimentos tomados a propósito da mega manifestação de Paris, assaltam-nos as maiores dúvidas sobre a forma como a União se propõe combater estas novas manifestações de terrorismo internacional.
Em primeiro lugar, o timing. Não é, nem agora nem nunca, recomendável quaisquer alterações legislativas efectuadas sob o condicionamento emocional que os acontecimentos de Paris provocaram. É cedo, é precoce, é prematuro e é precipitado.
Depois, o conteúdo. As notícias que nos chegam dão conta que o núcleo duro dos Ministros do Interior da União Europeia (da qual a senhora Ministra da Administração Interna portuguesa se excluiu por, à mesma hora que os seus colegas europeus se reuniam em Paris para debater como melhor combater as novas formas de terrorismo internacional, ter optado por assistir à cerimónia de tomada de posse dos novos órgãos sociais da Liga dos Bombeiros Portugueses; opções e prioridades…..) optará por sugerir alterações aos Acordos de Schengen como prioridade no combate ao terrorismo. Também aqui se nos afigura que as prioridades poderão estar invertidas. Já houve, seguramente, quem reparasse que, com Schengen ou sem Schengen, a tragédia de Paris teria sempre acontecido. E teria acontecido porquanto os seus autores foram cidadãos franceses, relativamente aos quais os Acordos de Schengen pouco ou nada interferiram. Já, pelo contrário, introduzir restrições a uma das liberdades fundamentais em que assenta o projeto europeu – a liberdade de circulação de pessoas – significa uma regressão e um revés nesse mesmo projeto que o podem afetar de forma definitiva.
Significa isto que, do nosso ponto de vista, apenas uma cooperação muito estreita e muito intensa entre os Estados europeus poderá evitar novas tragédias deste calibre, tal o grau de profissionalismo e preparação que os novos inimigos da nossa civilização e da nossa forma de viver lograram alcançar. Sobretudo porque, nos dias que passam, os criminosos são cidadãos das sociedades que atacam e já não os estrangeiros que vêm de fora e regressam a casa depois do “serviço” feito. Como também já tive oportunidade de afirmar e escrever algures, trata-se de um combate desigual, de um novo tipo de guerra, em que os contendores têm de usar armas desiguais e as vítimas se vêem na contingência de não poderem responder de igual para igual para não descerem ao nível da barbárie dos seus algozes. Faz lembrar um jogo de xadrez em que quem joga com as peças brancas é sempre o mesmo jogador o qual, para além dessa vantagem, não tem de respeitar as regras do jogo. Num combate tão desigual, é fácil antecipar para que lado penderão os pratos da balança. Essa tendência apenas se evitará, repetimos, com o reforço da integração e da cooperação policial, de serviços de segurança e de troca de informações. Não se alcançará, seguramente, por via da regressão e da limitação de liberdades já consagradas.
Hoje por hoje, todavia, quando um ruidoso grito “Je suis Charlie” une e irmana a generalidade dos Europeus em torno da condenação da barbárie terrorista, é preciso reconhecer que é um apelo implícito aos valores europeus que lhe está subjacente. E, sobretudo e a todo o custo, evitar cometer (mais) erros que possam ser politicamente aproveitados em benefício dos diferentes extremismos que não deixarão nem perderão ensejo de lançar mais algumas sementes de desesperança nesta Europa já tão causticada e tão sofrida.

O Papa e a Europa

Na passada semana, na última terça-feira, Sua Santidade o Papa Francisco agendou uma visita às instituições europeias (União Europeia e Conselho da Europa) e, nos dias seguintes, à Turquia. Ambos os acontecimentos mereceriam uma análise individualizada. Vamo-nos ficar, neste texto, apenas pelo primeiro dos acontecimentos mencionados.
Em Estrasburgo, ante os eurodeputados, o Santo Padre regressou a um púlpito onde, há 26 anos, o Papa-mineiro, São João Paulo II, teve oportunidade de meditar e refletir sobre um mundo que se encontrava em acelerado estado de transformação, dada a proximidade do ruir do Muro de Berlim, o desmoronamento do império soviético e todas as transformações que ambos os acontecimentos trouxeram para a Europa e para o Mundo. Já aí, já então, o sucessor de Pedro fez um claro chamamento da Europa aos seus valores, apelou aos princípios que inspiraram os pais fundadores, levantou a sua voz contra o que já se anunciava: o triunfo do ter sobre o ser, numa sociedade cada vez mais materialista, cada vez menos solidária, cada vez mais tributária dum capitalismo sem rosto que, lenta mas inexoravelmente, já ia impondo as suas regras, traçando o seu desígnio, afirmando a sua desumanidade.
Um quarto de século depois, no mesmo lugar e perante idêntica plateia, o Papa Francisco, o Pontífice que a Providência foi buscar “lá longe, aos confins do Mundo”, seguiu a linha de raciocínio do seu predecessor – e exortou uma Europa “envelhecida”, que não se eximiu a comparar a uma “avó” cansada, a não restringir as suas preocupações às questões económicas e financeiras. Curiosamente, foi um Papa vindo da América Latina que veio interpelar o “velho continente” a (voltar a) ser uma “referência para a humanidade”, um farol de esperança para o Mundo.
E, numa altura em que as questões da imigração ganham acrescido peso político, erigindo-se em pretexto público para David Cameron acenar com a saída do Reino Unido da União, foi justamente o exemplo dado por Sua Santidade para ilustrar o seu discurso, instando e convidando os dirigentes europeus a valorizarem a dignidade dos idosos, dos trabalhadores, dos pobres, das minorias perseguidas e sobretudo dos imigrantes, nomeadamente daqueles que, quase todas as semanas, demandam a ilha italiana de Lampedusa, oriundos do norte de África. “Não se pode tolerar que o mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério” – proclamou – porque “chegou o momento de abandonar a ideia de uma Europa assustada e curvada sobre si própria”; e sintetizou o seu pensamento com esta afirmação lapidar: “chegou a hora de construir juntos a Europa que gira, não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana”.
Curiosamente, viria do socialista alemão e Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, a principal defesa da deslocação do Sumo Pontífice ao europarlamento – confrontado com as críticas extremistas de que tal deslocação punha em causa os princípios de laicidade da Assembleia e da própria União Europeia, Schulz sustentaria que a visita do Papa não foi “um ataque contra a laicidade”, mas sim uma tentativa “de retirar a Europa do seu torpor”.
Ora, no caso concreto, é justamente isto que interessa reter – a tentativa de retirar a Europa do seu torpor. A que, acrescentaria, se soma a necessidade de essa mesma Europa se reencontrar com os seus valores, os seus princípios e a sua matriz fundadora, que o mesmo é dizer retornar aos ideais, à palavra e ao pensamento dos seus pais fundadores.
Decerto – a situação atual da Europa tem muito pouco ou quase nada a ver com aquele cenário de guerra, de destruição e de devastação que inspirou os pais fundadores, guiou os projetistas da paz e permitiu que se erguesse o projeto comunitário europeu. Mas, assumida a divergência e levadas em consideração as devidas diferenças, talvez no fundo cheguemos à conclusão que os problemas que estão em cima da mesa são os mesmos ou muito parecidos, os desafios semelhantes ou muito idênticos: é da garantia da paz que se cuida, é da dignidade humana que se trata, é da justa repartição do rendimento que urge.