by João Pedro Simões Dias | Fev 19, 2008 | O Diabo
Confirmando-se o que já era dado como adquirido de há uns tempos a esta parte, o Parlamento regional da província sérvia do Kosovo declarou unilateralmente a sua independência da Sérvia no passado domingo, concretizando o movimento de secessão já anunciado. Por artes mágicas ainda não totalmente esclarecidas, parte significativa do Ocidente apresta-se a reconhecer de imediato o novo Estado, baseado unicamente na sua homogeneidade étnica, enfileirando atrás dos EUA que de há muito fizeram dessa uma sua bandeira. Trata-se, seguramente, de uma postura temerária e de resultados e consequências que no momento se afiguram absolutamente imprevisíveis.
Desde logo por se estar ante um Estado que, nas condições actuais, não tem qualquer possibilidade de se auto-sustentar ou de afirmar a sua viabilidade. Exemplo perfeito de um Estado exíguo, seguramente incapaz de cumprir as missões e tarefas básicas inerentes à soberania ora proclamada.
Por outro lado, abre-se um precedente grave que não se imagina onde poderá parar e que consequências poderá ter em vários outros locais do mundo e da própria Europa. Reparemos que, nas horas imediatamente subsequentes à referida declaração de independência, as autoridades do enclave arménio de Nagorno Karabakh, cuja soberania tem sido disputada entre a Arménia e o Azerbeijão desde 1988, reafirmaram a sua vontade de independência e reconhecimento internacional; e a Abkházia e a Ossétia do Sul, duas regiões separatistas da Geórgia, anunciaram de imediato que pedirão à Rússia e à ONU que reconheçam a respectiva independência.
Como se tudo isto não bastasse, o novo Estado, de independente, pouco ou nada terá. Pelo contrário, conhecerá apenas novas dependências – em vez de depender única e exclusivamente da Sérvia, será defendido militarmente pela NATO e sustentado economicamente pela União Europeia. União Europeia que, assumindo a «tutela» informal do Estado nascente, criará dentro de si clivagens indesejáveis – entre as grandes potências que se aprestarão a seguir o exemplo norte-americano e reconhecerão o novo Estado, e os Estados-Membros da União que, por conhecerem situações de minorias étnicas dentro dos seus territórios, dificilmente reconhecerão o Estado emergente. A Espanha, a Bulgária, a Eslováquia, a Roménia, mas sobretudo a Grécia e Chipre, dificilmente poderão reconhecer o novo Kosovo independente sem, com isso, abrirem portas a reivindicações secessionistas dentro das suas próprias fronteiras.
Para além de tudo isto, os últimos acontecimentos contribuirão seguramente para acentuar o distanciamento entre o Ocidente e a Rússia, «empurrando» a Sérvia para os braços da Rússia quando só haveria a ganhar em cativá-la para o campo ocidental. A Rússia, de resto, desempenha nesta nova situação geopolítica dos Balcãs um papel paradoxal e, não raro, contraditório: a sua solidariedade com a Sérvia leva-a a recusar a proclamação unilateral das autoridades de Pristina – certamente lembrando-se que, dentro do seu próprio território, podem surgir idênticas aspirações independentistas fundadas unicamente na homogeneidade étnica; mas, por outro lado, a defesa dos seus interesses estratégicos e o seu desejo de recuperar influência política perdida aconselham-na a estimular movimentos secessionistas em Estados da ex-URSS onde se constata a existência de minorias russas. A Geórgia encontra-se na primeira linha da atenção de Moscovo, facto a que não deverá ser estranho o desejo de Tbilissi de aderir a curto prazo à NATO.
Mas toda esta convulsão potencial poderá também ter outros efeitos indesejáveis a partir do momento em que potenciar novas ambições territoriais da Albânia que não deixará de sonhar com o restabelecimento da velha e grande Albânia. E esse objectivo, a existir, terá o novo Kosovo independente como primeira etapa e base de lançamento de eventuais aventuras expansionistas que colocarão o islamismo no centro da Europa.
Em síntese – se é verdade que o surgimento de um novo Estado europeu poderia ser, em tese geral, momento de júbilo para o velho continente, a forma precipitada como ocorreu a independência proclamada em Pristina poderá contribuir para levar a instabilidade aos Balcãs, o que roça a imprudência e o completo desconhecimento dos ensinamentos da História.
E tudo – em nome de quê? Ainda ninguém no-lo explicou cabalmente.
Para terminar, crê-se estarmos ante um tema e uma matéria a merecerem, inquestionavelmente, um esclarecimento público por parte do governo português, em sede parlamentar, fundamentando e justificando a atitude que vier a ser tomada relativamente ao reconhecimento do novo Estado. Não basta dizer que Portugal conforma a sua posição com aquela que for a posição [maioritária] da União Europeia. É pouco.
by João Pedro Simões Dias | Jan 8, 2008 | O Diabo
1. No momento em que termina oficialmente aquela que, tudo o indica, terá sido a última presidência rotativa ou de turno da União Europeia desempenhada por Portugal, já se poderá fazer um balanço global dos seis meses em que competiu ao nosso país liderar a Europa da União, presidindo ao respectivo Conselho de Ministros e ao próprio Conselho Europeu.
Ora, num clima de balanço global – e pese embora a visibilidade mediática de franjas mais ou menos radicais da nossa opinião publicada, de tendência isolacionista ou neo-soberanista, que ora são a favor da Europa dos fundos como se manifestam contra a Europa política conforme se lhes afigura mais vantajoso para o debate político interno – será indispensável reconhecer que a referida presidência se pautou por um inquestionável sucesso e por um assinalável êxito. Tanto para Portugal como para a própria União Europeia. O país prestigiou-se no contexto europeu e a União Europeia fortaleceu-se internamente e projectou-se no contexto internacional. São evidências que são reconhecidas um pouco por todo o lado e nos mais diversos quadrantes e que nem a congénita tendência para uma certa auto-flagelação nacional ou ecos mediáticos das referidas franjas devem impedir que sejam observadas e registadas. Em termos muito objectivos, foram seis meses de inequívocos sucessos no âmbito das questões internas da União; de um reforço da componente da política externa europeia; e de alguma sorte – sempre necessária na política como em tudo na vida – com dossiers que, ao não serem despoletados, impediram que o sucesso da presidência portuguesa fosse ofuscado.
Reconhecer este sucesso e este êxito, porém, leva necessariamente a nele envolver e englobar o próprio Presidente da Comissão Europeia. Por variadíssimas vezes e nas mais diversas circunstâncias, qualquer observador atento terá tido oportunidade de se aperceber da sintonia patenteada entre Durão Barroso e José Sócrates – na complementaridade das respectivas declarações, na conjugação das respectivas agendas, na sintonia de diferentes iniciativas, mas também no estrito respeito pelas respectivas esferas de competências. Mas sempre falando a uma só voz e na língua de Camões.
2. As questões internas da União Europeia deverão, por motivos óbvios, assumir um lugar de destaque quando se procura fazer um balanço sério da última presidência portuguesa da União. E, dentro dessas questões internas, a resolução da crise institucional em que a União se achava mergulhada há mais de uma década merece o maior relevo – mas não deve ser a única a ser referenciada.
De facto, a assinatura do Tratado de Lisboa não significa apenas mais uma reforma aos textos constitucionais e fundacionais da União Europeia. Vai muito para além disso na justa medida em que – espera-se! – veio colocar um ponto final numa situação de impasse político e quase paralisação institucional que eram evidentes e patentes desde o momento em que, reencontrando-se a Europa consigo mesma após a queda do Muro de Berlim, as antigas democracias populares do centro e leste da Europa começaram a bater à porta da União demandando a sua adesão ao projecto comunitário. Decerto – uma parte significativa do mérito e dos créditos pelo entendimento a que se chegou em Lisboa nos finais de Outubro de 2007 não podem deixar de ser imputados à Senhora Merkel e à anterior presidência alemã que, ao delimitarem com extrema precisão e rigor o âmbito do mandato conferido à presidência portuguesa, facilitaram de sobremaneira a vida a José Sócrates e à sua equipa negocial. Esta teve, porém, o condão de não estragar o trabalho feito por Berlim, a que somou a necessária arte e o indispensável engenho de lograr os últimos e por isso sempre mais difíceis consensos sobre as matérias finais que poderiam fazer perigar o acordo previamente desenhado. Doravante, e sendo o Tratado de Lisboa ratificado por todos os Estados-membros da União, esta fica dotada de um aparelho institucional e de mecanismos decisórios que a habilitarão por muitos anos a agir e actuar num mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais tributário da actuação dos grandes espaços regionais institucionalizados.
Outrotanto se diga, aliás, da concretização da ampliação do espaço Schengen a mais nove Estados-membros da União – todos os da primeira fase do quinto alargamento, com excepção de Chipre – levando e alargando o princípio da supressão das barreiras à livre circulação de pessoas a 24 dos 27 Estados da Europa comunitária, naquela que é uma das políticas europeias com maior visibilidade e, por isso mesmo, mais sentida por parte dos mais de 400 milhões de cidadãos europeus que dela podem usufruir. Com a característica adicional de, fruto da sua atractividade, estarmos no domínio de uma política europeia que, não reunindo todos os Estados-membros da União é, todavia, já compartilhada por outros Estados europeus não membros dessa mesma União. O que, cremos, diz bem e diz muito da sua bondade intrínseca e das vantagens que propicia aos cidadãos europeus que dela podem beneficiar.
No domínio das políticas sectoriais, aliás, outras duas há que não podem deixar de merecer uma referência especial. Em primeiro lugar, que mais não seja pela específica responsabilidade nacional em ter contribuído para o começo da sua estruturação e edificação, a política marítima europeia. Sendo, de entre os Estados da União, um dos que dispõe de maior zona económica marítima e um dos que projecta a sua soberania sobre maior área marítima, percebe-se que tenha constado da agenda das prioridades da presidência portuguesa e que tenha começado a ser estruturada sob a égide dessa mesma presidência. Em segundo lugar, pela sua importância estratégica para a afirmação externa da própria União Europeia, o acordo alcançado sobre o financiamento do sistema europeu de navegação por satélite – o projecto Galileu – permitirá, finalmente, arrancar com a sua efectiva construção depois de longos e morosos atrasos que vinham impedindo sistematicamente a concretização da iniciativa.
Por fim, o acordo orçamental para o exercício financeiro de 2008 da União, alcançado de forma célere e pacífica, longe das tempestades conturbadas de outras eras e de outras presidências, deverá igualmente ser lavado a crédito da presidência portuguesa.
3. Porém, para além do acordo sobre o Tratado de Lisboa, terá sido eventualmente no plano da política externa da União que o esforço e visibilidade da presidência maior repercussão alcançou. Traduzido, essencialmente, na realização de uma série de cimeiras bilaterais com os principais parceiros económicos, actuais e emergentes, da Europa da União, assistiu-se a um programa intenso de diplomacia que contribuiu indiscutivelmente para a projecção e reforço da imagem da União no Mundo. Decerto – a maior parte dessas Cimeiras (casos da Rússia, Ucrânia, China, Índia, por exemplo) decorreram por força do próprio calendário e ter-se-iam realizado qualquer que fosse o Estado que presidisse à União no segundo semestre de 2007. O mesmo não se diga, porém, dos casos das Cimeiras com o Brasil e com a União Africana – as quais constituíram opções políticas assumidas pela presidência, num exercício que consistiu em levar para o palco comunitário zonas e áreas do globo que, de há muitos anos a esta parte, vêm constituindo opções estratégicas da própria política externa portuguesa (o Brasil e a África). Os respectivos resultados, de umas e de outras, apenas poderão ser aferidos a médio prazo. O simples facto de se terem realizado, porém, não pode deixar de ser creditado à actuação portuguesa – confirmando plenamente uma das principais regras não escritas da prática comunitária: a da especial vocação de Estados de pequena e média dimensão para exercerem com sucesso e êxito as tarefas atinentes às presidências rotativas e de turno da União Europeia. Foi assim por diversas vezes no passado, voltou a ser assim no último semestre de 2007.
4. Mas como a política – e sobretudo a política europeia e comunitária – não obedece a regras deterministas e pré-definidas, existe sempre uma certa margem de acaso que, por isso mesmo, não pode ser ignorada. Neste caso da presidência portuguesa da União Europeia, quis o acaso e o destino que dois dos mais complexos e problemáticos dossiers que pairam sobre as instituições comunitárias não conhecessem desenvolvimentos susceptíveis de atrapalhar e ofuscar o trabalho da presidência. Referimo-nos, objectivamente, à situação do Kosovo e da Turquia.
Ao terem protelado por algum tempo a declaração unilateral de independência da Sérvia, os separatistas kosovares adiaram para futura presidência europeia um dos mais complexos temas com que a Europa da União se terá de defrontar nos tempos mais próximos. Não só pela já anunciada divisão que provocará no seio dos 27 – entre os Estados que se apressarão a seguir Washington reconhecendo o novo Estado kosovar e aqueles que demonstrarão a sua solidariedade à Sérvia não procedendo a tal reconhecimento – como pelo próprio clima de instabilidade que poderá promover em toda a região dos Balcãs, com contornos que ainda mal se podem imaginar e com repercussões inevitáveis noutras latitudes e noutros conflitos intra-estaduais latentes em alguns Estados-Membros da União. Por alguma razão, aliás, a futura presidência eslovena já anunciou ser essa a questão fulcral e central que irá ocupar a sua própria agenda para a União.
Por fim, a sempre candente e controversa questão turca. Apesar de se terem iniciado conversações sobre dois novos capítulos do processo negocial, este foi, objectivamente, um dossier esquecido pela presidência portuguesa e, nessa medida e nessa matéria, um semestre pautado pela acalmia e pela ausência de polémicas. Apenas a eleição de Sarkozy em França, confesso adversário de um eventual alargamento da União à Turquia, poderia ter trazido elementos de controvérsia e de discussão. Porém, as prioridades francesas em matéria de política externa no último semestre de 2007 apontaram para outras latitudes e para outras direcções. José Sócrates, agradecido, terá registado e, seguramente, apreciado.
Agora, terminada a função europeia, é tempo do mesmo Sócrates voltar às tarefas quotidianas da governação. E tentar exorcizar a regra não escrita de que uma boa presidência europeia nunca dá bons resultados eleitorais. Que o digam Cavaco Silva e António Guterres, que tiveram êxitos em presidências europeias e perderam as eleições legislativas seguintes. Um pouco à semelhança de Winston Churchill – que ganhou a guerra e perdeu as eleições….
by João Pedro Simões Dias | Dez 11, 2007 | O Diabo
Tentando encarar a recente Cimeira UE – África, bem como os seus resultados, para lá do que a simples mediatização do acontecimento pretendeu que se visse ou que fosse visto, alguns aspectos não podem deixar de ser evidenciados.
Se é verdade que a simples realização da Cimeira é crédito inquestionável que não pode deixar de ser levado a benefício da presidência portuguesa da UE – que neste capítulo consegue fazer o pleno das suas ambições a caminho de um balanço que não poderá deixar de ser considerado globalmente muito positivo – que desde sempre apostou forte na sua concretização mesmo quando os obstáculos pareciam ser intransponíveis, poder-se-á afirmar sem grande risco de contradita que tudo decorreu mais ou menos dentro do que seria expectável. Isto é: registaram-se acordos e convergências onde era suposto que os mesmos existissem e constataram-se óbvias diferenças e indisfarçáveis divergências onde não seria de esperar a verificação de qualquer consenso.
Sendo verdadeiro o esforço europeu para encetar um novo tipo de diálogo com o continente africano – sem que daí possamos chegar ao extremo de concluir, como o fez Louis Michel, o Comissário Europeu responsável pelo pelouro do Desenvolvimento, que estaríamos face à definitiva viragem de página do Congresso de Berlim de 1883-1885 que se caracterizou pela partilha do Continente africano por parte das potências colonizadoras europeias – baseado numa relação de partenariado em lugar de uma visão tipicamente assistencialista, era natural que a chamada do continente africano ao primeiro plano das relações internacionais fosse objecto de consenso e acordo. Ainda que, para o efeito, a própria União Africana tenha tido necessidade de reconhecer o óbvio – e o óbvio consistiu no reconhecimento da frequente violação dos direitos humanos em muitos dos seus Estados membros, na denegação do Estado de Direito em muitos outros, na preterição das regras e dos princípios democráticos em não poucos de entre eles, nas más práticas de governança e de emprego de bens públicos em outros mais. Sem falar, por exemplo, na incapacidade para a resolução de autênticas situações de catástrofe humanitária – de que o Darfur é o exemplo mais visível, que não infelizmente o único – que legitima e funda a emergência de um novo direito internacional de ingerência em nome de valores e princípios que se devem hoje ter como património comum de toda a Humanidade. Todos estes problemas, de forma mais ou menos explícita, foram aceites e reconhecidos pelos próprios Estados africanos que os consensualizaram com a Europa da União numa base de cooperação em vista da sua superação. Na certeza de que só à medida que os mesmos forem sendo erradicados o diálogo Europa – África poderá frutificar e desenvolver-se lenta e gradualmente de uma forma mútua e reciprocamente vantajosa, materializando a relação de partenariado subscrita em Lisboa.
Já no domínio económico-comercial, porém, como também se esperava, os resultados ficaram aquém do desejado. E, por paradoxal que pareça, foram os africanos a vir à Europa explicar aos europeus e à União Europeia o contra-senso da sua posição comercial no mundo – em que a UE promove internamente a mais ampla liberalização das trocas comerciais mas assume uma posição de significativo proteccionismo no que concerne às suas relações comerciais com o resto do mundo. E perante tal contradição, vieram de África as vozes que anotaram que um acordo de liberalização das trocas comerciais iria destruir a pouca indústria africana ainda existente, inundar os países de África de produtos europeus produzidos a preços subvencionados e privar os respectivos governos de importantes receitas alfandegárias. Neste dossier, pois, só com grande dose de utopia se poderia esperar qualquer acordo na Cimeira da Lisboa. E, obviamente, o mesmo não aconteceu. Neste domínio específico, Lisboa não foi a cidade da utopia. Foi, antes, a cidade da dura realidade, da contradição e do paradoxo evidentes.
Uma nota final não pode, porém, deixar de ficar exarada ainda que sob a forma de uma perturbadora e angustiada dúvida – se é verdade, como foi publicamente afirmado sem ciência de qualquer desmentido oficial, que a Senhora Ângela Merkel falou em nome dos 27, interpretando o sentir e exprimindo a posição da União Europeia quando se dirigiu ao ditador Mugabe apontando-lhe alguns dos crimes pelos quais um dia o ditador do Zimbabué terá de ser julgado, por que razão não foi essa intervenção e não foram essas críticas protagonizadas e verbalizadas pelo próprio Presidente em exercício do Conselho Europeu da União Europeia? Ter-lhe-ia ficado bem….
by João Pedro Simões Dias | Nov 13, 2007 | O Diabo
1. Ainda os 27 chefes de Estado e de governo dos Estados-membros da União Europeia se felicitavam mútua e reciprocamente sobre o sucesso em torno do Tratado reformador das instituições europeias alcançado na Cimeira informal do Conselho Europeu de Lisboa do passado mês de Outubro e já grande parte da atenção dos analistas e comentadores se concentrava na forma ou no método que iria ser utilizado nos diferentes Estados para promover a sua ratificação. Verdade se diga que para esse recentrar das atenções em torno mais do processo de ratificação do Tratado do que do Tratado em si mesmo, muito contribuiu uma declaração (pouco comentada, por sinal) do senhor Gordon Brown, ainda antes de começarem os trabalhos da Cimeira, segundo a qual existiria já um gentlemen agreement entre os 26 chefes de Estado e de governo da União – com excepção do Primeiro-Ministro irlandês, constitucionalmente obrigado a ratificar o Tratado por via referendária – no sentido de evitarem a ratificação do tratado através de referendo, escapando assim à auscultação directa dos cidadãos da União. Curiosamente – ou talvez não – nenhum outro chefe de Estado ou de governo desmentiu a existência do tal acordo de cavalheiros a que se referiu o líder do governo inglês. O que, em lugar de acalmar os ânimos, apenas serviu para fornecer um novo argumento a quem pretendeu colocar a ênfase da discussão mais no processo de ratificação do Tratado do que na sua específica materialidade e nas diferentes soluções e inovações que o mesmo preconizou.
2. Ora, Portugal não fugiu à regra – e desde a Cimeira de Lisboa as atenções têm estado mais concentradas na forma e no método de promover a ratificação do Tratado do que, propriamente, no Tratado em si mesmo. A este respeito, quanto à forma de ratificação do futuro Tratado de Lisboa, convirá dar por adquirida a idêntica legitimidade jurídica quer da ratificação por via parlamentar quer da ratificação por via referendária. Face ao normativo constitucional vigente nenhuma disposição nos autoriza a conferir maior dignidade ou qualquer supremacia a uma forma de ratificação relativamente à outra. Dito isto, convirá recolocar a questão no seu terreno próprio e esse é o político. É que se do ponto de vista jurídico existe uma completa igualdade quanto a uma ratificação por via parlamentar ou a uma ratificação por via referendária, será que do ponto de vista político a opção por uma ou por outra via têm idêntico valor e igual legitimidade? A resposta a esta questão remete-nos inevitavelmente para as últimas eleições legislativas para a Assembleia da República onde a generalidade dos partidos com assento parlamentar se comprometeu a promover a ratificação do Tratado europeu então em fase de ratificações por essa Europa fora recorrendo à realização de um referendo popular. Acontece, porém, que o Tratado europeu de que então se falava era outro que não o Tratado de Lisboa; era o Tratado constitucional, o tal que pretendia estabelecer uma Constituição para a União Europeia. E, apesar de uma esmagadora maioria das soluções materiais consagradas na anterior e defunta Constituição Europeia haver transitado ipsis verbis para o novo Tratado de Lisboa, a primeira e fundamental questão que se coloca é a de saber se as promessas eleitorais relativas à forma de ratificação da anterior Constituição Europeia se devem transferir automaticamente para o modo de ratificação do novo Tratado de Lisboa, considerando sobretudo a sua grande semelhança material. Ora, salvo outra e melhor opinião, não devem. E não devem porquanto apesar de possuírem grandes semelhanças materiais há uma diferença fundamental entre a defunta Constituição Europeia e o novo Tratado de Lisboa, diferença essa que não passa pelo facto de aquela consolidar e substituir todos os Tratados comunitários e da União por um único documento jurídico. A diferença fundamental é que aquela, a ter entrado em vigor, teria assinalado uma profunda alteração matricial do que era e seria a União Europeia, conferindo-lhe uma significativa dimensão “estadual” ou “para-estadual”, enquanto organização política dotada de uma Constituição como é típico dos Estados, o que afectaria indelevelmente a sua natureza jurídica. Ora, o Tratado de Lisboa, pelo contrário, não aspira a tanto, não ousa tanto, não mexe na matriz jurídica da União Europeia, não altera a sua natureza de organização internacional sui generis. Limita-se a reformar o modo de funcionamento das suas instituições e, na esteira de anteriores e idênticos Tratados internacionais promover alguns aprofundamentos do processo de integração – aprofundamentos que se traduzem, por exemplo, na substituição da regra da unanimidade pela regra da maioria qualificada para aprovação de uma série de actos normativos diferentes políticas já comunitarizadas ou que passarão a sê-lo. Nessa linha é um Tratado absolutamente igual a todos quantos já foram aprovados e que alteraram os tratados fundadores (excepção ao Tratado da União Europeia o qual, tendo criado a União, alterou geneticamente a natureza dos anteriores Tratados comunitários e, nessa medida, deveria ter sido submetido a referendo popular) e que foram ratificados por via parlamentar.
3. Porém, na fase em que a Europa da União se encontra e no momento que conhece o processo de integração da Europa, há uma escolha fundamental que não pode deixar de ser feita, sob pena de poder condenar definitivamente esse mesmo processo – «democratiza-se» o processo europeu convocando os cidadãos para uma efectiva participação nas principais deliberações que têm de ser tomadas, desde logo em homenagem à densificação do próprio conceito de cidadania da União, ou permanece-se na postura de reservar tal processo e as suas principais decisões apenas para uma elite bem-pensante, supostamente bem informada e cultivada, capaz de ler para além da segunda página de um projecto de Tratado europeu, legitimada pelo conforto da democracia representativa ou dos graus académicos e universitários? Esta é, sem subterfúgios, a escolha que tem de ser feita. E a resposta à questão colocada não me suscita qualquer dúvida: ou o processo europeu se democratiza e convoca o soberano popular a nele participar mais do que na simples eleição do Parlamento de Estrasburgo a cada quinquénio, ou esse mesmo processo se descredibiliza, se distancia dos cidadãos, se restringe a pseudo-elites. Pela minha parte opto incondicionalmente pela primeira hipótese, em nome de um projecto europeu que ou é sentido e vivido pelos cidadãos da Europa ou arrisca-se a não ser coisa nenhuma.
Surge-nos, então, quiçá, a dúvida principal a que há que dar resposta – como conciliar a premissa que aceita a ratificação do Tratado de Lisboa por via parlamentar, com a exigência de um maior grau de democraticidade da própria União, que exige o chamamento dos cidadãos a uma participação efectiva e por via referendária desde logo no envolvimento nacional no projecto europeu?
4. Só aparentemente, porém, a resposta a ambas as questões será paradoxal ou incompatível. De facto, na actual fase do processo europeu e levando em consideração a forma como se vem processando o diálogo sobre as questões europeias em Portugal, crê-se ser possível compatibilizar o princípio da ratificação parlamentar do Tratado de Lisboa com a ambição de envolver os cidadãos no próprio projecto europeu. De que forma? Fazendo suceder a ratificação parlamentar do referido Tratado da realização de um referendo popular onde se pergunte aos cidadãos, de forma simples e clara – concorda com a participação de Portugal na União Europeia funcionando esta nos termos fixados pelo Tratado de Lisboa? Sem subterfúgios, sem capciosismos como os que estavam subjacentes à última pergunta aprovada pela Assembleia da República e julgada – e muito bem! – inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Uma pergunta simples como manda a Constituição, séria, que convoque a cidadania para um amplo debate sobre a presença portuguesa na União Europeia permitindo, tudo o indica, (i) discutir de forma séria a União Europeia; (ii) evidenciar o amplo consenso popular em torno da participação de Portugal na Europa da União; (iii) aos partidos políticos do arco da governabilidade manterem-se fiéis à promessa eleitoral de realizarem um referendo sobre questões europeias (não, obviamente, sobre a Constituição Europeia pois a mesma já pertence à história); (iv) separar, definitivamente, as águas em matéria de opção europeia do país, obrigando a que se pronunciassem sobre tal opção os sectores radicais da sociedade, mas também os neo-soberanistas, os neo-nacionalistas, neo-liberais e os comunistas de ontem e de antanho, bem como as demais franjas que ora são a favor da Europa dos fundos como se manifestam contra a Europa política conforme se lhes afigura mais vantajoso para o debate político interno. A democracia portuguesa agradeceria se este referendo fosse convocado; a legitimação da participação de Portugal na Europa da União sairia de sobremaneira reforçada; a classe política sairia redignificada pelo cumprimento de promessas feitas em tempo eleitoral. E «a Europa» poderia ser discutida e explicada de forma clara sem ser em ambientes de crise que são aqueles em que – infelizmente – mais protagonismo adquire o debate europeu em Portugal.
by João Pedro Simões Dias | Jul 17, 2007 | O Diabo
Na sua segunda semana de presidência da União Europeia, começaram a surgir os primeiros engulhos no caminho de José Sócrates. O protagonista da semana europeia foi outro que não o Presidente em exercício do Conselho Europeu e este, no que lhe foi dado participar, para além de ter apresentado aos eurodeputados do Parlamento Europeu os objectivos da presidência portuguesa, viu o novo Primeiro-Ministro britânico, Gordon Brown, declarar a sua oposição à realização da Cimeira UE-África caso se confirme o convite a Robert Mugabe, o ditador do Zimbabué, para participar no evento. Trata-se, objectivamente, de um possível revés político de assinalável dimensão na agenda política europeia de Sócrates, sabido como é o empenho pessoal por si colocado na realização da referida Cimeira bilateral. Mas se a semana da presidência portuguesa não começou da melhor forma para o chefe do governo português, o seu decurso permitiu assistir a um protagonismo inusitado que teve outro intérprete que, à sua maneira, marcou e definiu a agenda política da própria União Europeia.
Quando Nicolas Sarkozy venceu as eleições presidenciais francesas, causou algum furor nos corredores da diplomacia europeia a sua proclamação de que «a França estava de regresso à Europa». Por um lado o candidato vencedor não se deu ao trabalho de precisar e de explicitar por onde tinha, até então, andado a República francesa. Por outro lado, em termos muito objectivos, crítica mais feroz e mais veemente, quiçá mesmo mais certeira, à política externa seguida pelo seu antecessor dificilmente poderia ser concebida e apresentada. Em todo o caso, a dúvida ficou instalada e a curiosidade despertou a atenção dos observadores – como iria a França regressar à Europa? Em que termos se processaria tal regresso anunciado? Não foi preciso esperar muito para começarmos a ter as primeiras respostas às dúvidas – para alguns, inquietações – formuladas. Logo na Cimeira do Conselho Europeu que pôs fim à presidência alemã, as crónicas não escritas do que por lá se passou atribuem ao presidente francês um papel de relevo e determinante na obtenção do consenso alcançado, pese embora os louros públicos do acordo atingido tenham repousado quase por inteiro na acção da senhora Merkel. Foi o primeiro sinal do regresso da França à Europa. A semana que acaba evidenciou-nos mais três sinais relevantíssimos do que deve ser entendido por esse regresso gaulês ao quadro europeu.
Num acto pleno de originalidade e de simbolismo, e de enorme carga política, o novo Presidente francês deslocou-se à reunião do Eurogrupo, composta pelos Ministros das Finanças dos Estados da União que aderiram ao euro – onde anteriormente nunca nenhum chefe de Estado se havia deslocado, desautorizando obviamente a sua Ministra das Finanças mas deixando bem claro, ao mesmo tempo, onde reside e qual é a verdadeira sede do poder em Paris – para comunicar e explicar aos Ministros das Finanças da zona euro por que iria a França diminuir o seu esforço de combate ao défice orçamental, adiando de 2010 para 2012 a data do previsto equilíbrio das suas contas públicas, e por que iria apostar fortemente numa redução fiscal no quadro de uma vastíssima reforma das políticas públicas francesas. A iniciativa não deixou de causar óbvia perplexidade. Tecnicamente, Sarkozy não violou nenhuma regra do Pacto de Estabilidade e Crescimento – na sua interpretação actual – posto que Paris não se encontra numa situação de «défice excessivo» e não foi o adiamento de uma resolução de «défice excessivo» que foi anunciada. Apenas se limitou a anunciar que a meta do completo equilíbrio orçamental das suas contas públicas seria adiada por dois anos, fundamentando habilmente a deliberação no próprio espírito revisto do mesmo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Ao mesmo tempo, e para indisfarçável desagrado do governo de Berlim, foi taxativo e assertivo na afirmação de que o Banco Central Europeu devia ver revista a sua completa autonomia no âmbito da política monetária europeia, porventura em nome de uma dependência das instâncias monetárias da União – leia-se, dos governos dos Estados-membros, reunidos quer no âmbito do Eurogrupo quer do ECOFIN. Se se recordar que a estrutura institucional do Banco Central Europeu – e nomeadamente a sua autonomia em termos de política monetária da União – é fortemente tributária do modelo do Bundesbank alemão, perceber-se-á com facilidade o quanto as opiniões de Sarkozy terão incomodado Berlim, para quem uma condição indispensável ao sucesso do euro e à estabilidade da moeda europeia passa, justamente, pela sua subtracção ao controle político dos Ministros das Finanças e a sua exclusiva dependência da tecnocracia do Conselho dos Governadores dos Bancos Centrais europeus…
Acresce que, em termos de equilíbrio institucional da própria União Europeia, não poderá deixar de ser equacionado e invocado o princípio da completa igualdade jurídica entre todos os seus Estados-membros quando se analisam e interpretam estas iniciativas do novo Presidente francês. Teriam, acaso, quaisquer outros Estados da União, a oportunidade de, unilateralmente, prorrogarem e adiarem o cumprimento de compromissos a que se achassem vinculados, ante a completa passividade, nomeadamente, das instituições comunitárias, maxime da Comissão Europeia? Cremos ser legítima a dúvida; e igualmente óbvia a resposta…
Em segundo lugar, na mesma deslocação a Bruxelas, Sarkozy conseguiu o acordo do ECOFIN – que reúne os 27 Ministros das Finanças de todos os estados-membros da UE – para a candidatura do ex-Ministro socialista francês Dominique Strauss-Kahn para o cargo de Director-Geral do FMI, substituindo o espanhol Rodrigo Rato recém-demissionário por questões pessoais e familiares.
Finalmente, aproveitando a comemoração do Dia Nacional francês, houve ainda tempo para o Presidente Sarkozy conferir lugar de destaque à União Europeia (nas pessoas do Presidente em exercício do Conselho Europeu e do Presidente da Comissão Europeia) nos desfiles militares que ocorreram em Paris – numa mensagem subliminar de que não poderá haver defesa europeia consequente sem a França e de que a França está preparada e disposta a arcar com as suas responsabilidades nessa matéria.
Eis, pois, o começo da densificação do conceito de «regresso da França à Europa» enunciado por Sarkozy: afirmação – unilateral se necessário for – do interesse francês não submetido a prazos considerados de interesse mais comunitário que nacional, francês no caso (reminiscências das posturas chiraquianas de má memória); prevalência do princípio politique d’abord em matéria de política monetária europeia e de funcionamento do respectivo Banco Central Europeu, mesmo que isso tenha custos no funcionamento do «eixo Paris-Berlim»; colocação de nacionais franceses em cargos-chave e de relevo internacionais; disponibilidade para aprofundamento do compromisso francês com as políticas de segurança e de defesa da União Europeia. Para uma semana apenas, não se pode dizer que não tenham sido mensagens suficientemente relevantes do que, doravante, poderemos passar a esperar da postura francesa em termos de Europa da União. A uma tal luz, de facto, temos a França de volta à Europa e, agora melhor do que na altura em que o conceito foi proclamado, começa-se a perceber com clareza o que tal pode significar.