Incompreensões constitucionais

Entre outros problemas óbvios, creio que uma das principais deficiências da governação de turno prende-se com o facto de, mesmo que a contra-gosto, ainda não ter interiorizado que tem de conviver com um Tribunal Constitucional e de não estudar a tendência jurisprudencial do mesmo, optando sempre por atuar como se aquele não existisse ou ignorando em absoluto as suas opções doutrinárias e jursprudenciais. Um princípio mínimo de cautela e uma elementar dose de prudência e bom-senso aconselhariam a levar em consideração ambos os factos e proceder em conformidade. Parece-me que tem optado quase sempre por esticar a corda. E quando esta se parte para o seu lado, resta-lhe correr atrás do prejuízo. E quase sempre a emenda tem sido pior que o soneto. Uma atitude um pouco mais humilde e inteligente ter-nos-ia poupado a muitos problemas. Passados e, presume-se, futuros.

Cavaco Silva

Cavaco Silva veio hoje afirmar não ter “nenhuma informação que aponte para a redução do rendimento disponível daqueles que foram duramente atingidos nos últimos anos, funcionários públicos e pensionistas”. E acrescentou que é mesmo “difícil”, no caso específico dos pensionistas, “continuar a exigir mais sacrifícios”. Foi a isto que a nossa imprensa deu relevo. Acontece que Cavaco disse mais. Disse que “se for necessário reduzir o rendimento disponível de alguém no futuro, tem que ser àqueles que têm elevados rendimentos e que, até este momento, não foram seriamente prejudicados no seu bem-estar”. Creio residir aqui a verdadeira mensagem dirigida ao Governo. E o essencial da intervenção presidencial. Porque, ao afirmá-lo, Cavaco está a dizer, com a autoridade política e institucional que lhe assiste, que até agora a austeridade tem sido mal repartida em Portugal. Que há quem tenha avultados rendimentos e não tenha sido afectado, em igual medida, pelas políticas austeritárias como o foram os funcionários públicos e os pensionistas. Será, seguramente, das mais fortes críticas alguma vez feitas pelo Presidente da República às políticas austeritárias governativas. Resta saber se, no futuro próximo, o Presidente da República irá ser consequente, nos atos, com as palavras que acaba de pronunciar. Não faltará muito para o sabermos.

Os apelos de Obama

Obama veio apelar à união dos EUA com a Europa contra a “força bruta” da Rússia no périplo que está a realizar pela Europa, incluindo as instituições europeias, o quartel-general da NATO e o próprio Vaticano. Não deixa de ser curioso. Quando pôde escolher, virou-se para o outro lado e assumiu o Pacífico como destino natural americano; apanhado desprevenido e a dormir, surpreendido com a ambição expansionista russa concretizada na Crimeia em prejuízo da Ucrânia, resta-lhe recordar as aulas de História que por certo teve onde deve ter aprendido que o Ocidente é matricialmente europeu e é do interesse dos próprios EUA que o Ocidente em que se integram não percam a sua matriz nem a deixem enfraquecer a ponto de a mesma se tornar irrelevante. Mais vale tarde do que nunca. Mas ainda vale muito mais se o apelo for sincero e passar das palavras aos atos.

A Crimeia e o Kosovo, segundo Obama

Segundo notícia de hoje, Obama considera que os casos da Crimeia e do Kosovo são diferentes e não se podem comparar. Também concordo. Num caso foram os EUA que desepoletaram a questão: na sua luta sem tréguas à Al Qaeda era-lhes importante evidenciar que não se tratava de uma luta contra o islamismo, muito menos a existência de Estados islâmicos. Que melhor forma de provar isso do que semear um pequeno Estado islâmico no meio dos “pacíficos” Balcãs, mesmo que afetando a integridade histórico-territorial da Sérvia? Mesmo que isso lhes custasse algum dinheiro, haveria sempre uns tansos (UE) que se encarregariam de suportar os custos económicos da experiência. No outro caso, os EUA foram apanhados desprevenidos e a dormir. Logo, Obama tem toda a razão: não faz sentido comparar o Kosovo e a Crimeia.

Sinais que vêm de França

No passado fim de semana realizou-se a primeira volta das eleições municipais em França. Como quaisquer outras eleições locais, em qualquer parte do mundo, podem-se-lhes aplicar aquele velho aforismo a que os políticos tanto gostam de recorrer, sobretudo relativamente às sondagens, que pretende dizer tudo e, em boa verdade, não diz nada: “são eleições que valem o que valem”. Pois esta primeira volta das eleições autárquicas francesas também valem o que valem. Em bom rigor – valem aquilo que nós queiramos que elas valham, dizem aquilo que nós queiramos que elas digam. In casu, creio que este ato eleitoral nos disse três coisas importantes.
A primeira – que os franceses, em número nunca antes atingido ou atingido, numa taxa considerada histórica pelo também histórico Le Monde, virou as costas ao processo eleitoral e resolveu ficar em casa. Foram cerca de 40% dos franceses que, pura e simplesmente, se recusou a participar neste ato eleitoral. É grave e deve fazer meditar – porque se as eleições constituem a pedra angular da própria democracia, a ausência de participação inquina o processo eleitoral e, assim sendo, questiona e fragiliza o próprio regime democrático.
A segunda – profundamente insatisfeitos e defraudados com uma governação esperançosa em que depositaram muitas expectativas, resolveram penalizar fortemente a presidência e governo de François Hollande varrendo do mapa, em inúmeras cidades de média e grande dimensão, as candidaturas protagonizadas pelo Partido Socialista. É a confirmação da velha querela que aponta para a influência das questões políticas nacionais em eleições autárquicas. Lá como também cá.
A terceira questão importante dita por esta eleição prendeu-se com a notável subida eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen. Votação tão mais expressiva, de resto, quanto as candidaturas frentistas cifraram-se em apenas 597 num universo de 36.000 municípios. Num sistema eleitoral maioritário a duas voltas, em que apenas foram eleitos os candidatos que obtiveram mais de 50% dos votos, havendo necessidade de uma segunda volta entre os dois mais votados, estas ilações afiguram-se como inquestionáveis. São dados de facto que devem ser tidos em consideração.
E deverão ser tidos em consideração tanto mais quanto, conforme temos vindo sucessivamente anotar neste espaço, cremos existirem fortes probabilidades de os mesmos se repetirem precisamente dentro de dois meses – quando, a 25 de maio próximo, os europeus forem chamados a eleger o novo Parlamento Europeu. Isto é – corre-se o fortíssimo risco de sermos confrontados com uma taxa de abstenção sem precedentes; persiste o perigo de uma lamentável confusão quanto ao objetivo do voto a emitir, fazendo-se dele um uso imprudente, mais direcionado a penalizar ou sancionar os governos de turno que exercem o poder (sejam eles de esquerda, centro ou direita) nos mais diferentes Estados da União Europeia do que a escolher e optar por diferentes modelos e projetos de construção europeia, desconsiderando-se em absoluto a finalidade do sufrágio que vai ocorrer; e, finalmente, não poderá ser dada por excluída a possibilidade de sermos confrontado com escolhas – democráticas, por certo! – que mais do que se caraterizarem pela apresentação de propostas concretas sobre o modelo de Europa que preconizam, beneficiarão dos princípios democráticos para atacarem e questionarem a União Europeia nos seus fundamentos, valores e princípios, em nome do retrocesso a um passado impossível e sem serem capazes de preconizarem um futuro com um rumo ou um caminho sério e sustentável.
São, pois, muitos sinais que não podem ser desconsiderados e que devem ser levados a sério, refletidos e meditados. E quando estes ventos e estes sinais nos chegam, justamente, de França, talvez as razões para nos preocuparmos com eles sejam acrescidas e a preocupação deva ser reforçada. Há perigos que, apesar de identificados, com frequência se corporizam e se tornam reais. E aí, quase sempre, é tarde para reagirmos.
Post-scriptum: este texto é publicado no dia em que Espanha se despede do seu primeiro Presidente do Governo democrático da monarquia restaurada após a morte do ditador Francisco Franco. Não é por acaso que o país se curvou unanimemente ante a figura e a memória de Adolfo Suárez. A Espanha democrática e europeia dos nossos dias deve-lhe o máximo que um país pode dever a um estadista. Pese embora os muitos erros cometidos, sobretudo de natureza partidária e depois de deixar a Presidência do governo, com o apoio e na fidelidade à Coroa, conduziu o país da ditadura à democracia, liderando a transição e superando os traumas de uma guerra civil (1936-1939) que foi uma das maiores carnificinas do século XX. Conseguiu fazê-lo de uma forma pacífica e duradoura. Talvez por isso continue a ser o Presidente do governo da democracia que os espanhóis mais continuam a admirar, considerar e respeitar. E foi, também, quem lançou as bases da aproximação de Espanha à Europa (pese embora já tenha cabido ao seu sucessor, Felipe Gonzalez, outorgar o respetivo tratado de adesão, no mesmo dia em que, no Mosteiro dos Jerónimos, Portugal assinou idêntico documento). Permanecerá, seguramente, na memória dos espanhóis; e perdurará no rol dos líderes notáveis que puderam deixar a sua marca na Europa. Coisa rara, nos tempos que passam.