A caminho do reconhecimento do Kosovo

1. As movimentações político-diplomáticas – e até partidárias – que ocorreram nos últimos dias deixam antever que o governo estará prestes a reconhecer a independência do Kosovo – na esteira do que já aconteceu com a maioria dos Estados-Membros da UE. O que não significa, necessariamente, que seja a decisão mais correcta ou mais acertada. Impõe-se, portanto, uma reflexão mais alargada sobre o que verdadeiramente está em causa quando se aproxima mais um reconhecimento do Estado kosovar.
2. Comecemos pela questão jurídica. Independentemente do número de Estados ou da dimensão das correntes de opinião que sustentem o reconhecimento internacional do novo Estado, estimulado e incentivado pela administração norte-americana empenhada em provar que a sua luta contra o terrorismo islâmico não é uma luta contra o islamismo ou Estados islâmicos, ainda ninguém conseguiu provar ou demonstrar que esse reconhecimento, assente numa proclamação unilateral do que até à data era um território reconhecido como parte integrante de outro Estado, foi feito segundo as mais elementares regras do direito internacional público. E, nessa medida, dúvida alguma poderá subsistir quanto à ilegitimidade jurídica desse acto – desse acto que, recorde-se, ainda não foi reconhecido pela esmagadora maioria dos Estados das Nações Unidas, mas que pelos vistos o governo de Lisboa se prepara para reconhecer, alterando a posição cautelosa que Portugal vinha assumindo na matéria até este momento, sem que se perceba muito bem qual ou quais as razões ou os motivos que poderão determinar tal alteração.
Ora, à medida que cada novo Estado vai reconhecendo a situação juridicamente irregular que redundou na proclamação unilateral da independência do Kosovo, é um cada vez mais sério e grave precedente que se abre e se vai sedimentando na comunidade internacional – precedente tão mais sério e tão mais grave quanto, doravante, qualquer Estado que conheça problemas de minorias étnicas no seu seio não se poderá dizer livre de conhecer uma situação semelhante. Na Europa, da nossa vizinha Espanha (lembremo-nos do País Basco ou da própria Catalunha, cujo estatuto autonómico começa por proclamar que a Catalunha é uma nação….) ao longínquo Cáucaso (onde a recente crise entre a Geórgia e a Rússia regressada à sua ancestral vocação imperial a propósito das regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia deveria ter servido de alerta suficiente para as lideranças ocidentais), passando pela região central e historicamente complexa dos Balcãs, poucos serão os Estados que se poderão considerar a salvo de idêntica ameaça à sua integridade territorial.
3. Algo de semelhante se passa no plano económico. É comummente aceite que a independência do Kosovo reconhecida e aceite pela comunidade internacional em nada contribuirá para a emergência de mais um Estado europeu viável na conturbada região dos Balcãs nem, tão pouco, contribuirá para acalmar e pacificar uma das regiões da Europa onde mais necessária é uma política de estabilização verdadeiramente assumida e desenvolvida por toda a União Europeia. Condenado a oscilar entre a condição de um protectorado da União Europeia ou um mero prolongamento da Albânia, as estatísticas não mentem e afirmam inequivocamente a inviabilidade do novo Estado, independentemente do número de declarações de reconhecimento de que tenha beneficiado. Em bom rigor, o novo Estado não é capaz, por si só, de afirmar e exercer as funções básicas de soberania que estão associadas ao próprio conceito de Estado. Serão poderes estrangeiros (leia-se – a Europa da União e os europeus) que pagarão a factura da independência, garantirão a integridade do território, armarão o exército e formarão a polícia, institucionalizarão os mecanismos de justiça, numa palavra, garantirão a viabilidade do novo Estado.
4. Analisemos, então, a vertente política do problema – aquela que se afigura mais complexa e mais controvertida. E comecemos por reconhecer que a questão kosovar assume contornos de especial gravidade para a Sérvia. Reconhecer o Kosovo, sobretudo tendo por base uma declaração unilateral de independência juridicamente inválida, significa, objectivamente, hostilizar Belgrado. E nesta fase talvez fosse mais prudente cativar a Sérvia para a causa europeia do que, hostilizando-a, empurrá-la para os braços abertos de uma Rússia desejosa de voltar a exercer a sua influência em regiões cada vez mais alargadas do continente europeu…. Se quisermos ter uma noção do que significa para a Sérvia a independência do Kosovo, admitamos o seguinte exemplo académico: imaginemos que uma qualquer comunidade estrangeira, etnicamente homogénea, vinha Europa-fora instalar-se na zona de Guimarães, berço da nossa nacionalidade e que, ao fim de alguns anos, baseada apenas da sua permanência nessa zona do território nacional e na sua homogeneidade étnica, proclamava ou reivindicava a independência unilateral desse território. Como nos sentiríamos? É assim que os sérvios se sentem e encaram a independência do Kosovo.
Mas este problema do Kosovo, reconheça-se, é em tudo fruto de uma errada política europeia que não soube lidar nem estava preparada para lidar com o derrube do muro de Berlim e a aspiração de muitos Estados do ex-leste europeu em acederam à sua verdadeira e plena independência. Uma das situações onde mais tragicamente essa falta de preparação europeia se revelou foi em todo o processo que conduziu ao desmantelamento da ex-Jugoslávia – com o papel liderante da Alemanha a reconhecer apressadamente novas Repúblicas saídas daquele desmantelamento. Num processo que, visto à distância, só pode envergonhar a Europa, a da União e a outra, porquanto se caracterizou por situações e conflitos dos mais fratricidas que o velho continente conheceu após a segunda guerra mundial, onde não faltaram guerras civis, genocídios e limpezas étnicas, levando à intervenção militar da NATO, sem mandato da ONU, que na altura poucos reclamaram, por se ter entendido que se impunha acabar com as permanentes violações dos direitos humanos por parte dos poderes e dos exércitos e milícias em confronto. Ora, a questão fundamental não se resolveu até hoje, nem é suposto que se resolva doravante, com a multiplicação de entidades políticas estaduais, incapazes de exercerem as competências que supostamente deveriam possuir.
A multiplicação dessas entidades políticas estaduais, numa região com a história dos Balcãs, em lugar de contribuir para a pacificação e a integração das diferentes comunidades que ali se foram formando e localizando, em vez de ajudar a resolver os múltiplos problemas que por ali ainda pairam, corre o risco sério de os potenciar e de reabrir feridas ancestrais que a prudência mandaria que fossem cicatrizadas em vez de reabertas.
4. Por tudo isto enfileirar agora no rol dos que apressadamente quiseram reconhecer o novo Estado kosovar – sem que situação alguma o reclame ou haja sido modificada nos tempos mais recentes e quando tal reconhecimento não foi efectuado no momento em que os Estados mais céleres se apressaram a fazê-lo logo após a respectiva declaração unilateral – não só não contribui politicamente para serenar os ânimos na região dos Balcãs como, sobretudo, pode ser interpretado como um sinal errado do caminho que deve ser seguido e trilhado pela União Europeia face àquela região do continente. Para além de demonstrar, uma vez mais, o quão longe a comunidade internacional ainda se encontra de possuir o estatuto de uma verdadeira comunidade de direito. Para tristeza de todos os que cultivam o direito internacional, acreditando nos seus mecanismos e nas suas regras, e para gáudio dos que não se cansam de proclamar que as relações internacionais continuam a ser, antes de tudo e apesar de tudo, relações de força e de poder.

O pacto europeu para a imigração e o asilo

A agenda europeia da pretérita semana ficou marcada pela obtenção do acordo entre os Ministros do Interior dos Estados-Membros da União Europeia em torno do projecto de Pacto europeu para a imigração que deverá ser solenemente aprovado na próxima cimeira do Conselho Europeu. O documento, consensualizado em sede do Conselho de Ministros, teve necessidade de conciliar diferentes posições e diferentes enfoques que o tema suscita nos vários Estados-Membros da União. Convém, por isso, retornar à génese do tema para tentar perceber o que efectivamente está em causa com a obtenção do acordo político cujas bases foram seladas em Bruxelas.
Como afirmou há cerca de um ano o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, quando respondia a perguntas sobre temas europeus no Parlamento português, faz cada vez menos sentido que um projecto político como a União Europeia, congregando actualmente 27 Estados-Membros, e caracterizando-se, entre outras coisas, por estabelecer uma completa liberdade de circulação de pessoas dentro do seu espaço interno, com abolição das fronteiras internas, possua 27 políticas nacionais de imigração total e completamente diferentes, em que cada um dos Estados-Membros, livre e autonomamente, possa fixar as regras de acesso e permanência no seu território a cidadãos de países terceiros não comunitários. É que, pese embora a essência das políticas de imigração ser e permanecer responsabilidade de cada um dos Estados-Membros da União, as suas consequências eram e são susceptíveis de se reflectir em todos os demais Estados-Membros. Basta pensar que, uma vez autorizado a permanecer num qualquer Estado-Membro da União Europeia, qualquer cidadão de um Estado terceiro não comunitário, qualquer «imigrante», se poderá deslocar – e localizar – praticamente sem restrições, e sem possibilidades de controle, para qualquer outro Estado comunitário, beneficiando dos supracitados princípios da livre circulação de pessoas e da abolição das fronteiras internas. Percebe-se, assim, que apesar de estarmos ante uma questão política sensível que se coloca individualizadamente a cada uma das 27 administrações nacionais, estamos também perante um problema de inegável contorno supranacional e dimensão europeia.
Para se ter uma percepção clara da realidade que estamos a abordar, será sempre necessário ter presente que, em menos de 15 anos, o número de imigrantes legais que chegam anualmente à Europa triplicou, passando de 590 mil em 1994 para 1,8 milhões em 2007, segundo o Eurostat; e estes números não consideram os clandestinos que, segundo estimativas da Comissão Europeia, representam cerca de 25% (4,2 milhões de pessoas) do número de imigrantes legais – 21 milhões de estrangeiros – que entre 1994 e 2007 chegaram à União Europeia.
Ora, a presidência de turno francesa da União Europeia assumiu a responsabilidade e o encargo de tentar resolver o problema e inseriu-o no seu programa semestral e na sua agenda semestral de prioridades. Cedo, porém, concluiu pela dificuldade de encontrar um consenso político sobre temática assaz melindrosa e matéria tão controvertida. O lançamento da discussão permitiu evidenciar a multiplicidade de visões que emanam de diferentes concepções e diversas visões e valores presentes no debate político europeu. Foram chamados à discussão a tradição humanista e personalista europeia para justificar a maior liberdade e quase completa liberalização das regras relativas à imigração de cidadãos de Estados terceiros para Estados-Membros da União Europeia; foram evocadas e invocadas questões atinentes à segurança nacional dos Estados europeus para sustentar a necessidade de mais e maiores controles nacionais limitativos do acesso de imigrantes aos Estados europeus; em época de crise económica e financeira, não faltou mesmo quem recorresse a argumentos economicistas e à repercussão e influência da presença e da contribuição de imigrantes para os orçamentos nacionais para dosear o grau de flexibilidade que as legislações europeias em matéria de imigração deveriam possuir. E as temáticas do desemprego não foram alheias ao debate, não faltando quem recordasse o número de desempregados existentes na Europa para o relacionar com o número de imigrantes que a Europa já hoje acolhe. Se é verdade que o espírito europeu se afirma por ser plural, que é liberdade mas também conhece a opressão, que é direito sem deixar de ter sido força, que é razão mas que também já foi mito – poderemos, então, concluir que tais contradições, intrinsecamente europeias, estiveram por demais evidentes quando a Europa da União se predispôs a discutir a temática da imigração.
E foi sob uma bandeira securitária ou restritiva que o Presidente Sarkozy lançou o tema, em Junho passado, submetendo-o à discussão dos seus parceiros europeus. Logo aí as divergên-cias saltaram para cima da mesa das negociações – e a proposta francesa acabou por ser flexi-bilizada sob pena de não existir consenso entre os 27 e inexistir um compromisso político capaz de consubstanciar as necessárias regras de compromisso entre todos os Estados-Membros da União Europeia. Esse compromisso acabou por ser alcançado em torno da consagração de regras comuns para regular a imigração laboral, reforçar os controles nas fronteiras externas da União, facilitar o regresso aos países de origem de quem tenha conseguido entrar na Europa e harmonizar as exigências para os pedidos de asilo. A regularização de imigrantes clandestinos acabou por ser um dos centros da polémica, acabando por ser acolhido um princípio de regularização de imigrantes clandestinos por questões económicas.
A questão do Pacto sobre a Imigração, todavia, não pode nem deve ser percebida de uma forma isolada – deve ser tratada e enquadrada conjuntamente com dois outros documentos que recentemente a União Europeia se predispôs a adoptar – o chamado «blue card» e a directiva do retorno.
O «blue card» – inspirado no modelo do “green card” norte-americano – pretende ser mais um elemento para competir com os Estados Unidos na atracção de imigrantes altamente qualificados, constituindo, de facto, uma licença de trabalho e residência comum a todos os países da UE, ainda que sujeita a regras e critérios apertados.
A directiva do retorno, por seu turno, aprovada no passado mês de Junho pelo Parlamento Europeu, no meio de significativa polémica e controvérsia, veio uniformizar a forma como os 27 tratam a imigração ilegal, uniformizando a legislação da maioria dos países da União Europeia. Entre as várias medidas aprovadas, os Estados-Membros ficaram incumbidos de fornecer uma assistência jurídica gratuita aos imigrantes, conforme às disposições previstas pelas suas legislações ou às regras previstas pela legislação europeia para os refugiados, estabelecendo-se um prazo máximo durante o qual os imigrantes ilegais podem ficar detidos, que será de seis meses, ampliáveis a 18 em casos excepcionais.
Ora, todas estas medidas – (i) pacto para a imigração e asilo, (ii) blue card e (iii) directiva de retorno – devem ser percebidas e compreendidas de uma forma integrada e como tentativa da União Europeia de controlar os fluxos migratórios que demandam as suas fronteiras externas e cuja resposta exige que sejam levados em consideração uma multiplicidade de valores e de princípios, não raro contraditórios, mas integrantes, todos eles, do espírito e da alma europeia. Na certeza de que, para questões transnacionais, não existem respostas nacionais que se mostrem suficientemente aptas e adequadas à sua solução.

A UE, a Rússia e a crise no Cáucaso

A recente crise na geo-politicamente sensível região do Cáucaso constituiu mais uma prova – se necessário fosse encontrá-la – do quão impreparada se encontra ainda a Europa da União para lidar com as situações controvertidas que ameaçam surgir um pouco por todo o globo. A necessidade de convocar de urgência uma Cimeira extraordinária do Conselho Europeu para discutir uma matéria que seria suposto caber na competência da presidência (francesa) de turno da União, os resultados produzidos por essa mesma Cimeira e constantes do seu comunicado final, o apagamento da figura do Alto Representante Javier Solana (uma vez mais…) no desenrolar dos acontecimentos e, até, o prudente silêncio a que se remeteu a Comissão Europeia de Durão Barroso, atestam as dificuldades de Bruxelas em concertar e executar uma posição consensual sobre uma crise que não esperava e que afecta uma das regiões estratégicas mais importantes para o abastecimento energético de uma parte substancial dos Estados membros da União. Por outro lado, o crescente alargamento em que a União Europeia mergulhou ao longo das duas últimas décadas, trouxe à tona da água a multiplicidade de interesses divergentes e não raro contraditórios que, hoje em dia, tipificam o chamado interesse comum europeu, impedindo a estruturação de uma verdadeira política externa europeia. A evidência dessa multiplicidade ficou bem expressa não só no facto – inédito nos anais da União – de cinco chefes de Estado e de governo de Estados membros haverem marchado em Tiblissi em manifestação popular de apoio a Saakashvili como, igualmente, no diferente grau de exigência e tipo de reacção que diferentes Estados membros, sobretudo os da nova Europa, mais tributários e dependentes da respectiva relação com Washington, reclamaram que fosse adoptado relativamente a Moscovo.
Por outro lado, a posição recentemente adoptada por um número importante desses mesmos Estados em matéria de reconhecimento da independência do Kosovo também criou um precedente que, longe de facilitar, complicou de sobremaneira qualquer posição que viesse a ser tomada quanto ao fundo da questão da crise que eclodiu no Cáucaso. Indo ao cerne da questão, é-se forçado a reconhecer que nenhuma razão de facto ou de direito recomenda um tratamento diferenciado para a secessão da Ossétia do Sul em relação à Geórgia ou para a secessão do Kosovo relativamente à Sérvia. E a coerência – que é um valor que nem sempre está presente nas relações internacionais – obrigará a reconhecer que a postura Ocidental face ao Kosovo não deve ter sido alheia ao eclodir da conflitualidade no Cáucaso – a Geórgia desencadeou o conflito apressando-se a colocar um ponto final na ameaça secessionista e é impossível a Ossétia do Sul (e talvez também a Abkázia) não terem encarado a tergiversação ocidental face à integridade territorial da Sérvia como um convite ao aprofundamento da sua aspiração independentista. Incongruência, de resto, que, em sentido contrário, não deixou de ficar evidente na posição assumida por Moscovo – ao não reconhecer a independência do Kosovo mas ao fazê-lo relativamente às regiões secessionistas da Geórgia, Medved evidenciou que também de dois pesos e de duas medidas se fazem as relações internacionais modernas, ao mesmo tempo que deixava bem claros os fundamentos da nova política externa russa que, pelos vistos, na tradição da melhor escola soviética, não dispensa o seu cordão sanitário e de segurança feito de muitas das repúblicas outrora soviéticas a quem o novo poder russo não reconhece a necessária e suficiente autodeterminação para definirem os seus rumos políticos.
No cruzamento de todos estes interesses contraditórios e de aspirações potencialmente conflituantes poder-se-á encontrar o fundamento para mais uma (falta de) reacção europeia à crise que desta feita eclodiu no Cáucaso.
E se há ilações que a mesma crise nos permite retirar com razoável dose de certeza e de segurança, elas apontam no sentido de reconhecer que, (i) face aos instrumentos legais de que actualmente dispõe, a Europa da União não pode ambicionar a ter uma efectiva palavra no mundo em situações controvertidas e de crise, o que reclama com urgência renovada a aprovação de novas regras tais como as que se apresentam no Tratado de Lisboa ou em documento similar que vier a ser aprovado; e que (ii) nessas mesmas situações, sobretudo nas que se localizem na Europa, a Europa e o mundo têm que voltar a contar com o papel e o interesse estratégico de uma nova Rússia, cada vez mais oligárquica e cada vez menos democrática.

Os desafios de Sarkozy

Quando se aprestava para dar início à sua presidência rotativa e de turno da União Europeia, no passado dia 1 de Julho, o Presidente francês Nicolas Sarkozy sabia que tinha pela frente o enorme desafio de tentar reverter a situação resultante do referendo irlandês sobre o Tratado de Lisboa – na esteira do que havia sido acordado na última Cimeira do Conselho Europeu. Esse era, à partida, o grande desafio político com que a França se defrontava – numa cruel ironia da história que depositava nas mãos francesas a resolução de uma crise institucional que teve o seu primeiro momento mais visível no exacto momento em que essa mesma França recusou, também por referendo popular, ratificar o célebre Tratado Constitucional europeu.
Não estaria, seguramente, era na mente do Presidente Sarkozy o «efeito dominó» que a votação de Dublin provocou no exacto dia em que a Presidência da União mudava: (i) o Presidente polaco Lech Kaczynski, anunciou que não assinaria o Tratado de Lisboa, sustentando que ele está agora “sem substância” depois da recusa dos eleitores irlandeses a ratificá-lo; (ii) o Presidente da República Checa, Vaclav Klaus deu sinais de poder seguir idêntico caminho, demonstrando compreensão para com a atitude do seu homólogo polaco; e, como se tudo não bastasse, (iii) o Presidente da República da Alemanha, Horst Köhler, anunciou que não assinaria a lei de ratificação do mesmo Tratado sem que o Tribunal Constitucional alemão se pronunciasse sobre a sua compatibilidade com a lei fundamental de Berlim, nomeadamente em matéria de salvaguarda de competências do Bundestag. Pior que tudo – em lado algum está escrito que este movimento súbito de reserva ao Tratado de Lisboa se fique por aqui e que não venham a ser mais os líderes europeus que venham pôr em causa o documento que assinaram, que o mesmo é dizer, a palavra que deram. O que demonstra à saciedade que não foi preciso chamar os cidadãos a pronunciarem-se sobre o Tratado de Lisboa para que o seu êxito e sucesso fosse posto em causa e a sua entrada em vigor fosse ameaçada e, pelo menos, desde já protelada para lá dos inícios de 2009.
Tudo visto, os desafios que se passaram a deparar a Sarkozy aumentaram exponencialmente e com consequências não despiciendas. Por um lado, não deixarão de constituir entrave sério à plena concretização da agenda que Paris havia fixado para a sua presidência; por outro lado, obrigarão essa mesma presidência a recentrar as prioridades do seu semestre europeu, voltando a dirigir o centro da sua atenção menos para as políticas concretas por que a União e os europeus anseiam para enfrentar a difícil conjuntura internacional do tempo que passa e mais para as questões institucionais, isto é, para os assuntos que, dizendo respeito essencialmente à repartição de poder entre os Estados-Membros e à forma de funcionamento das instituições europeias, são os temas que menos dizem aos cidadãos e à cidadania e cuja prevalência na agenda pública europeia para mais não serve do que para afastar os europeus da Europa da União, os cidadãos das instituições, inquinando – quiçá definitivamente – o rumo do processo de integração europeia.
Arriscando-se, este, a ser mais um «semestre perdido» em matéria de aprofundamento das políticas comunitárias que mais de perto tocam a atenção e os interesses dos cidadãos em concreto, impõe-se a necessária reflexão sobre a capacidade que a União Europeia ainda terá de reverter uma série de sucessivos insucessos que vêm caracterizando os anos mais recentes da história europeia. A reflexão é tão mais premente quanto são sabidas e conhecidas as necessidades da conjuntura que aconselham o reforço e o fortalecimento da cooperação internacional como forma cada vez mais recomendada para fazer face e frente aos desafios com que a globalização nos interpela a cada dia que passa. E nessa perspectiva a Europa – sobretudo a Europa da União – não se livra de ser constante e permanentemente interpelada pelo Mundo. Por muito furtivas que sejam as suas políticas, por muito que as suas questões internas e de repartição de poder continuem a predominar na sua agenda política, o Mundo continuará a interpelar a Europa. E a esperar dela as respostas que, teimosamente, ela teima em não lhe dar. Reverter este estado de coisas, ou pelo menos ajudar a revertê-lo, é também, inquestionavelmente, um dos desafios de Nicolas Sarkozy. E o facto de ser dos menos falados não significa que seja o menos importante.

E depois da Irlanda?

Veio de Dublin o último desafio lançado à UE, com a recusa de ratificação do Tratado de Lisboa resultante do veredicto popular – numa União que teimou em promover a diferença entre os seus cidadãos ao conferir apenas aos irlandeses (e por imperativo constitucional) um direito de pronúncia sobre um seu texto de natureza estruturante e fundamental. Por muito que os chefes de Estado e de governo hajam acordado em cercear esse direito a todos os demais cidadãos europeus, os irlandeses resolveram tomar nas suas mãos o futuro institucional da Europa e interpretar aquele que supostamente seria o sentido de voto de muitos outros cidadãos se os mesmos tivessem tido idêntica possibilidade de se pronunciar sobre o Tratado porreiro. E assim criaram nova encruzilhada para a qual, reconhecidamente, a UE não estava preparada. Não só inexistia qualquer «Plano B» como o próprio Conselho Europeu acabou por demonstrar o quão impreparadas estavam as instituições europeias para um cenário como o que acabou por se verificar. Impõe-se, assim, por antecipação e com o risco que tal exercício comporta, tentar divisar quais os caminhos possíveis que a União poderá trilhar no pressuposto óbvio de que qualquer Tratado, para entrar em vigor, por muito porreiro que seja, terá sempre de ser aprovado por todos os seus 27 Estados Membros.
A primeira via passará pela repetição do referendo irlandês sem promover qualquer alteração ao Tratado de Lisboa. Será a solução mais fácil e mais cómoda para a UE; não se afigura, todavia, muito viável pelo ambiente político existente e também porque teria dois graves inconvenientes: acentuaria a desigualdade entre os Estados-Membros da UE porquanto idêntica repetição não foi imposta à França e à Holanda quando ambas recusaram a Constituição europeia; e desqualificaria definitivamente o instituto do referendo em matérias europeias, dado que faria passar a ideia de que tais referendos só seriam válidos se dessem um determinado resultado.
O segundo caminho possível passará pela abertura de negociações com a República da Irlanda visando obter alterações ao Tratado de Lisboa por forma a que o Tratado que possa voltar a ser sujeito a referendo naquele país seja materialmente diferente do que já foi referendado. Tratar-se-á, porém, de uma solução de difícil concretização – o Tratado foi o mínimo denominador comum a que chegaram os Estados-Membros da UE, para o qual todos tiveram de fazer cedências. Reabrir as negociações em benefício de um único Estado poderá equivaler a abrir uma caixa de Pandora donde não se sabe o que poderá sair, havendo a possibilidade de desconstruir equilíbrios alcançados. Acresce que, se o Tratado for – ainda que ligeiramente – alterado, que acontecerá às ratificações já promovidas em 18 Estados Membros? As mesmas teriam incidido sobre um Tratado que já não existia, que teria sido alterado. A lógica jurídica mandaria repetir tais ratificações.
O terceiro e mais radical caminho passará pela assunção da «morte jurídica» do Tratado de Lisboa, por falta de verificação de uma condição indispensável à sua produção de efeitos jurídicos: a ratificação por todos os Estados signatários – com reabertura de uma nova CIG visando rever e alterar os Tratados em vigor. Tratar-se-á, obviamente, de uma solução extrema e radical que equivalerá a mais uma perda de tempo irrecuperável por parte da UE que daria mostras de permanecer refém de si própria e dos seus Estados-Membros, enredada em questões institucionais e de repartição de poder enquanto «lá fora» o Mundo passa por ela a correr, e ela se mostraria incapaz de dar resposta às questões com que esse mesmo Mundo a interpela de forma cada vez mais intensa.
Ao contrário de qualquer um dos caminhos citados, o último Conselho Europeu, sem o assumir claramente, parece ter optado por «decretar» uma nova pausa para reflexão, à semelhança do que ocorreu após os referendos francês e holandês, a par, da continuação dos processos de ratificação por parte dos Estados Membros que ainda não ratificaram o Tratado. Em boa verdade não se terá tratado de uma solução para o problema em questão mas de um adiamento de uma solução. A finalidade, porém, percebe-se: isolar politicamente a República da Irlanda por forma a que se chegue a um momento em que apenas falte a ratificação dos irlandeses, eventualmente em vista da repetição do referendo. Acresce, todavia, uma dificuldade eventual suplementar: não está dito nem escrito que outros Estados não possam querer aproveitar o sucedido na República da Irlanda para travar os seus próprios processos de ratificação interna e com isso questionar definitivamente o Tratado de Lisboa. À esquerda e à direita não faltaria quem rejubilasse com tal cenário. Está por demonstrar, todavia, que fosse essa a melhor solução para o projecto europeu.