O Fundo de Resolução Bancária

Um dos elementos mais preocupantes da grave crise que começou a afectar a União Europeia a partir de 2008 prendeu-se com os problemas estruturais que conheceu o sector bancário em muitos Estados da União e, também e sobretudo, a estreita ligação existente entre as dívidas bancárias e as dívidas soberanas ou dos Estados-Membros. Foi para quebrar esta relação estreita (responsável, por exemplo, pelos resgates mais ou menos encapotados a Espanha e ao Chipre) que desde cedo pareceu consensual a necessidade de concluir uma verdadeira união bancária, no âmbito da união econó­mica e monetária. A união bancária assumiu-se, assim, como um pilar fundamental da UEM que se impunha desenvolver e concluir – que começou a ser negociada entre os Estados-Membros no quadro do Conselho para, de seguida, transitar para aprovação por parte do Parlamento Europeu. Ocorreu, todavia, o que era expectável e acabou por se confirmar – o acordo alcançado no quadro do Conselho, encerrando dura disputa entre a Alemanha, por um lado, e a Comissão Euro­peia, o Banco Central Europeu, a França e a Itália, por outro, veio, na prática, con­sagrar em absoluto as teses defendidas pela Alemanha, em detrimento de uma visão mais integradora e comunitária perfilhada pela Assembleia de Estrasburgo.
Em causa está, essencialmente, um dos principais aspectos da referida união bancária: o novo mecanismo consensualizado pelos Ministros das Finanças para a resolução de bancos (terminologia do jargão comunitário que pretende abranger as situ­ações de reestruturação ou liquidação de bancos falidos). Desde logo, no que diz respeito ao âmbito de aplicação do acordo alcançado, a Alemanha conseguiu um dos seus objectivos fundamentais – o mesmo apenas será aplicado a cerca de 130 bancos europeus (num universo que ultrapassa os 6000 bancos em toda a União), aqueles a quem se atribui uma importância “sistémica”, deixando de fora do processo de resolução europeia os seus bancos estaduais que continuarão a depender em exclusivo do seu controlo nacional.
Por outro lado, o acordo alcançado no âm­bito do Conselho prevê a criação de um mecanismo europeu que suporte os custos re­sultantes da reestruturação ou liquidação de bancos falidos – que operará após res­ponsabilização dos acionistas, dos credores preferenciais e dos grandes depositantes responderem por um mínimo de 8% do valor dos ativos do banco a reestruturar ou li­quidar – que, todavia, apenas deverá estar integralmente realizado em 2026, altura em que será dotado de um capital de 55MM€. Até essa data, até o referido fundo estar dotado da totalidade do seu capital, se surgir alguma situação de risco com algum banco de um Estado-Membro, será o contributo com que cada Estado for contribuindo para o capital do mesmo que terá a responsabilidade de “responder” ou “salvar” o re­ferido banco. Mostrando-se insuficiente a verba em causa, é ao Estado-Membro onde o mesmo se localizar que deverá que competirá alocar as verbas em causa, mesmo que à custa da sua dívida pública. Ora, com esta previsão, fica inviabilizada – pelo me­nos até 2026 – a quebra entre as dívidas bancárias e as dívidas soberanas. Aquele que era um dos principais objectivos da união bancária fica definitivamente comprometido. Por outro lado, este novo mecanismo, também por imposição alemã, assentará a sua estrutura de decisão num “conselho de resolução” onde estarão representados os representantes das autorida­des na­cionais e, em última análise, a palavra final sobre as suas decisões caberá sempre aos Ministros das Finanças da zona euro. E a sua matriz jurídica será prevista num tratado intergovernamental, a assinar pelos Estados-Membros da zona euro, à margem da legislação e do quadro jurídico comunitário – replicando o modelo já utilizado quer para o Tratado que instituiu o Mecanismo Europeu de Estabilidade quer para o Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na UEM. Ou seja, na sua essência, estaremos ante um processo eminentemente intergovernamental que se estruturará por completo à margem das instituições comunitárias. Parecendo questão de somenos e menor, há implicações técnicas e jurídicas de relevo resultantes da opção escolhida. Uma delas prender-se-á, naturalmente, com a possibilidade de o Tribunal de Justiça da União Europeia controlar, ou não, o respeito pelas normas do novo Tratado a negociar e a assinar.
No fundo e na prática, até 2026, o fundo de resolução bancária, supostamente pedra angular da união económica e monetária, mais não será do que a soma de um con­junto de fundos nacionais. Uma vez mais, a visão comunitária e integradora aparece-nos muito distante das decisões tomadas em Bruxelas, no quadro do Conselho da União Europeia.
E este facto veio permitir evidenciar um novo braço-de-ferro entre o Conselho da União e o Parlamento Europeu – donde, imediatamente, começaram a surgir os sinais indicativos da discordância da eurocâmara face ao que havia sido deliberado em sede de Conselho. Elisa Ferreira, a eurodeputada portuguesa que coordenou os trabalhos da Assembleia Parlamentar nesta matéria, foi assertiva: “O que queremos é que os contribuintes não sejam envolvidos nisto, mas também não quere­mos que um banco tenha diferentes condições de sobrevivência conforme está situado num Es­tado como o alemão ou holandês, português ou grego. Se temos uma supervisão única e um mercado interno [europeu], temos de ter condições semelhantes para operar uma resolução inde­pendentemente do sítio onde o banco está localizado. Senão estamos a regressar à estaca zero de onde quisemos sair”. Era difícil dizer mais e melhor.
Decerto – o facto de a decisão final sobre esta matéria depender do acordo do Parlamento Europeu deixa no ar a esperança de o projeto saído do Conselho da União poder ser alterado e corrigido. De contrário, a União terá perdido mais uma oportunidade num domínio tão sensível e tão determinante como a união bancária, pilar fundamental da união económica e monetária que já se viu carecer de urgente aperfeiçoamento. Uma vez mais será para o Parlamento Europeu que se virará a esperança de quem preconiza um modelo mais comunitário de aprofundamento do projeto europeu.

2013, Ano europeu em revista

Terminado o ano de 2013, aqui se deixa a respectiva revista europeia (de A a Z) para efeitos de memória futura e com tudo o que de subjetivo e aleatório pode envol­ver uma escolha e um exercício desta natureza:
Alemanha – O gigante económico da Europa da União fortaleceu, a cada dia que pas­sou, o seu poder político. Voluntária ou involuntariamente, é a um verdadeiro pro­cesso de germanização da Europa que assistimos, mais do que a um processo de euro­peização da Alemanha – enquanto os seus Estados parceiros oscilam en­tre o medo do fortalecimento desse poder e o receio de perderem o apoio que a Ale­manha lhes pode dispensar. Contradição que 2013 não contribuiu em nada para resolver. Bem pelo con­trário.
Barroso (José Manuel Durão) – Depois de um início de segundo mandato à frente da Comissão Europeia em que foi completamente ultrapassado pela lógica in­tergoverna­mental imposta pela Alemanha à União Europeia, recuperou algum pro­tagonismo directamente proporcional à aproximação do fim do seu mandato. Se o sonho comanda a vida, o sonho de um inédito terceiro mandato pareceu coman­dar a sua actuação. Pode ter despertado tarde da sua letargia.
Chipre – Chipre constituiu o exemplo mais traumático de resgates efectua­dos pela troika, neste caso devido a grave crise do sector financeiro e bancário da ilha. Não pelo valor do empréstimo concedido mas pelas condicionantes impostas pelos credores, que obrigaram depositantes nos bancos a suportarem parte dos custos da respectiva reca­pitalização. Pela primeira vez na história da UE ultrapassou-se uma linha vermelha e abriu-se um precedente perigoso – os depósitos bancários passaram a poder ser confiscados para contribuir para pagar erros de gestão bancária. O Parlamento de Nicósia ainda ensaiou opor-se à medida, mas a força da realidade acabou por se impor.
Dijsselbloem (Jeroen) – O socialista holandês que sucedeu a Junker na presidên­cia do Eurogrupo e que, não raro, se tem mostrado mais ortodoxo que os ortodo­xos alemães em decisões concretas que têm sido tomadas – de que, talvez, o meca­nismo de gestão de falências bancárias seja o exemplo mais acabado.
Eslovénia – A Eslovénia posiciona-se como um dos mais sérios candidatos a rece­ber novo auxílio financeiro das instituições europeias quando, na sequência dos resultados dos testes de ‘stress’ supervisionados pela UE, se constata que as ne­cessidades de re­capitalização da banca do país ascende a 4,8MM€, até junho de 2014.
Federalismo – Por oposição ao trilho intergovernamental constitucionalizado com o Tratado de Lisboa, é cada vez mais o caminho alternativo que parece poder tirar a União da letargia para onde foi encaminhada. Durante muito tempo constituiu a pala­vra maldita e o conceito tabu do projecto europeu. Tão só porque ousaram equipará-lo a outros modelos federais existentes. Também aqui a UE deverá inovar – e optando por uma via federal será seguramente uma via original e não duplicada de qualquer outra existente. Terá como componente o necessário reforço das instituições comuns, a respectiva relegitimação democrática, a recusa do modelo do diretório, a afirmação da via supranacional e o respeito pelo princípio da subsidiariedade. Em 2013 prefigu­rou-se, sem complexos, como um dos (poucos) caminhos possíveis a seguir para se ul­trapassar a crise que vivemos.
Grécia – Continuou a ser o país-problema da União Europeia. Com dois resgates e a caminho dum terceiro, cortes de dívida a credores particulares e enorme agita­ção so­cial cabe-lhe entrar em 2014 a presidir ao Conselho da União – com a res­ponsabilidade de demonstrar que um Estado pode estar em estado de emergên­cia financeira sem que isso signifique que abdica das suas funções políti­cas no quadro da União.
Hollande (François) – Iniciou o seu mandato como a grande esperança da esquerda eu­ropeia contra o austeritarismo ortodoxo germânico e em nome das políticas de cres­cimento económico, como caminho que a própria Europa devia seguir; encerra 2013 com a França sujeita à mais elevada carga de austeridade fiscal da V República e os ín­dices de popularidade mais baixos de qualquer chefe de Estado francês desde que há registos e medições dos mesmos. Pior saldo do ano – potencía o crescimento eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen a patamares nunca antes vistos nem alcançados pela extrema-direita gaulesa.
Irlanda – Termina 2013 anunciando que, finalizado o seu resgate, quer ver-se li­vre da troika e das instituições europeias com uma “saída limpa”, sem depender dos humores dos burocratas de Bruxelas, sem segundo resgate ou, sequer, sem essa incógnita cha­mada programa cautelar. Decerto – os juros a dez anos na or­dem dos 3%, uma almo­fada financeira de cerca de 25MM€ e as necessidades de finan­ciamento garantidas até meados de 2015 ajudaram a tomar uma atitude que objectivamente espantou quase tudo e quase todos.
Junker (Jean-Claude) – O democrata-cristão decano dos líderes europeus, talvez o mais europeísta de todos eles, resto sobrante da geração de Kohl e Mitterrand, dei­xou de ser Presidente do Eurogrupo e Primeiro Ministro do Luxemburgo (ape­sar de aqui ter ganho as eleições legislativas, ainda que só com maioria rela­tiva). Paradoxalmente, pode ser a oportunidade para um 2014 mais risonho, com a Presidência da Comissão Europeia ou a Presidência do Conselho Europeu.
Kenny (Enda) – O Taioseach (Primeiro-Ministro) irlandês viu-se catapultado para as lu­zes da ribalta europeia quando o plano de ajusta­mento que negociou e conseguiu im­por à troika terminou com uma “saída limpa”, sem necessidade de qualquer programa cautelar. Com discrição mas firmeza, sem subservi­ências nem seguidismos provincia­nos, liderou um país sob resgate com prudência e bom-senso. Os resultados viram-se. Declarou prescindir de novos apoios internacionais e granjeou reputação e credibili­dade suficiente para ser encarado como uma das mais fortes possibilidades para vir a suceder a Durão Barroso à frente da Comissão Euro­peia. Resta saber se o desejará.
Letta (Enrico) – O democrata-cristão, membro do Partido Democrático de centro-es­querda, salta para a primeira linha da política europeia ao conseguir formar governo em Itália, baseado numa coligação instável com o Povo da Liberdade de Silvio Berlus­coni. Teve o difícil encargo de suceder a Mario Monti, o eurocrata que liderou o go­verno de Roma entre Novembro de 2011 e Abril de 2013 restituindo-lhe a credibili­dade perdida sob a liderança de Berlusconi. Apostou inequivocamente na via europeia para rumo dos primeiros meses da sua governação.
Merkel (Angela) – A chanceler alemã, que traiu Helmut Kohl e desonrou o seu legado europeísta, foi uma das grandes vencedoras de 2013. A sua política ortodoxa e austeri­tária face ao sul da Europa em provação e de germanização da UE foi amplamente su­fragada pelos seus concidadãos em eleições internas. Cada vez mais governa mais a Europa sendo escolhida apenas pelos alemães. Nem a mudança de parceiro político lhe alterou os hábitos ou fez mudar o rumo. Nos sociais-democratas do SPD encontrou aliados para a sustentação de uma política europeia que ainda acredita que podem existir ilhas de prosperidade em mares de desesperança. Quando a desesperança der à costa da ilha germânica, o rumo será alterado. Até lá, vai mandando. Bruxelas e as demais capitais europeias vão obedecendo.
NATO – Ainda não foi em 2013 que a organização de defesa militar do ocidente logrou alcançar um nível de articulação satisfatório com a União Europeia em matérias de se­gurança e defesa. É um daqueles casos em que a responsabilidade não pode ser assa­cada à organização transatlântica. Se o pilar europeu da aliança não se mostra suficien­temente sensibilizado para o tema nem se consegue articular e coordenar satisfatori­amente entre si, dificilmente a União que formam se pode entender com a organiza­ção de defesa que, paradoxalmente, quase todos integram.
Orban (Viktor) – A Hungria, liderada pelo Primeiro-Ministro Viktor Órban, conseguiu saldar a dívida de 20MM€ que tinha para com o Fundo Monetário Internacional desde 2008, sete meses antes do prazo previsto. Com uma liderança frequentemente criti­cada pelas suas opções conservadoras, o Governo de Órban considerou que a Hungria vai conseguir financiar-se nos mercados financeiros internacionais depois do que cha­mou “uma luta pela liberdade de atuação do país”.
Portugal – Exemplo acabado e consumado das políticas erráticas concebidas e impos­tas pela troika, inicialmente acolhidas com entusiasmo por parte do go­verno, entusi­asmo que se foi perdendo à medida que o tempo foi passando. Quem se der ao traba­lho de comparar os números previstos para final de 2013 no memorando de entendi­mento original e aqueles que, de facto, se atingiram (em termos de défice, dívida pú­blica e desemprego, por exemplo) tem a noção clara da errância das referidas políticas austeritárias.
Quadro financeiro 2014-2020 – O Conselho e o Parlamento Europeu puseram-se de acordo relativamente ao quadro financeiro plurianual da UE. Denotou ambição pouca e ousadia nenhuma. Com orçamentos que continuam a ser inferiores a 1% do PIB co­munitário não é possível ousar sonhar qualquer aprofundamento das políticas comuns. Enquanto a UE não se dotar de meios financeiros suficientemente capazes, as suas ca­pacidades de intervenção estão limitadas e definitivamente cerceadas.
Rompuy (Herman Van) – O Presidente permanente do Conselho Europeu pareceu ga­nhar algum protagonismo à medida que a crise por que passou a UE em 2013 foi abrandando e foram surgindo ligeiros sinais de retoma económica. Pese embora esse facto, continuou por se perceber a utilidade do cargo e da função. E se o hábito não faz o monge, neste caso o monge não fez nem justificou uma função que veio, inequivo­camente, introduzir um elemento de confusão na estabilidade institucional da União Europeia. Terminará o seu segundo mandato em 2014.
Secessionismos e Separatismos – Constituem o pior legado que 2013 deixa a 2014: a marcação de referendos independentistas e separatistas em 2014 para a Escócia e para a Catalunha podem obrigar a União Europeia a defrontar-se com um problema novo em mais de 60 anos de projecto europeu – o da integridade territorial dos seus Es­tados-membros, que é como quem diz, da sua própria integridade territorial. Mais grave que isso, os referendos prometidos, a realizarem-se, podem constituir prece­dente sério para outras aspirações independentistas que se encontram apenas ador­mecidas.
Troika – Os coordenadores dos principais grupos políticos na Comissão Econó­mica e de Assuntos Monetários do Parlamento Europeu e, posteriormente, a pró­pria eurocâ­mara, decidem lançar um processo de inquérito à actuação da troika nos planos de res­gate lançados nos últimos três anos. A investigação pretende apu­rar, ainda, a “legiti­mação democrática das decisões tomadas” pela troika nes­ses processos.
Ucrânia – Não pertencendo à União, foi o palco onde se travou a última disputa entre a UE e a Rússia sobre as respectivas esferas de influência. Contra a vontade de milha­res que se manifestaram nas ruas, o governo de Kiev deu sinais de tombar para o lado de Moscovo, recusando associar-se à parceria com Bruxelas. Território de fronteira e zona de influência ambicionada tanto pela Rússia como pela União Europeia, protago­nizou o reavivar dos tempos da guerra-fria, onde a influência em cada palmo de ter­reno geoestratégico era disputada ao milímetro. Estando fora da União, por paradoxal que pareça, a Ucrânia pode vir a determinar muito do sucesso ou insucesso da sempre anunciada e nunca concretizada política externa e de segurança comum.
Vilnius – Foi na capital da Lituânia que ocorreu um dos maiores desaires da UE em ma­té­ria de política exterior comum no ano de 2013. A Cimeira da Parceria Oriental da UE com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, a Bielorrússia, a Arménia e o Azerbaijão ficou marcada pelo desacordo entre a Ucrânia – pressionada por Moscovo para não assinar qualquer acordo com a União – e a UE. Ao não assinar o acordo que marcaria a apro­ximação ucraniana à UE os resultados da Cimeira restringiram-se à assinatura duma primeira versão de acordo com a Geórgia e a Moldávia e um acordo de facilitação de vistos com o Azerbaijão. Foi pouco.
Xavier (Bettel) – O Presidente da Câmara da Cidade do Luxemburgo tornou-se o improvável Primeiro-Ministro do Grã-Ducado, após a realização de eleições legislativas em que Jean-Claude Juncker, apesar de liderar o partido mais votado, não logra alcançar a maioria absoluta, deixando o poder nas mãos de uma coligação governamental formada pelo Partido Democrático, o Partido Operário Socialista e Os Verdes.
Yousafzai (Malala) – Jovem paquistanesa de 16 anos que, baleada na cabeça pelos tali­bãs quando regressava da escola, recebeu o “Prémio Sakharov do Parlamento Europeu para a Liberdade de Consciência” perante o plenário da eurocâmara de Estrasburgo, apelando de forma vigorosa ao direito das crianças à educação.
Wharton (James) – Deputado conservador britânico, autor de um projeto de lei apro­vado pela Câmara dos Comuns – numa sessão em que a oposição trabalhista apenas participou no debate e esteve ausente da votação – destinado à realização de um refe­rendo sobre a permanência do Reino Unido na UE em 2017.
Zagreb – Foi nas ruas de Zagreb que os croatas assinalaram, em clima de festa, a 1 de Julho de 2013, a adesão do seu país à União que, assim, se tornou o 28º Estado-Membro da UE, numa altura em que esta atravessa a sua mais profunda crise desde a origem do projeto europeu.

Relegitimar a Comissão Europeia

As eleições para o Parlamento Europeu de 2014 ficarão marcadas por um facto novo, não verificado em nenhum ato eleitoral anteriormente efectuado para a eurocâmara (1979, 1984, 1989, 1994, 1999, 2004 e 2009) – os principais partidos políticos euro­peus, na decorrência do Tratado de Lisboa, comprometeram-se a apresentar, previa­mente ao ato eleitoral, a personalidade que proporão para o cargo de Presidente da Comissão Europeia. Este, nos termos dos Tratados, deverá ser eleito pelo Parlamento Europeu sob proposta do Conselho Europeu. Subjacente a estes dois momentos (a proposta do Conselho Europeu e a eleição pelo Parlamento Europeu) deverão estar, porém, os resultados das eleições para o Parlamento Europeu. Saúda-se, por isso, a inovação do prévio conhecimento da personalidade que cada partido político europeu tenciona apoiar para o cargo de Presidente da Comissão Europeia, sucedendo a Durão Barroso.
Fruto dessa decisão e deste compromisso, sabemos já que o grego Alexis Tsipras, líder do Syriza, foi designado candidato do Partido da Esquerda Europeia (PEE) à pre­sidência da Comissão Europeia durante o 4º Congresso do Partido realizado em Madrid; que o grupo político dos Socialistas e Democratas escolheu o atual Presidente do Parlamento Eu­ropeu, o alemão Martin Schulz, como o seu candidato ao mesmo cargo; que os libe­rais europeus escolherão entre o atual comissário europeu dos Assuntos Económicos, Olli Rehn, e Guy Verhofstadt, atual líder do Partido e antigo primeiro-ministro belga; e que o Partido Popular Europeu (PPE), atual força maioritária no Parlamento Europeu, escolherá no seu próximo Congresso, em Março próximo, o seu candidato de uma lista onde aparecem os atuais chefes de governo da Polónia, Donald Tusk, da Finlândia, Jyrki Ka­tainen, e da Irlanda, Enda Kenny, o antigo Presidente do Eurogrupo e ex-pri­meiro-mi­nistro luxemburguês, Jean-Claude Juncker, o atual comissário europeu do Mercado In­terno, o francês Michel Barnier, e o antigo primeiro-ministro letão Valdis Dombrovskis, não se devendo dar por adquirido que Durão Barroso já tenha arrumado a ideia de um terceiro mandato à frente da Comissão Europeia, sucedendo a si próprio.
Assim, as próximas eleições para o Parlamento Europeu não se limitarão a servir para escolher apenas os eurodeputados que cada país elegerá para a eurocâmara. Servirão, também, ainda que indireta e mediatamente, para escolher a personalidade que pre­sidirá à Co­missão Europeia que iniciará o seu mandato em Novembro de 2014.
Decerto: pese embora a evolução registada, continuamos longe do cenário que melhor serviria o projeto europeu com todas as vicissitudes por que o mesmo passa no mo­mento presente. Esse cenário exigiria, seguramente, um reforço do poder e das com­petências da Comissão Europeia, verdadeiro motor da integração europeia e autêntica guardiã dos tratados, uma valorização do pilar comunitário da União em detrimento da sua componente intergovernamental – e tudo isso deveria passar por uma profunda reforma institucional da União que contemplasse, designadamente, a eleição direta e por sufrágio universal do próprio Presidente da Comissão Europeia. Eleição que decor­resse em simultâneo com a eleição do Parlamento Europeu. E eleição que, conferindo legitimidade democrática direta ao líder do executivo comunitário, não deixaria ver essa legitimidade estendida ao próprio órgão a que este preside. Num cenário desses, a Co­missão Europeia aparece­ria relegitimada na sua própria democraticidade, os cida­dãos europeus seriam chama­dos a uma participação acrescida no próprio projeto eu­ropeu e a democracia ao nível supranacional sairia claramente reforçada.
Não podemos esquecer, claro, que uma tal evolução passaria, necessariamente, por uma reforma dos Tratados atualmente em vigor. Angela Merkel – pese embora tenha sido a verdadeira autora material do Tratado de Lisboa vigente, preparado na presi­dência alemã de 2007, dando apenas a possibilidade a José Sócrates de o encerrar e fi­car com os respectivos louros e a fotografia da praxe – já por diversas vezes tem sus­tentado a necessidade de uma revisão dos Tratados tal qual os mesmos se apresen­tam. Não haja, porém, nessa matéria, quaisquer dúvidas – não é duma “revisão alemã” dos Tratados que a União mais precisa. Uma revisão saída ou inspirada pela chancela­ria de Berlim equivaleria, seguramente, a uma reforma que afirmaria a via intergover­namental europeia, que afirmaria a supremacia do poder dos Estados-membros sobre o poder das instituições comunitárias, que tenderia a fortalecer o papel e a atuação do Conselho e do Conselho Europeu em desfavor do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, que criaria as condições para a afirmação do diretório europeu onde se afirma e privilegia o poder dos grandes Estados sobre os restantes (como ainda se viu, há poucos dias, com as linhas gerais da reforma do mecanismo de liquidação dos ban­cos, pedra angular da muito desejada mas pouco conseguida união bancária). A revisão dos Tratados que melhor servirá a União e o projeto que lhe está subjacente deverá apontar no sentido contrário, reforçando as instituições comunitárias, apostando na sua legitimação democrática, e aprofundar a dimensão supranacional da União.
Essa seria, em nossa opinião, a reforma que deveria ser encetada. Em nome do ideal europeu e do que resta do projeto dos pais fundadores que souberam mobilizar e ca­talizar vontades para edificar o maior projeto de paz e prosperidade que a Europa co­nheceu em toda a sua secular história.
Post-scriptum: para todos os leitores que semanalmente leem esta coluna, predomi­nantemente consagrada às questões que fazem a atualidade europeia, votos de um excelente ano de 2014!

O drama do cautelar

Ficou o país suspenso em torno da recente decisão do Tribunal Constitucional de julgar inconstitucional a lei de convergência de pensões que ia reduzir em 10% o valor das aposentações da CGA que já foram formadas e se encontram em efectivo pagamento quando, outro assunto igualmente importante, apareceu relegado para o domínio do esquecimento sem ter sido completamente esclarecido ou resolvido. Antecipando em algumas horas as decisões dos juízes do Palácio Ratton, e com isto prestando-lhes um inestimável favor ainda que involuntariamente, o Presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, veio declarar que, terminado este programa de assistência em vigor, Portugal não estaria em condições de se financiar autonomamente nos mercados internacionais e precisaria sempre dum programa cautelar de apoio ao seu financiamento externo. Em síntese, a “saída limpa” e à Irlandesa deveria ter-se por absolutamente excluída. A oposição interna veio, de imediato, exigir que o Primeiro-Ministro revelasse que contactos existem em vista da negociação desse programa cautelar. E Passos Coelho, no Parlamento, declarou solenemente que, de momento, não existem quaisquer negociações formais (sublinho, “formais”) visando a definição daquele programa cautelar. Numa apreciação sumária destas posições poderíamos ser levados a concluir que alguém estaria a faltar à verdade. Por uma vez, porém, creio não ser de excluir a hipótese e a possibilidade de todos estarem a falar verdade.
Mario Draghi limita-se a constatar o óbvio – com taxas de juro a dez anos sustentadamente acima dos 6%, é inviável o financiamento do Estado nos mercados internacionais. É uma taxa quase equivalente ao dobro daquela que é cobrada à Irlanda, a que acresce o facto de, contrariamente ao que acontece com o governo de Dublin, Portugal não ter uma almofada financeira de cerca de 25MM€ e o seu financiamento externo garantido até meados de 2015. Num cenário destes, é absolutamente compreensível que Draghi verbalizasse o óbvio. Portugal terá necessidade de continuar a ser apoiado para lá do fim do actual programa de assistência financeira. O BCE sabe isso e o governo português também o sabe. E sabendo-o é normal que diligencie no sentido de preparar o programa que sucederá ao fim do atual resgate. Quando a oposição reclama informações nesse sentido, está a pedir o óbvio – detalhes sobre um programa que se afigura inevitável e incontornável e que é normal que se comece a negociar ainda que de forma informal. Por isso, também o Primeiro Ministro pode estar a falar verdade quando afirma que, de momento, formalmente, não existem quaisquer negociações para a concepção de um programa cautelar que se suceda ao resgate em curso. Repare-se que, em momento algum, Passos Coelho negou conversações informais ou exploratórias que conduzam ao referido programa cautelar. Por uma vez, todos podem ter falado verdade e o que, aparentemente, seria contraditório, podem ser as duas faces duma mesma moeda.
E essa moeda pode ter por nome programa cautelar – aquela verdadeira incógnita que se sucederá ao programa de ajustamento que se concluirá em meados de 2014 e da qual, convenhamos, pouco ou quase nada se sabe. Pior – realidade que, pela vez primeira, será testada com Portugal. Como, certeiramente, afirmou o Ministro Marques Guedes quando lhe pediram para comentar a saída limpa anunciada por Dublin: o pior é que a partir de agora perderemos quaisquer referencias para negociar um programa cautelar. E como explicitou o Ministro irlandês da Irlanda quando veio recordar que o seu país não quis ficar mais à mercê das inovações (e invenções) das instituições europeias como foi acontecendo ao longo das avaliações do respectivo programa de ajustamento.
De uma coisa poderemos estar certos – não será com o fim do programa de ajustamento se colocará ponto final na era de austeridade que tem castigado o país. Mesmo que nos livremos de um segundo resgate internacional, traduzido na entrega de um envelope financeiro contra o compromisso de um conjunto de medidas de consolidação orçamental, o programa cautela que está ao virar da esquina, envolvendo apenas a União Europeia (através da Comissão Europeia) e o Banco Central Europeu – e já não o Fundo Monetário Internacional – consistirá no estabelecimento de uma rede de proteção que poderá ser accionada se e quando as condições dos mercados financeiros internacionais se mostrarem particularmente adversas, através dum específico programa de compra de dívida pública, mas nunca deixando de estar associado a um forte condicionalismo político e económico-financeiro. Por muitos relógios que se ponham a funcionar, pondo-os a andar de trás para frente e contando o tempo ao contrário, exige-se verdade e transparência em quem tem o encargo de nos governar. E essa verdade e essa transparência mandam e obrigam a não enganar os incautos nem contar a realidade de forma distorcida. Transmitir a ideia que a partida da troika significará o fim da austeridade ou o recuperar integral de uma soberania pretensamente perdida quando nos colocámos nos braços das instituições internacionais, não corresponde à verdade, não é correcto nem é exacto.
Infelizmente, para todos nós, à troika suceder-se-á, na melhor das hipóteses, a assinatura dum programa cautelar que é um mar de interrogações e uma imensa incógnita, que conhecerá as suas especificidades igualmente dramáticas, os seus condicionalismos seguramente recessivos e manter-nos-á num estado de permanente vigilância e observação. Dessa realidade dificilmente escaparemos. E este é um daqueles casos em que a troca de argumentação é, de todo, desnecessária. O tempo, principal e inapelável juiz, se encarregará de confirmar ou infirmar a previsão que aqui deixamos.

Secessionismos europeus

Vão conturbados e agitados, e não raro paradoxais, os tempos por esta Europa que teima em afirmar-se como sendo a da União, mas onde os sinais mais visíveis parece apontarem em sentido radicalmente diferente, de desunião e de crise, de marcha acentuada para o empobrecimento, de inversão do caminho da história. Esta crise que afecta o continente europeu, de resto, mais não é do que a expressão mais evidente da crise que afecta o Ocidente – de que a Europa foi durante muito tempo o rosto mais expressivo – neste tempo de “outono e falta de bússola”, para parafrasearmos o título da mais recente obra que nos é legada por Adriano Moreira. Falta de bússola que equivale a uma dramática ausência de uma escala de valores perceptível e compreen­sível e à proliferação de teses e teorias relativistas, sempre dispostas a tudo questionar e a tudo pôr em causa. Um dos mais recentes perigos com que esta Europa se está a defrontar provém dos riscos e dos perigos do fenómeno secessionista que parece querer pôr em causa a uni­dade de muitos Estados tal como os conhecemos no momento presente.
Na passada semana o Presidente da Generalitat – o governo autonómico da Catalunha –, Artur Mas, anunciou à Espanha e ao mundo que, no dia 9 de Novembro de 2014, o seu governo tenciona promover um referendo aos catalães cuja primeira pergunta será: “Quer que a Catalunha seja um Estado?”. E a que, em caso afirmativo, se seguirá uma segunda questão: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente?”. Não há memória, nos tempos recentes, de este movimento autonomista/independentista ter chegado tão longe e ter causado tamanha proporção. Decerto – as autoridades espa­nholas – com o Presidente do Governo, Mariano Rajoy, secundado pelo líder da oposi­ção, Alfredo Pérez-Rubalcaba – vieram, de imediato, declarar que o referendo não se realizaria, por evidente e flagrante violação da Constituição espanhola que defende a unidade do Estado autonómico e chega ao ponto de ficcionar a existência de uma “Na­ção espanhola”, mormente no seu artigo 2º, que tem uma redação tão abrangente quanto controversa quando afirma que “La Constitución se fundamenta en la indisolu­ble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. A questão que merece, todavia, ficar para reflexão prende-se com as sementes que a iniciativa pode deixar e com o grau de ger­minação que podem alcançar. Mas o facto não é inédito nem original.
Três semanas antes, a 26 de novembro, em Glasgow, o líder do governo escocês, Alex Salmond, apresentou o seu livro branco sobre a independência da Escócia, tendo por referência o referendo sobre a independência do país, marcado para 18 de setembro de 2014. Alex Salmond, que é a favor do “sim” ao referendo, veio garantir que a Escócia tem “um grande potencial” enquanto país, ressalvando sempre, porém, que o mesmo teria de passar sempre por uma pertença à União Europeia. Curiosamente, ou talvez não, foi o Presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, quem se apressou a vir de­clarar que se oporá à adesão da Escócia à União Europeia caso os escoceses optem pela independência. Como parece óbvio, dirigia-se a Glasgow mas falava para Barce­lona.
Num ponto, porém, os discursos catalão e escocês convergem – ambos anseiam por se sepa­rar dos Estados onde estão integrados explicitando, porém, a respectiva vincula­ção ao ideal e ao projecto europeu corporizado na União Europeia. Como já algumas vezes ti­vemos oportunidade de anotar, este é um dos mais fascinantes paradoxos do nosso tempo: pese embora a profundíssima crise que atravessa, seguramente a maior desde a sua fundação, o projecto comunitário continua a exercer enorme fascínio e imensa capacidade de atracão relativamente aos Estados que não o integram. E mesmo rela­tivamente àqueles que, ainda não sendo Estados, aspiram a sê-lo e veem a pertença à União Europeia como um verdadeiro seguro ou caução que assegure e mantenha essas independências ansiadas. Fenómeno, de resto, que não é novo – quando ruiu o Muro e implodiu a influência soviética no leste europeu, foi sob a protecção das organizações ocidentais (primeiro a NATO, logo depois a União Europeia) que as recém-recuperadas soberanias se quiseram acolher. As novas democracias foram protegidas mas o projecto europeu ficou imensamente debilitado.
Decerto – quem recordar o passado recente não poderá deixar de lembrar que a pró­pria União Europeia, e a esmagadora maioria dos seus Estados membros, muito por influência directa dos Estados Unidos (que na sua guerra contra o terrorismo queriam deixar transparecer que a mesma não era contra os Estados islâmicos), abriram as por­tas de par em par a este caminho perigoso quando reconheceram a independência do Kosovo, separando-o da Sérvia com base unicamente na uniformidade étnica, sem cu­rar de averiguar nem da viabilidade do novo Estado (militarmente defendido pelos norte-americanos e economicamente sustentado pela União Europeia) nem do poten­cial efeito contagio que tal independência podia suscitar.
Mas como a realidade se nos impõe, eis a Europa de 2014 confrontada, no mínimo, com duas crises secessionistas que poderão servir de rastilho para outras, semelhantes e não menos legítimas aspirações independentistas – do País Basco ao desmembra­mento da Bélgica, da Sicília à Sardenha, passando por outras incontáveis aspirações nacionalistas que se encontram adormecidas um pouco por essa Europa fora, com par­ticular ênfase nos territórios do antigo poder imperial soviético. Era, diria, o último problema com a Europa da União se deveria preocupar e confrontar nos tempos de emergência que atravessa. Paradoxalmente, porém, tudo leva a crer que será mais um dos problemas com que teremos de nos defrontar, a somar aos muitos já existentes.