by João Pedro Simões Dias | Fev 18, 2014 | Diário de Aveiro
Pela primeira vez desde 1996 – há 18 anos, portanto – que um Presidente da República francesa não se deslocava em visita de Estado a Washington. O último a fazê-lo foi o ex-Presidente Jacques Chirac. Ocupava, então, a Casa Branca, Bill Clinton. Mais tarde, em 2007, Nicolas Sarkozy foi recebido por George W. Bush – mas o encontro não teve a dignidade de visita de Estado. Desta vez, na passada semana, Barack Obama conferiu a distinção a um François Hollande em acentuado estado de debilidade política que, eleito há quase dois anos em nome de um programa político muito assertivo e definido, enveredou nos tempos mais recentes por uma completa inversão das suas prioridades, dos seus objectivos e, até, dos seus princípios, admitindo que os mesmos falharam em toda a linha e que havia que emendar o caminho se pretendia salvar o que restava do seu único mandato, atenta a improbabilidade de o mesmo ser repetido. Não deixa de ser sintomático que a visita se tenha realizado neste momento – quando o supremo magistrado francês se viu obrigado a revisitar os aspetos fundamentais da sua política, a repensar a sua postura no quadro da União Europeia e, parece, a relançar e renovar a relação transatlântica da qual, por herança e legado gaulista, a França sempre se habituou a desconfiar. Num absoluto paradoxo, diga-se, se considerarmos que a França é, provavelmente, o mais velho aliado dos Estados Unidos, datando essa aproximação, ainda, da época em que os EUA não tinham acedido à independência e mais não eram do que um somatório de territórios e colónias britânicas mas, também, francesas.
Culminando a referida visita de Estado, Barack Obama e François Hollande assinaram um texto conjunto publicado no The Washington Post e no Le Monde, que levou o sugestivo título “França e Estados Unidos, desfrutando de uma aliança renovada”. No puro plano dos princípios apetece dizer que era impossível escolher momento mais adequado do que este para assinar um texto tão cheio de boas intenções e tão afirmativo em relação à renovação da aliança transatlântica entre os EUA e não a França em particular mas, no momento presente, a própria União Europeia no seu todo. Resta saber – e isso só o tempo permitirá saber – se os princípios acordados e as bases de renovada colaboração entre os dois lados do Atlântico norte serão para levar a sério e ter alguma concretização prática ou se, pelo contrário, serão remetidos para o baú das declarações piedosas, cheias de boas vontades mas absolutamente desprovidas de qualquer conteúdo prático.
Por outro lado, e por paradoxal que também possa parecer, François Hollande será, talvez, no momento que passa, quem se encontra em melhor posição para relançar o diálogo e refazer as pontes entre as duas margens do oceano. A sua debilidade política interna pode constituir estímulo suficiente para se empenhar em reconstruir pontes que muitos – entre os quais alguns dos seus antecessores no cargo – se entretiveram a desfazer e a destruir. É, como soe dizer-se, uma janela de oportunidade que Hollande, se não se distrair com outras questões domésticas, poderá aproveitar. Até porque, do lado europeu, não abunda quem queira ou possa corporizar o renascimento dessa ponte.
Merkel lidera a maior economia europeia – mas, talvez por isso mesmo, encontra-se mais preocupada em reforçar e expandir a sua influência na União Europeia do que, propriamente, empenhada em estreitar os laços da União com o aliado norte-americano.
Cameron, que poderia rivalizar ou disputar a missão com Hollande – e em certa medida até poderia desfrutar de algumas vantagens comparativas relativamente ao ocupante do Eliseu – tergiversa na sua postura europeia, profundamente manietado por uma ala assumidamente eurocética do seu partido, oscilando entre o anúncio de um referendo em 2017 sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia e o recurso ao orçamento de Bruxelas para solicitar apoio financeiro que lhe permita fazer face às agruras da natureza que tanto tem castigado e fustigado o seu país – inaugurando uma postura política que, por simplicidade de linguagem, já defini e qualifiquei como “fora quando convém, dentro quando precisa”.
Não abundam, assim, as alternativas e as hipóteses para dar corpo ao renascimento da relação transatlântica. E, sobretudo, para a Europa da União, essa relação afigura-se como absolutamente fundamental e decisiva. Mais do que para os próprios Estados Unidos. Estes têm sempre o caminho do Pacífico como destino natural e alternativo à sua vocação atlântica. A Europa da União é que não tem alternativa à sua aliança com os EUA. Na sua retaguarda depara com uma renascida ambição territorial protagonizada por uma Rússia renovada nos seus desejos de alastrar a sua influência pelo continente europeu e por um novo “cordão sanitário” que, lentamente, se começa a desenhar. Resta-lhe, por exclusão de partes mas também por cumprimento e respeito por um indeclinável desígnio histórico, recuperar e reconstruir a velha aliança transatlântica com o aliado norte americano – afinal, as duas faces dum Ocidente profundamente em crise e desnorte, a viver o seu Outono sem bússola para parafrasearmos Adriano Moreira, do qual só poderá sair se, desde logo e como condição sine qua non, as suas principais partes componentes e integrantes se entenderem e se congregarem.
Hollande, se tiver juízo, poderá a vir a ter, aqui, a sua oportunidade. E não conviria desperdiçá-la porque poderá não ter muitas mais. A mesma água do rio não costuma passar duas vezes debaixo da mesma ponte.
by João Pedro Simões Dias | Fev 11, 2014 | Diário de Aveiro
Uma das grandes virtualidades que definem a superioridade ética e moral do sistema de governo democrático, por referência aos demais conhecidos, reside justamente no facto de as democracias serem o único dos sistemas de governo conhecidos ou inventados que admitem, aceitam e toleram no seu seio a atividade dos seus próprios adversários e dos seus próprios inimigos. As democracias, e em especial as democracias de matriz ocidental, caracterizam-se, entre outros aspectos, por permitirem e aceitarem que beneficiem das suas regras não só aqueles que as respeitam e as cumprem como, inclusivamente, os que delas se aproveitam para tentarem a sua destruição e ensaiarem o seu desmoronamento. É essa, repete-se, a enorme vantagem ética e moral que as democracias evidenciam relativamente a todos os demais sistemas de governo. Foi uma das razões, seguramente, que ditaram o velho aforismo atribuído a um dos maiores vultos da política do século XX – Winston Churchill, o estadista que venceu a segunda guerra mundial e logo a seguir perdeu as eleições legislativas no Reino Unido – quando afirmou a democracia como o pior dos sistemas existentes…. com exceção de todos os restantes.
O princípio aplica-se a todas as formas de organização política da sociedade que são conhecidas, de forma especial o Estado. Mas, também, para as de âmbito infra-estadual. E também para as de carácter supranacional – e, dentro destas, de forma particular, para a União Europeia. A União Europeia, independentemente da qualificação doutrinária em que se enquadre – e isso não é matéria para ser abordada ou desenvolvida neste local – é, seguramente, uma forma nova, original, de organização política da sociedade, de âmbito supranacional ou, talvez mais corretamente, supraestadual. Mas essa novidade ou originalidade que a caracteriza não lhe retira um pilar fundamental – a União Europeia assenta, entre outros, num pilar democrático, tipificador dos Estados de direito que a integram e que se estende à própria organização. É, por definição e simplificação, uma organização política de âmbito supraestadual, de direito e democrática.
Vem isto, ainda, a propósito do próximo ato eleitoral para o Parlamento Europeu, no próximo dia 25 de maio. E, sobretudo, a propósito de algumas projeções ou estudos de opinião que começam a surgir e que revelam a forte probabilidade de o próximo Parlamento Europeu poder vir a ser integrado por cerca de um terço de eurodeputados que, provenientes tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita, poderão coincidir numa acérrima e violenta crítica do projeto europeu, quando não, mesmo, numa crítica feroz à existência da própria União Europeia. Serão eurodeputados que, legitimamente e beneficiando da democracia que subjaz ao próprio projeto europeu, dela se aproveitarão para questionar, se preciso for, a existência dessa mesma União Europeia. Ironias do sistema…
Decerto – não se questiona a existência dessas propostas nem a sua legitimidade. O problema é outro. O problema fundamental é que a generalidade dessas propostas que começam a ganhar forma cada vez mais sustentada revela uma lacuna incontornável – sabemos, por regra, aquilo que rejeitam e aquilo que recusam. Pouco ou nada sabemos daquilo que propõem, do que sustentam, do modelo alternativo que podem ter para oferecer ao eleitorado. Sabemos que contestam a globalização, a livre circulação de pessoas, o aprofundamento político da União, o reforço das competências das instituições comuns, quiçá mesmo a própria moeda comum europeia. Algumas dessas críticas revestem inequívoca pertinência. A questão, porém, permanece em aberto: tudo em nome de quê? Convenhamos – ainda ninguém no-lo explicou, de forma sistemática, de forma coerente, de forma global. E aí reside a grande debilidade e a grande fraqueza destes movimentos eurocéticos que beneficiam dos tempos de crise para capitalizarem descontentamentos, congregarem desconfianças e, muito provavelmente, somarem (muitos) votos. E este é o verdadeiro drama que as próximas eleições para o Parlamento Europeu podem revelar – um forte descontentamento traduzido ou numa elevada abstenção ou num significativo reforço dos que, beneficiando e aproveitando a matriz democrática da União, apenas se estruturarão em torno de um voto de protesto em movimentos relativamente aos quais sabemos apenas o que não querem mas ignoramos quase por completo aquilo que querem.
Na passada semana, entre nós, tivemos oportunidade de ter um conhecimento prático deste drama – com pompa e circunstância foi anunciada e realizada, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, uma conferência por Bernd Lucke, Professor de Economia na Universidade de Hamburgo e líder do novo partido alemão Alternativa para a Alemanha (AfD). Como era expectável, proliferaram as críticas à União Europeia tal qual a mesma existe. Muitas delas válidas e pertinentes. Assertivas, mesmo. Duas notas, porém, merecem destaque: a assistência conseguiu reunir desde proeminentes figuras da nossa esquerda e extrema-esquerda a relevantes protagonistas da nossa direita e extrema-direita. De permeio, uma mão-cheia de almas intelectualmente honestas, sérias, academicamente relevantes. Unidas, por certo, nas críticas que se escutaram naquela sala. Mas absolutamente incapazes de protagonizarem, pela positiva, uma alternativa credível e politicamente consistente.
Deste drama a União Europeia ainda não se libertou. Nem se afigura plausível que se liberte até ao próximo mês de maio.
Post scriptum – No passado domingo, por iniciativa do Partido do Povo, de extrema-direita, em referendo popular, os suíços votaram a introdução de limitações à entrada e permanência de emigrantes no país, incluindo os provenientes dos Estados da União Europeia, retornando a um sistema de quotas ou contingentes. Desde logo uma clara injustiça – em muitos sectores económicos, têm sido os emigrantes na Suíça os grandes responsáveis pela onda de prosperidade que o país conhece. Se levarmos em consideração que a Confederação Helvética possui vários acordos com a União, nomeadamente em matéria de liberdade de circulação de pessoas, no âmbito de Schengen, teremos que os mesmos deverão ser alterados e renegociados a curto prazo. É, em toda a sua plenitude, o regresso em força de uma clara manifestação nacionalista que vai afastar a Suíça da Europa da União e fechá-la sobre si mesma. É um mau presságio para o que pode estar por diante. Pode ter sido o primeiro passo no sentido do retorno a uma Europa fechada e nacionalista, derrubando e destruindo um caminho lentamente edificado no último meio século. É pena.
by João Pedro Simões Dias | Fev 4, 2014 | Diário de Aveiro
O debate que urge ser realizado e não pode nem deve passar ao lado das próximas eleições para o Parlamento Europeu, é um debate de âmbito político e natureza europeia. É necessário compreender que no próximo dia 25 de maio não se realizarão 28 eleições nacionais para o Parlamento Europeu mas, pelo contrário, ocorrerá uma única eleição que se desenvolverá nos 28 Estados-Membros da União Europeia.
Parecendo ser a mesma coisa são, todavia, coisas substancialmente diferentes!
A principal consequência a retirar desta definição prende-se, inquestionavelmente, com o objectivo do próprio ato eleitoral. Ao contrário do que alguns se têm empenhado em propalar – inclusivamente muitos que têm acrescidas responsabilidades em evitar o equívoco – o ato eleitoral para o Parlamento Europeu não tem, nem pode ter, por finalidade emitir um qualquer juízo de valor, no plano político, sobre os governos de turno de cada um dos Estados da União. Apelar para que se aproveitem as eleições para o Parlamento Europeu para censurar ou mostrar cartões aos governos nacionais, não significa cometer um erro. Significa cometer dois erros, qual deles o mais grave.
O primeiro, consiste em perverter por completo o sentido e a finalidade das referidas eleições europeias. Os governos nacionais, todos eles e em todos os Estados da União, devem ser julgados no momento adequado e esse é, obviamente, o momento de realização de eleições legislativas. Não é, nem pode ser – sob pena de estarmos a desvirtuar o próprio sistema – o momento de realização de quaisquer outros atos eleitorais e, nomeadamente, o ato eleitoral para a Assembleia de Estrasburgo. Os governos julgam-se e avaliam-se em eleições legislativas.
O segundo erro em que tal visão nos poderá fazer incorrer tem a ver com o facto de, tal entendimento, equivaler a desperdiçar mais uma oportunidade soberana para se efetuar um debate sério e aprofundado sobre a Europa e os caminhos que esta pode vir a trilhar. E, se se desperdiçarem estas oportunidades que não abundam, reconheçamo-lo, fenece em absoluto qualquer legitimidade para se criticar a falta de debate europeu e a falta de uma discussão séria e aprofundada sobre as questões europeias. Não existe momento mais nobre e mais sério, e também mais adequado, para uma discussão e um debate sério sobre a Europa do que aquele que antecede a realização de um ato eleitoral para o Parlamento Europeu. É, por excelência, o tempo de discutir a Europa: as diferentes visões que possam existir, os diferentes modelos que se apresentem, os projectos alternativos que se estruturem. Perder a oportunidade ou desperdiçar o momento significa, por isso, errar duas vezes.
A estes factores acresce um outro, de natureza conjuntural, que contribui para conferir uma maior importância e um maior relevo às próximas eleições europeias: é a primeira vez que as mesmas se realizam em 28 Estados europeus; é o acto eleitoral que, potencialmente, mais cidadãos europeus poderá chamar às urnas. Nunca foram tantos os Estados onde se realizarão as próximas eleições europeias; nunca foram tantos os europeus com capacidade eleitoral activa para exercerem o respectivo direito de voto.
E tudo se passa num momento em que, subliminarmente, se ratificará uma evolução da União Europeia que nunca foi sufragada pelo voto popular mas que é absolutamente irrefutável e, quiçá, irreversível. Esta UE que verá a sua instância parlamentar ser renovada já tem muito pouco ou quase nada a ver com a sua antecessora – as Comunidades Europeias geradas no imediato pós-guerra. Se estas, produto da guerra-fria, se configuravam como uma organização de âmbito subregional, representando “metade de meia Europa”, da Europa dita Ocidental, mas de cariz eminentemente económico e assente numa visão humanista e personalista do fenómeno político que as gerou, a União Europeia dos nossos dias, pelo contrário, é basicamente um produto do mundo globalizado e da contemporaneidade, o grande espaço por excelência de âmbito continental, que ambiciona representar a totalidade do Velho Continente, revestindo uma natureza tendencialmente paneuropeia.
Ora, em cima da mesa do debate político europeu que antecederá o próximo ato eleitoral para o Parlamento de Estrasburgo não poderão deixar de estar os desígnios que esta nova União Europeia terá de assumir nos tempos mais próximos – na sua dimensão interna mas, também, na sua dimensão externa. Ambos os desafios são absolutamente incontornáveis e o debate sobre ambos não pode deixar de ser travado. Descentrar a atenção desses desígnios é um risco demasiado que não pode nem deve ser repetido. Significará, seguramente, contribuir para tornar esta nossa Europa cada vez mais irrelevante neste mundo de grande espaços, globalizado e cada vez mais pequeno.
É um pouco de tudo isto que se curará quando chegar o momento de formular um juízo e uma opção de voto nas eleições europeias. Confundir ou misturar estes objectivos e estas questões com assuntos de política doméstica e caseira não parece a opção mais sábia nem a escolha mais acertada. E se todos nós, europeus, beneficiamos duma cidadania comum que nos foi atribuída como factor integrador e que tem no exercício do poder de voto para o Parlamento Europeu uma das suas mais relevantes expressões políticas, é-nos exigido, no mínimo, o bom uso desse direito. É a forma que temos de contribuir para a construção, no plano supranacional, dum futuro que a todos diz cada vez mais respeito.
by João Pedro Simões Dias | Jan 28, 2014 | Diário de Aveiro
Continuam a ser de extrema gravidade as notícias que nos chegam de Kiev. Merecem, por isso, atenção e meditação mais aprofundada e reflexão mais ponderada. O que começou por ser uma reação popular à opção do Presidente Viktor Yanukovytch, de se recusar a assinar o acordo de parceria estratégica oriental com a União Europeia, na Cimeira de Vilnius de final de 2013 – para não hostilizar Putin nem fazer a Rússia perder influência estratégica naquela parte sensível do leste europeu – volveu-se, célere, num protesto inorgânico onde, para além da aproximação à União Europeia, os ucranianos saíram para a rua reclamando, igualmente, uma série de reivindicações de pura política interna, que iam da libertação imediata da antiga primeira-ministra Yulia Timochenko – detida em prisão hospitalar – à demissão imediata do governo liderado por Mykola Azarov.
À voz da rua o poder respondeu como soube – primeiro ignorando as manifestações e as ruas; depois, apovando legislação para as proibir; seguidamente, pretendendo alargar a sua base de apoio com recurso a uma mesa redonda com os três primeiros chefes de Estado da Ucrânia independente – respetivamente Viktor Yushenko, Leonid Kutchma e Leonid Kravchuk; finalmente, recorrendo à razão da força e à mobilização do poderio militar com tanques e militares espalhados pelas principais artérias de Kiev e das principais cidades ucranianas. Debalde – quanto mais o poder foi reagindo e subindo a parada da resposta, mais se fortaleciam os protestos e mais se organizava e reforçava a oposição. E maiores foram sendo as exigências dos manifestantes e mais se estruturavam as suas reclamações.
Numa última cartada, que parece ter tanto de derradeira quanto de desesperada, Yanukovytch ousou fazer o impensável há escassas semanas – ofereceu, literalmente, à oposição, a partilha do poder, disponibilizando-se a ceder aos seus opositores a cabeça do chefe do governo, permitindo àquela indicar tanto o futuro vice-primeiro-ministro como o próprio futuro primeiro-ministro do país.
Vem nos livros e está consagrado no vasto leque de regras não escritas a que obedece a ciência política e o exercício e a manutenção do poder político – quando o titular deste se dispõe a partilhá-lo voluntariamente com adversários, opositores e inimigos, como resultado da força manifestada na rua, esse poder político aproxima-se a passos largos do seu estertor final. Está condenado à queda e à sua substituição. Restará, sempre, em aberto uma questão fundamental – saber que danos e que estragos poderá, ainda, provocar até ao seu abandono e à sua queda definitiva. Abundam, nos anais da história, os exemplos que demonstram à saciedade a regra não escrita acabada de enunciar.
No caso ucraniano, porém, há condicionantes externas que não podem deixar de ser levadas em consideração. A mais importante reside na postura que o Kremlin poderá vir a assumir nesta questão. Putin já deu suficientes sinais de que não está disposto a tolerar a perda da influência russa num território vizinho que se lhe afigura de vital importância estratégica para os interesses económicos russos. Dificilmente condescenderá com um poder em Kiev que privilegie olhar para o ocidente em vez de olhar para leste. Dificilmente aceitará que a zona de influência da União Europeia chegue à sua fronteira ocidental. É verdade que o império soviético implodiu há mais de duas décadas, mas a “doutrina Brejnev”, da soberania limitada, parece ter adquirido um novo protagonista e um novo intérprete. A segunda condicionante será (seria) a reação de Bruxelas. Acontece que, nos últimos dias, a União Europeia, relativamente à questão ucraniana, tem oscilado entre um silêncio ensurdecedor e a simples enunciação de declarações piedosas. A própria Lady Ashton, Alta-Representante para a Política Externa da União Europeia, anda desaparecida (s)em combate. Herman van Rompuy e Durão Barroso devem ter assuntos prioritários e mais urgentes nas suas agendas. E as principais reações de que há nota têm sido tomadas, individualmente, pelos mais importantes Estados da União. Tanto a Alemanha como a França, por exemplo, anunciaram chamar os embaixadores ucranianos acreditados em Berlim e em Paris para lhes transmitirem a sua condenação pela legislação anti-manifestações aprovada em Kiev e pelas reações violentas determinadas pelo governo de Kiev. Ou seja – em matéria de política externa e de segurança, a UE está a léguas do que diz pretender ser e construir. E, uma vez mais, refém das posições – e dos interesses – dos seus maiores Estados. É a manifestação clássica do directório. Daquilo para que, cada vez menos, a UE deveria caminhar mas, infelizmente, daquilo para que cada vez mais parece dirigir-se.
No caso concreto, o défice de União Europeia não deve distrair-nos nem desligar-nos do que se passa na Ucrânia. Que, se não beneficiar da sabedoria dos seus dirigentes, pode estar a um passo da guerra civil. E esse sim – seria mais um problema que a Europa, a da União ou a restante, bem pode dispensar. Porque se todos os conflitos armados são potencialmente dramáticos, nenhum assume o grau de dramatismo e de horror das guerras civis. Basta recordarmo-nos do que aconteceu na ex-Jugoslávia e no processo que ditou a sua implosão, no início dos anos noventa do século passado, para sabermos daquilo que estamos a falar. E se não temos Europa, tenhamos, pelo menos, memória.
by João Pedro Simões Dias | Jan 21, 2014 | Diário de Aveiro
Foi entregue há dias mais um Prémio Europeu Carlos V – um dos mais importantes e relevantes de âmbito europeu, instituído pela Fundação Academia Europeia de Yuste, para galardoar o labor de todos aqueles que, com o seu esforço e dedicação, tenham contribuído para o conhecimento geral e o engrandecimento dos valores culturais, científicos e históricos da Europeia, bem como o processo de unificação da Comunidade Europeia. A cerimónia de entrega deste galardão – que honra a memória de um dos monarcas-imperadores europeus que exerceu maior poder sobre uma das mais extensas áreas europeias de que há memória – costuma ocorrer no Real Mosteiro de Yuste, bem na raia luso-espanhola, perto da cidade de Cáceres, precisamente no local onde o Imperador Carlos V se refugiou, e viria a morrer, depois de ter abdicado da coroa espanhola para o filho Felipe II e do Sacro Império Germânico para o seu irmão Fernando. Ao longo da história do prémio, contam-se galardoados de excelência, exceção e de méritos firmados em prol do ideal europeu: Jacques Delors, Wilfried Martens, Felipe Gonzalez, Mikail Gorbachov, Jorge Sampaio, Helmut Kohl, Simone Veil e Javier Solana.
Desta feita o escolhido foi José Manuel Durão Barroso, fundamentando-se a outorga do galardão, no dizer da distinta Academia Europeia, “pela sua trajetória e o seu compromisso na política de unificação europeia, o seu trabalho a favor da participação cidadã no processo de integração europeia e o seu compromisso de aproximar a Europa dos seus cidadãos, buscando sempre o interesse comum por cima dos interesses individuais”. A cerimónia, presidida pelo Príncipe das Astúrias, foi testemunhada pelos chefes de governo de Portugal e de Espanha, Pedro Passos Coelho e Mariano Rajoy.
Indo para lá dos aspectos contingentes, históricos e meramente formais a registar, o mais relevante a reter do prémio agora entregue estará, provavelmente, nas palavras que a ocasião permitiu ao galardoado pronunciar. Quem teve oportunidade de seguir e meditar sobre a intervenção proferida por Durão Barroso, sob o peso histórico do Mosteiro de Yuste, cedo teve plena consciência que não íamos assistir a um discurso meramente protocolar ou de agradecimento formal pela distinção conferida. Deliberadamente, Durão Barroso quis ir mais longe e quis ir mais além – mais além, até, do que a circunstância podia exigir ou recomendar.
Perpassou por todo o discurso do ainda Presidente da Comissão Europeia uma clara intenção de aproveitar a oportunidade para realizar um balanço – diria que um primeiro último balanço – do que foram os seus dois mandatos à frente da Comissão Europeia, com particular ênfase colocado tanto nas dificuldades que se depararam no segundo mandato como, sobretudo, nas medidas e rumos adotados para enfrentar a crise que, de conjuntural, em determinado momento, ameaçou tornar-se estrutural e propagar-se a toda a União Europeia. E, dentro desta crise e de forma particular, a impropriamente chamada “crise do euro”. Por toda a orientação que esteve subjacente ao discurso proferido por Durão Barroso, conseguiu-se perceber que o ainda Presidente da Comissão Europeia já terá dado por adquirido que os seus dias à frente do executivo comunitário terminarão, definitivamente, a 1 de Novembro deste ano. E que o vaga e espaçadamente demonstrado interesse na renovação do mandato em curso, já será ideia totalmente abandonada e posta de lado pelo ainda Presidente da Comissão Europeia. Sem risco de muito erro, cremos que este discurso de Durão Barroso – este verdadeiro “discurso da abdicação” – equivale à primeira manifestação pública dessa consciência e à primeira assunção expressa da mesma. As movimentações que já se travam no quadro do próprio Partido Popular Europeu, com a proliferação de putativos candidatos à sucessão de Durão Barroso, parecem indiciar que a escolha dos populares europeus – que tem sido sucessivamente adiada e protelada – não recairá no Presidente em exercício. Jean-Claude Junker, o antigo Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças do Luxemburgo, decano dos líderes europeus, prefigura-se como o mais bem colocado e o mais bem posicionado para ser apresentado como o candidato do Partido à incumbência. E, a assim ser, teremos em Maio deste ano umas eleições para o Parlamento Europeu que terá subjacente – indireta e mediatamente – uma escolha para Presidente da Comissão Europeia a travar-se entre o luxemburguês Jean-Claude Junker e o alemão Martin Schulz. A opção não se afigurará – salvo melhor opinião – difícil de ser tomada….
Durão Barroso, por seu lado, sugere já ter compreendido e alcançado plenamente o que está em causa e o que se avizinha. Ele e quem o rodeia. Não por acaso ou por coincidência – para quem acreditar que existem coincidências na política…. – escassos dias após pronunciar o primeiro dos seus últimos discursos, é divulgada na política doméstica uma moção de estratégia partidária que a generalidade dos comentadores viu como destinando-se a afastar alguns da corrida a Belém e, ao mesmo tempo, constituir uma passadeira vermelha estendida ao atual Presidente da Comissão Europeia para corporizar uma candidatura presidencial. Se Bruxelas serviu de exílio dourado às responsabilidades governativas em seu tempo conferidas pelo eleitorado, Belém pode ser sempre a retaguarda de recuo do dito exílio. Nesse contexto, tanto o discurso como a moção apresentam uma sintonia que é impossível não saltar à vista de qualquer observador. Mesmo dos menos atreitos às teses conspirativas ou aos processos de intenções….
Para já, centremo-nos na sucessão em Bruxelas. É esse o tema que estará em cima da mesa nos tempos mais próximos e sobre ele talvez fosse prudente não haver distrações. Porque para Portugal não será indiferente o próximo presidente da Comissão Europeia ser Jean-Claude Junker ou Martin Schulz.