Matteo Renzi, a voz que emerge na Europa

Quando, no passado dia 1, a Itália assumiu a presidência rotativa e turno do Conselho da União Europeia, era grande a expectativa que se erigia em torno do seu novo Pri­meiro-Ministro, o democrata (socialista) Matteo Renzi, o mais novo Primeiro-Ministro Itali­ano de sempre que, cansado de governar apenas a sua cidade de Florença, se abalan­çou a conquistar a liderança do Partido Democrático e, consequentemente, apear o também democrata Enrico Letta da chefia do governo de Roma.
Face à inexperiência em matéria de política europeia do chefe do governo romano, os re­ceios eram muitos, as dúvidas não eram menores e, portanto, a expectativa dir-se-ia imensa. Expectativa que, apenas uns quantos – poucos – acreditavam que se poderia vol­ver em oportunidade. Ademais, Renzi, talvez um tanto ou quanto injustamente, aca­bava por sofrer da “síndrome Hollande”: talvez o socialista europeu que mais esperan­ças concitou nos últimos anos mas cuja errância e descalabro na condução da polí­tica (interna e externa) francesa o arrastou para as ruas da amargura, a ele e ao seu partido, como os eleitores fizeram questão de afirmar, sem dó nem piedade, nas últi­mas eleições autárquicas e, sobretudo, nas últimas eleições para o Parlamento Euro­peu. Face a Renzi, as expectativas não ousaram subir tão alto como subiram com Hol­lande. A prudência, quase sempre, é boa conselheira, e um erro cometido duas ve­zes não poderia continuar a ser qualificado como um simples erro. E por isso, a come­çar nos próprios socialistas europeus, Renzi foi olhado com reserva, com uma certa espe­rança secreta mas quase nunca verbalizada.
O certo é que bastaram dois discursos para tudo mudar, para a força da palavra se im­por e o novo Primeiro-Ministro italiano ir buscar créditos onde menos se esperava e conse­guir gerar um sentimento generalizado de, no mínimo, elevadas e positivas expectati­vas.
Os dois discursos em causa aconteceram, primeiro, em Roma, ante o Parlamento itali­ano quando Renzi apresentou as grandes linhas gerais a que pensava submeter o seu man­dato semestral à frente do Conselho da União Europeia; e, depois, em Estras­burgo, ante o plenário do Parlamento Europeu, quando os novos eurodeputados recente­mente eleitos iniciaram a nova legislatura europeia discutindo as prioridades da nova presidência do Conselho. Ambos os discursos foram complementares e constituí­ram uma lufada de ar fresco no cinzentismo eurocrático que têm vindo a pai­rar sobre o céu europeu.
Desde logo e em primeiro lugar, Renzi ousou assumir o que nas mais recentes décadas mui­tos líderes europeus pareceram ter esquecido – “o grande desafio do semestre será não apenas agendar medidas e encontros, mas reencontrar a alma da Europa e o sen­tido de estarmos juntos. […] Há uma identidade a reencontrar.” De forma clara, explí­cita e assumida, há aqui um verdadeiro apelo a um regresso aos valores, aos princí­pios, a tudo o que determinou e esteve na origem fundacional do atual projecto euro­peu. A União Europeia não se pode reduzir a um redil despersonalizado de núme­ros, estatísticas e burocracias. Tem de ir mais longe e conquistar a alma dos europeus. Res­peitando a sua diversidade mas identificando a sua identidade. É um discurso novo que se escuta, com a particularidade de coincidir com o momento em que, tudo indica, Jean-Claude Juncker – o democrata-cristão sobrante da era de Kohl e Mitterrand, que al­guns consideram como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus pela sua sensi­bilidade à dimensão social da ideia europeia – acederá à presidência da Comissão Eu­ropeia.
Mas Renzi foi mais longe e disse mais. Sem estender a mão, apontou o dedo a Berlim e a Haia – a Merkel mas também ao seu correligionário socialista Jeroen Dijsselbloem, Presi­dente do Eurogrupo, os arautos e os rostos mais visíveis das políticas austeritárias e ortodoxas europeias de reacção à crise – para assumir que “sem crescimento a Eu­ropa morre”. E que crescimento económico não tem de significar falta de rigor orçamen­tal. Curiosamente – ou talvez não – foi da liderança parlamentar do PPE que se ouviram as principais críticas ao modelo de desenvolvimento apresentado por Renzi. O alemão Manfred Weber, novo líder da bancada do PPE (mas que, como qual­quer eurodeputado alemão, antes de ser de qualquer partido é…. alemão), criticou forte­mente Renzi, a propósito da “flexibilidade” orçamental. Foi a oportunidade para recor­dar que a Alemanha conseguiu transformar-se na potência económica que é hoje, pre­cisamente à custa da violação das regras previstas no Pacto de Estabilidade e Cresci­mento, tendo sido objecto de processo de incumprimento por défice excessivo que a anterior Comissão Europeia resolveu arquivar. Ou seja, foi com base na violação das regras orçamentais da União, que a Alemanha se guindou à posição de supremacia eco­nómica de que hoje beneficia. E Renzi relembrou-o e recordou-o. O que não é fre­quente no Parlamento Europeu.
Em suma, os tempos próximos merecem que se dedique uma atenção cuidada à presta­ção do novo Primeiro-Ministro italiano. Matteo Renzi pode vir a ser aquela voz que faltava aos socialistas europeus (que o francês Hollande defraudou e o alemão Schulz nunca conseguiu ser) para credibilizar a sua visão europeia e o seu próprio pro­jeto europeu. Se assim for, serão boas notícias para o futuro próximo da União Euro­peia.

Jean-Claude Juncker

Finalmente o Conselho Europeu da passada sexta-feira, com a expressa oposição dos Primeiros-Ministros do Reino Unido e da Hungria – David Cameron e Viktor Orban – designou um candidato à presidência da Comissão Europeia. A escolha, óbvia a partir do momento em que Merkel deu sinais de recuar nas suas objecções, recaiu em Jean-Claude Juncker, o candidato que o Partido Popular Europeu apresentou às últimas eleições para o Parlamento Europeu. Agora resta ao incumbente congregar os necessários 376 votos necessários da Assembleia europeia. Uma Assembleia onde o Partido Popular Europeu dispõe de 221 deputados, o Partido Socialista Europeu de 191, os Conservadores e Reformistas Europeus de 70 e os Liberais de 67 deputados. Haverá, assim e por definição, de assistir a uma negociação que, tudo indica, acabará por assentar nos dois principais grupos políticos europeus – democratas-cristãos e socialistas europeus.
Ministro das finanças do pequeno Grão-Ducado do Luxemburgo desde 1989, cargo que acumulou desde 1995 e até ao fim de 2013 com o de Primeiro-Ministro do principado; oito anos Presidente do Eurogrupo e várias vezes Presidente de turno do Conselho Europeu, dispõe de uma experiência e de um conhecimento tanto da máquina administrativa e burocrática da UE como das questões europeias como poucos; não por acaso é visto como o rosto sobrante dos últimos estadistas europeus, beneficiando da experiência e do convívio com a geração que o precede – a geração de Mitterrand, de Delors ou de Helmut Kohl. com a presidência do Eurogrupo (os ministros das finanças do euro). Não por acaso é igualmente tido como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus, sobretudo pelas críticas tecidas à deriva liberalizante da economia europeia como, sobretudo, pela sua persistente atenção e sensibilidade para as causas sociais e a dimensão social do próprio projeto europeu.
Numa altura em que ainda é prematuro fazer um balanço dos dez anos de Durão Barroso à frente do executivo comunitário, uma certeza se poderá ter quase por adquirida – uma “Comissão Juncker” será, seguramente, muito distinta de qualquer uma das Comissões lideradas por Durão Barroso. Daí, de resto, os bem disfarçados receios de Angela Merkel e os muito mal disfarçados receios de David Cameron relativamente à indigitação de Jean-Claude Juncker. Olhando para o seu percurso e para a sua linha de atuação em matéria europeia, ninguém duvidará – ou poucos ousarão duvidar – que Jean-Claude Juncker irá apostar fortemente na revalorização do papel da Comissão Europeia, na sua recolocação no centro do processo europeu de decisão, na recuperação de uma parte significativa do protagonismo e da influência que a Comissão Europeia já teve e que, nos últimos anos, perdeu claramente em benefício do Conselho Europeu. Dir-se-á, dirão alguns e Cameron enfatizou o facto, que se trata de um programa de cariz federal. Será, seguramente, um programa não intergovernamental que poderá aprofundar a integração política da União – todo o contrário dum rumo e dum caminho percorridos ao longo dos últimos anos.
Erroneamente têm, alguns, dedicado parte significativa do seu tempo a realizarem uma espécie de contabilidade, de “deve” e “haver”, sobre o que pode Portugal ganhar ou perder com uma possível liderança de Jean-Claude Juncker à frente da Comissão Europeia. É matéria em que não entramos por demasiado despropositada. Nem é tarefa dum Presidente da Comissão Europeia beneficiar particularmente algum dos Estados-Membros da União – e temos aí o exemplo de Durão Barroso a atestar e comprovar o que afirmamos – como, mais importante do que isso, será sua missão e tarefa evitar que prossiga e continue uma marcha que parece irreversível no caminho do diretório das grandes potências, reequilibrando os poderes no quadro da União e restabelecendo a normalidade prevista e consagrada nos tratados mas que a prática recente tem pervertido quase em absoluto.
Oriundo dum pequeno Estado-membro da União, dum verdadeiro micro-Estado mas que foi um Estado fundador do projeto europeu, com a experiência que possui dos assuntos europeus, do funcionamento da eurocracia e o conhecimento adquirido dos principais dossiers em discussão, a presidência de Jean-Claude Juncker tem, à partida, todas as condições para alcançar o que dela se espera: recolocar a Comissão Europeia no centro do processo europeu de decisão, diminuir a deriva intergovernamental promovida pela Alemanha após a assinatura do Tratado de Lisboa, reduzir a caminho para o diretório, completar a união económica e monetária e contribuir para o aprofundamento político da União. Se conseguir cumprir esta agenda, sem esquecer a necessária dimensão social europeia, terá reunidas as condições para uma liderança de sucesso do próximo executivo comunitário. É o mínimo que se lhe pode exigir e o máximo que poderá fazer pelo renascimento do projeto europeu.

A próxima Comissão Europeia

A questão da futura composição da Comissão Europeia também foi objeto de discussão no último debate quinzenal na Assembleia da República com o Primeiro-Ministro. António José Seguro, também ele entrincheirado entre a guerra interna em que se acha envolvido e a oposição que lhe incumbe fazer ao Governo, suscitou o problema e veio defender – como António Costa já o fizera há duas semanas – que o próximo Comissário Europeu deveria ser “negociado” entre o governo e o maior partido da oposição, sugerindo implicitamente que deveria caber a este indicar alguém para o cargo. O argumento aduzido foi simples – em Portugal foi o Partido Socialista que ganhou as últimas eleições europeias. Com base nesse pressuposto, Seguro entende que deve caber ao PS nomear o português que integre o próximo colégio de comissários. A argumentação parece colher. Acontece que, como em muita coisa na vida, nem sempre o que parece, é. Dito de outra forma – se o argumento de Seguro e Costa parece colher, pelo menos no plano lógico, impõe-se saber onde levaria a sua aplicação se o mesmo fosse coerentemente aplicado. Olhando para o mapa dos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu, acolher a tese de Seguro em matéria de composição da próxima Comissão Europeia, isso significaria, por exemplo, que o comissário francês teria de ser oriundo da Frente Nacional e nomeado pela Sra Marine Le Pen e que o Comissário britânico teria de ser originário do UKIP e nomeado pelo Sr Nigel Farage…. Tanto em França como no Reino Unido, foram a FN e o UKIP que venceram as eleições para o Parlamento Europeu. Aceitar como bom o argumento de Seguro de que o próximo comissário europeu português deverá ser indicado pelo Partido Socialista porque foi o PS a vencer as eleições para o Parlamento Europeu significará, inelutavelmente, defender a abertura da próxima Comissão Europeia à extrema-direita europeia. É o que resulta, inelutavelmente, do critério apresentado por Seguro. Prestando-lhe a justiça de pensar que não é isso que o líder do Partido Socialista pensa, defende ou deseja, talvez não possa deixar de se considerar o quão aligeiradamente e displicentemente continuam a ser tratados os assuntos e as matérias de política europeia entre nós, mesmo por quem tem ou teria o dever e a obrigação de lhe dedicar mais atenção e mais estudo. E, sobretudo, de avaliar em toda a sua extensão as consequências das propostas que são apresentadas.
Quando parece adquirido que a próxima Cimeira do Conselho Europeu conseguirá encontrar base consensual necessária para indicar o luxemburguês Jean-Claude Juncker para Presidente da Comissão Europeia – mau grado as reticências que continuam a ser levantadas em Londres por David Cameron, entalado entre uma oposição trabalhista tradicionalmente pró-europeia e os seus próprios aliados liberais também marcadamente pró-europeus e uma opinião pública cada vez mais adversa à continuidade britânica na Europa da União, a última das quais, diz-se, poderá vir a ser a proposta no sentido de a indicação a efetuar pelo Conselho Europeu seja precedida de uma votação formal por voto secreto – o debate seguinte que irá estar em cima da mesa europeia prender-se-á quer com a nomeação do futuro Presidente do Conselho Europeu, substituto de Herman van Rompuy, quer com a composição da própria Comissão Europeia. Ambos os temas foram objeto de debate no nosso panorama político interno na semana que terminou.
Aproveitando uma conferência do Partido Popular Europeu no Algarve, foi deixada passar a informação que Pedro Passos Coelho teria lançado o nome de Durão Barroso na corrida à sucessão de Rompuy. Percebe-se a lógica política do alvitre, admite-se, até que o mesmo pudesse concitar um ou outro apoio pontual, não se exclui que a própria Alemanha de Merkel não colocasse especiais dificuldades à nomeação de quem, enquanto Presidente da Comissão, nunca se lhe opôs nem ousou enfrentar os seus principais desígnios. Acontece que, cedo embora para já se fazer um balanço sério da sua liderança à frente do executivo comunitário durante dez anos e dois mandatos, Durão Barroso não consegue sair incólume, no seu prestígio, na sua força política, da sua passagem pela liderança do executivo comunitário. A mais grave crise que a União Europeia conheceu na sua história, e da qual se está a recompor a uma velocidade exasperantemente lenta, atingiu em cheio e marcou de forma indelével o seu mandato. A secundarização a que se submeteu ou deixou que o submetessem – a ele e à Comissão Europeia – em benefício do Conselho Europeu (rectius: dos Estados-membros da União Europeia) ficará para sempre colada à imagem dos seus mandatos. Em termos muito objetivos e pragmáticos, não parece capaz de reunir o favor dos Estados-Membros e concitar o voto favorável do Conselho Europeu. Decerto: não nos esquecemos que, aquando da sua escolha para Presidente da Comissão Europeia, há dez anos, Barroso foi a enésima escolha efetuada e apenas aquele que conseguiu assegurar e ser o menor denominador comum entre a multiplicidade de interesses cruzados em presença no Conselho Europeu. Não parece, contudo, que a situação presente seja comparável há de dez anos e a escolha possa vir a repetir-se. Não tardará a saber-se o veredicto final dos chefes de Estado e de governo dos vinte e oito.

O Papa Francisco

Na semana transata o bispo de Roma, sucessor de Pedro – buscado lá nos confins do Mundo, como o próprio salientou aquando da sua eleição – surpreendeu o Mundo com uma absolutamente extraordinária entrevista a um canal de televisão português. Prá­tica totalmente incomum, ademais se se considerar que perante si não tinha as câma­ras de um daqueles canais televisivos de dimensão global, capazes de fazerem che­gar instantaneamente as suas mensagens e os seus exclusivos aos quatro cantos do globo, antes um canal português, um jornalista português, o que contribuiria para dar à entrevista, seguramente, uma projeção mediata. Não obstante, o mundo teve oportuni­dade de presenciar um daqueles momentos raros, que perdurarão na memó­ria de quantos tiveram (ou ainda vão ter) oportunidade de observar a mensagem que o Papa Francisco nos quis transmitir.
O pretexto para a conversa mantida com Henrique Cymerman foi a organização, tam­bém ela totalmente original e surpreendente, de um momento de oração, na casa do Pontí­fice em Roma, entre os Presidentes de Israel, Shimon Peres, e da Autoridade Palestini­ana, Mahmoud Abbas, convidados para orarem às respetivas divindades, em simultâneo (que não necessariamente em conjunto), pela paz nesse oriente médio que continua a ser das mais atribuladas regiões deste nosso pobre planeta. Também a inici­ativa foi inédita e não fora a teimosa ortodoxia do Primeiro-Ministro de Israel, Benja­min Netanyahu, poderia vir a ter muito mais do que o caráter simbólico de que efeti­vamente se revestiu.
Voltemos, todavia, à entrevista. Nela, o Pontífice assumiu-se como o Homem que os sem­pre imperscrutáveis caminhos da Providência colocaram à frente dos destinos da Igreja Católica mas que é perfeitamente ciente das suas limitações humanas, do circunstan­cialismo do mundo que o rodeia, do próprio relativismo que vai fazendo o seu caminho e – principalmente – foram mais as dúvidas e as reticências que nos dei­xou do que as afirmações herméticas ou dogmáticas que produziu. Sem se furtar a qual­quer tema, soube ter a sapientia de exprimir dúvidas perante questões controverti­das. Os secessionismos que parecem grassar na Europa foram um desses te­mas. Interrogado sobre a questão catalã, acrescentou-lhe de motu proprio a questão es­cocesa e alguns movimentos secessionistas italianos. Teorizou sobre o direito à emancipa­ção dos povos distinguindo com clareza entre os anseios que se fundam num di­reito histórico e as ambições motivadas por puros desígnios de conveniência política. E terminou com duas conclusões que seria bom os governantes de turno levarem em conta quando a questão lhes for colocada: em primeiro lugar, que se trata de assunto que deve ser “tratado com pinças” (sic), relativamente ao qual todo o cuidado será pouco; em segundo lugar e principalmente, que cada caso é um caso pelo que não se pode­rão construir elaboradas teorizações que desconheçam e ignorem o circunstancia­lismo e as condições concretas de cada situação. Em breve, muito em breve, este nosso velho e desregulado continente será colocado perante desafios gra­ves que terão a sua origem nestas ambições independentistas e secessionistas. Será bom que, nesse momento vindouro mas breve, os dirigentes de turno não esqueçam a sa­bedoria evidenciada por Francisco sobre este tema.
Pouco dias depois, Sua Santidade teve oportunidade de aprofundar e desenvolver as suas preocupações. Visitando a Comunidade de Santo Egídio, foi uma vez mais a voz pa­pal que assumiu o papel tribunício de denúncia dos males que afetam o velho conti­nente: “a cultura do dinheiro e do descartável – uma espécie de eutanásia escondida, porque descarta os idosos, os doentes, as crianças e os próprios jovens desemprega­dos, porque não servem para a produção”. Tudo isto como antecâmara da conclusão ób­via: vivemos numa Europa desumanizada, desfigurada, cansada e esquecida das suas raízes. E, logo de seguida, o não menos óbvio apelo: “a Europa está cansada. Te­mos de a ajudar a rejuvenescer, a encontrar as suas raízes. Renegou as suas raízes; te­mos de a ajudar a reencontrá-las”.
Quem, também por dever de ofício, tem obrigação de estar atento às posições que a Igreja Católica, pela voz dos seus pontífices, vai assumindo face ao projeto europeu em con­strução, não pode deixar de ver e ouvir, nas sábias palavras de Francisco, forte coin­cidência e profunda semelhança com o magistério outrora protagonizado por São João Paulo.
E, assim sendo, resta-nos a serena tranquilidade de saber que, da cadeira do successor de Pedro, volta a ouvir-se uma voz sábia e prudente que encara a regeneração da Eu­ropa e do projeto europeu como uma condição indispensável para a superação das dificuldades que se nos deparam. Tal como, nos finais do século passado, quando foi pre­ciso enquadrar o final da Guerra-fria, a queda do muro e a implosão do império sovié­tico, se ouviu, com igual clareza e firmeza, a voz do saudoso e Santo Papa-mineiro.

A novela Juncker

Nas duas últimas semanas – desde que se conheceram os resultados das eleições para o Parlamento Europeu – tem grassado uma verdadeira guerra-surda no quadro da União Europeia, que tem tido como principal característica o facto de se travar no secretismo das chancelarias europeias, de forma confidencial, e que tem oposto alguns Estados-Membros da União e, em última instância, o Conselho onde os mesmos estão representados e o Parlamento Europeu. O pretexto para a dissensão tem sido a nomeação do próximo Presidente da Comissão Europeia que deverá entrar em funções no próximo dia 1 de Novembro. Nos termos dos Tratados europeus – na versão saída do Tratado de Lisboa – compete ao Conselho Europeu, por maioria qualificada e levando em conta os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, submeterem a este o nome do candidato a Presidente da Comissão, o qual deve ser confirmado por maioria absoluta (376 votos) dos 751 eurodeputados. Os governos propõem, o Parlamento confirma. Como a maioria dos Estados-Membros da UE é governada por partidos que integram o Partido Popular Europeu e este obteve mais mandatos nas eleições europeias, mantendo-se fiel ao que propôs ao eleitorado antes das eleições europeias, o PPE confirmou que o seu candidato a Presidente da Comissão Europeia seria o ex-Primeiro-Ministro luxemburguês Jean-Claude Juncker. Acontece que, no quadro do Conselho Europeu, e apesar de aí também haver uma maioria de chefes de Estado e de governo pertencentes a esse mesmo PPE, a figura de Juncker está longe de ser consensual. Basicamente é tido como um rosto da Europa do passado, um federalista convicto defensor do reforço do papel da Comissão Europeia e, sobretudo, um crítico da liderança desempenhada pela Chanceler Angela Merkel no atual quadro europeu. Muito devido a isso, nas duas últimas semanas, Merkel disse quase tudo e o seu contrário relativamente à candidatura de Juncker. Começou por se colar a Cameron e às críticas inglesas à eventual nomeação de Juncker – que chegaram ao ponto de ameaçar com a realização de um referendo visando a saída do Reino Unido da União – para, presa aos compromissos assumidos pela CDU no quadro do PPE, declarar o seu apoio ao luxemburguês. Mas a crítica a ostensiva a Juncker não provém apenas de Londres. A Holanda, a Suécia, a Dinamarca, a Hungria e a Itália também já deixaram indícios do desconforto que lhes causa a figura de Jean-Claude Juncker. E a traduzirem em votos esse desconforto, no seio do Conselho Europeu, estaria formada uma minoria de bloqueio que impediria a sua apresentação ao Parlamento Europeu como candidato a Presidente da Comissão Europeia.
De todas as críticas feitas, é claramente a que vem de Londres que mais peso pode vir a adquirir no plano da União Europeia. Nunca, como neste caso, o Reino Unido levou tão longe a sua ameaça e a sua pressão sobre a União Europeia e os restantes Estados-Membros. Quando Cameron ameaça antecipar o referendo prometido para a próxima legislatura sobre a permanência do Reino Unido na União, está a esticar a corda até limites nunca antes vistos. Merkel, no fundo, agradece o favor que Cameron lhe está a fazer. A Chanceler sabe que uma Comissão Europeia liderada por Juncker, admirador confesso do seu antecessor Helmut Kohl e rosto sobrante dos tempos áureos do projeto europeu, nada teria a ver com o estilo de uma Comissão Europeia por si domesticada liderada por Durão Barroso. Nessa medida, a postura de Londres serve na perfeição os seus intentos e a sua agenda. Juncker seria, ninguém o pode duvidar, obstáculo de monta à prossecução da política de germanização da UE que Merkel tem levado a cabo.
A guerra-surda em curso foi, na última semana, denunciada com toda a clareza por um ex-Primeiro-Ministro francês, o socialista Michel Rocard, que num artigo de opinião publicado simultaneamente em França e no Reino Unido, no Le Monde e no The Guardian, foi sugestivamente intitulado “Amigos Ingleses, saiam da União Europeia mas não a matem”. Aí, o socialista francês, politicamente incorreto como sempre foi seu hábito, não se exime a evidenciar a extensa lista de “males” que os britânicos já fizeram às Comunidades e à UE para concluir: se quiserem sair, saiam; mas não permaneçam para evitar o aprofundamento da União Europeia, para a restringirem apenas à sua vertente económica, para forçarem à renacionalização de políticas já comunitarizadas. E, sobretudo, para impedirem a nomeação de Juncker para a Presidência da Comissão. Apesar de reafirmar a sua condição de socialista, e de reiterar o seu gosto pessoal em ver Schulz à frente do executivo de Bruxelas, Rocard conclui: as urnas falaram, o PPE venceu as eleições e Jean-Claude Juncker deve assumir a presidência da Comissão Europeia. Sob pena, permitimo-nos acrescentar, de se transformar o ato eleitoral para o Parlamento Europeu num grande logro ou numa grande fraude.
A palavra final reside, pois, no Conselho Europeu – naquilo que os chefes de Estado e de governo vierem a decidir, na proposta de nome que vierem a apresentar ao Parlamento Europeu. No entretanto e até ao momento da decisão final, a guerra-surda irá prosseguir. Na certeza de que subjacente à mesma irão estar as duas típicas e clássicas visões do processo europeu: a visão de pendor intergovernamental, que pretende centrar o poder da União no Conselho Europeu, nos chefes de Estado e de governo; e a visão de feição mais supranacional, por alguns simplisticamente apodada de “federal”, que privilegia um modelo de integração centrado em torno da Comissão Europeia. A novela em torno da escolha de Jean-Claude Juncker para Presidente da Comissão Europeia não é, senão, mais um episódio da tensão permanente que opõe estes dois modelos para o futuro do projeto europeu.