Helmut Kohl. In memoriam.

Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:

«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negó­cios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Coló­quio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cer­vantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro­peus, do pro­jecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, con­cluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundari­zação que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.

Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois sep­tanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atraves­sada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.

Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro­peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan­çamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representati­vos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a inten­ção de pros­seguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundado­res de cuja tra­dição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.

Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos regista­dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concre­tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis­tência de uma moeda única europeia.

Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concre­tizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi­cação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não dei­xará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».

Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria divi­dida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».

Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Hono­rário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dis­pensa quaisquer ulteriores considerações:

«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra de­vastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospec­tiva­mente um cami­nho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este mo­mento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única euro­peia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pe­los valores tra­dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man­teve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco­nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a fu­nesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desen­corajar pelos reveses, dúvidas e resistên­cias. As suas qualidades de fiabi­lidade, probidade, constância, cordialidade e sensibi­lidade fize­ram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Hel­mut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sin­cero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conse­lho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».

The Hung Parliament

Há precisamente um ano, na sequência duma decisão bizarra e incompreensível do então Primeiro-Ministro britânico, David Cameron – que, de resto, acabaria por lhe custar o cargo e a carreira política – o Reino Unido enfrentava uma campanha eleitoral para o referendo que iria decidir da continuidade, ou não, do Reino na União Europeia. O resultado é conhecido: a maioria dos britânicos optaram pelo brexit, escolhendo sair da União.
A primeira consequência deste referendo, recorde-se, foi a demissão de David Cameron da liderança do governo britânico. Para dar cumprimento ao resultado eleitoral, impunha-se que o governo britânico encetasse o processo de separação de Bruxelas. Cameron, que tinha apostado todas as suas fichas no “remain”, não tinha condições, nem pessoais nem politicas, para continuar no nº 10 de Downing Street. Surpreendentemente, a bancada conservadora em Westminster acabou por escolher para liderar o governo a, até então, responsável pela administração interna nos governos de Cameron, Theresa May.
Theresa May que, no referendo acabado de realizar, havia militado na causa do seu Primeiro-Ministro e havia-se comprometido em favor da permanência do Reino na União Europeia. A perplexidade foi imediata – a condução de todo o processo de separação do Reino Unido da União Europeia iria ser confiado a alguém que, semanas antes, se havia empenhado em defender justamente o contrário, isto é, a permanência do Reino na União Europeia. Foi um começo pouco fiável e nada de molde a justificar grandes entusiasmos. Seguidamente, seria a própria nova Primeira-Ministra a, reiteradamente, afirmar que se sentia confortável com a maioria absoluta de que dispunha na Câmara dos Comuns, herdada de Cameron, e que, por isso, não tencionava convocar eleições legislativas antecipadas.
Em Abril passado, porém, prestes a iniciar as conversações com Bruxelas, numa altura em que os estudos eleitorais davam mais de vinte pontos percentuais de vantagem aos conservadores sobre os trabalhistas de um Jeremy Corbyn pouco menos do que desacreditado, May vislumbrou uma janela de oportunidade para reforçar a sua maioria, dizimar o seu adversário e fortalecer o seu poder. Violando a palavra dada, convocou eleições legislativas que decorreram na passada semana. E, contrariamente às expectativas de que partiu, em vez de reforçar a sua maioria absoluta, perdeu-a; em lugar de aniquilar o seu adversário, reforçou-o; querendo fortalecer o seu poder, acabou enfraquecida. Pela segunda vez em menos de um ano, o eleitorado trocou as voltas aos Primeiros-Ministros britânicos e puniu May como há um ano tinha punido Cameron – qual deles o menos hábil a interpretar e avaliar o sentido e o sentimento do eleitorado britânico. É certo que, desta feita, houve razões acrescidas para essa punição eleitoral que recaiu sobre May: a falta à palavra dada; a tergiversação em matéria de princípios e valores; a postura arrogante assumida durante a campanha eleitoral; propostas eleitoralmente mal apresentadas, nomeadamente de natureza fiscal; a colagem, em matéria de política externa, às errâncias de Donald Trump. E, obviamente, a questão do terrorismo; sobretudo tendo sido May, durante seis anos, a ministra responsável pela pasta da segurança interna.
Esta errada avaliação eleitoral, da exclusiva responsabilidade da Primeira-Ministra britânica, acabou por estar na origem daquilo que os britânicos designam por um “parlamento suspenso” (um “hung parliament”) – um parlamento sem maioria absoluta de nenhum partido, num país com um sistema eleitoral maioritário a uma volta, propenso à emergência de um sistema partidário de bipartidarismo tendencialmente perfeito. Os conservadores perderam a sua maioria absoluta mas, continuando a ser o partido mais votado, persistiram na indicação de Theresa May para a liderança de um governo minoritário que, tudo o indica, alcançará a maioria através de um entendimento parlamentar com os unionistas da Irlanda do Norte (DUP). É, num primeiro momento, uma aliança eivada de espinhos que podem vir a revelar-se fatais com o decurso do tempo. Uma vez mais, mais do que na questão das políticas internas, será na postura face ao brexit que se podem vir a revelar as maiores contradições deste acordo de conveniência, necessariamente a prazo. E nem parece improvável que as primeiras e mais graves contradições surjam de dentro do próprio Partido Conservador. De resto, já há notícias de movimentações internas as quais, se num primeiro momento até poderão permitir o surgimento de um novo gabinete de May, a médio prazo poderão torná-lo completamente inviável, sacrificando a sua própria liderança. Mais do que nunca, Theresa May deverá sentir-se uma Primeira-Ministra a prazo. E a prazo curto.
E o calendário promete não a ajudar. Se a apresentação do seu programa de governo (o célebre “Queens Speech”, discurso da Rainha que apresenta o programa e as diretivas do governo para o ano legislativo subsequente) já foi adiado “sine die”, para o início da próxima semana estão agendadas as primeiras conversações entre o Reino Unido e a União Europeia para concretização do brexit. Será o grande desafio que o próximo governo vai ter pela frente. E será um governo enfraquecido eleitoralmente, diminuído politicamente e minoritário partidariamente que terá de enfrentar o maior desafio político do Reino Unido desde o final da segunda guerra mundial.
Num quadro de tanta indecisão, de tanta indefinição e de tanta turbulência, não será risco demasiado voltarmos a uma convicção que já anteriormente tivemos oportunidade de expressar – há brexits que estão condenados a concretizarem-se como …… remains.

Vai o Reino Unido mudar?

Amanhã o Reino Unido vai a votos.
Na sequência do resultado do referendo sobre a permanência na União Europeia, que ditou o Brexit, e do consequente abandono do poder por parte de David Cameron, a primeira-ministra Theresa May optou por dissolver a Câmara dos Comuns para relegitimar o seu governo, reforçar a sua maioria e refrescar a sua liderança. Tudo para, em seu dizer, se encontrar em posição mais vantajosa para negociar com Bruxelas as condições de saída do Reino da União. Quando dissolveu a Câmara, as sondagens eram-lhe simpáticas: mais de vinte pontos percentuais de vantagem sobre um Partido Trabalhista anémico, radicalizado à esquerda em torno da liderança de um pouco ou nada carismático Jeremy Corbyn. May avaliou as suas possibilidades e arriscou. No entretanto, políticas internas mal percebidas ou mal explicadas, uma dose inesperada de arrogância que a levou a recusar debates eleitorais em que se fez substituir, uma colagem em muitos pontos da política externa às posições de Donald Trump e, sobretudo, a onda de ataques terroristas que teve obrigou a suspender a campanha eleitoral por duas vezes, na sequência dos ataques de Manchester e da London Bridge do passado sábado – tudo contribuiu para baralhar as opiniões e as sondagens, a ponto de, no momento em que este texto é escrito, a menos de 24 horas da abertura das urnas, os últimos números disponíveis apontem para a perda da maioria absoluta dos tories em Westminster e, necessariamente, para o surgimento de um governo mais débil, de uma maioria provavelmente só alcançada através de acordos parlamentares, ou seja, todo o contrário daquilo que Theresa May pretendia ao convocar estas eleições legislativas antecipadas.
Não seria, de resto, a primeira vez que tal sucederia. No referendo do ano passado, convocado por Cameron – e que, indiretamente, foi responsável por tudo o que se passou daí para cá em termos de estabilidade governativa britânica – a história foi a mesma: uma má avaliação do sentir e do sentimento de um povo, uma má perceção da tendência do eleitorado, que acabou por lhe custar a carreira política e mergulhar o Reino Unido no pântano de indefinição em que hoje se encontra. Theresa May que, recorde-se, no referendo do ano passado se destacou como defensora da permanência do Reino na União Europeia para, depois da queda de Cameron, acabar por aceitar liderar um governo que tinha como eixo central da sua existência fazer exatamente o oposto daquilo que ela própria defendeu e negociar com Bruxelas a saída do Reino da União, estará a ser vítima da sua própria errância política e da sua própria incoerência política. Tentou sanar ambas com o beneplácito do eleitorado e do sufrágio popular. Poderá estar a horas de ter de reconhecer ou admitir que a sua estratégia terá falhado.
Daí que, para respondermos à questão com que titulámos este texto – vai o Reino Unido mudar? – a nossa resposta só possa ser a de um receio de que, a haver mudança, a mesma seja em sentido negativo e na direção errada.
Dir-se-á – em que é que tudo isto nos toca ou nos interessa? Num mundo cada vez mais globalizado, toca-nos e interessa-nos de sobremaneira. Nós não votamos no Reino Unido nem escolhemos deputados para Westminster. Mas não nos podemos dar ao luxo de pensar que o que por lá acontece nos é estranho, alheio ou indiferente. Estamos perante uma eleição que vai influenciar significativamente o futuro da Europa na medida em que, qualquer que venha a ser o governo saído da mesma, a sua tarefa principal continuará a ser negociar as condições do brexit; nessa medida, nunca deixaremos de ser afetados pela decisão que os britânicos vierem a tomar. Estarmos atentos ao que por lá se vai passando é o mínimo que se nos pode exigir, em nome dos nossos próprios interesses e da nossa própria condição cidadã.

A trilogia eleitoral

Amanhã, quinta-feira, a atenção política europeia vai centrar-se no Reino Unido: os britânicos voltam a ir às urnas, ainda que desta vez num contexto especial. O acto eleitoral foi convocado pela primeira-ministra Theresa May para reforçar e relegitimar o seu governo que tem pela frente a espinhosa tarefa de negociar e concretizar um Brexit escolhido, há precisamente um ano, na sequência de uma consulta popular convocada pelo então primeiro-ministro David Cameron.
Não chegasse, todavia, este particular contexto envolvente do acto eleitoral de amanhã, dá-se ainda o caso de o mesmo nos aparecer, inevitavelmente, condicionado pelos atentados terroristas que o Reino Unido tem sofrido – em Londres, em Manchester e, no passado fim-de-semana, de novo na capital britânica.
Ambos os factos – a postura de Theresa May ante o Brexit, ela que fez campanha pelo “Remain” no referendo do ano passado e, de repente, viu-se a braços com a liderança de um governo que tinha por principal tarefa, justamente, concretizar o Brexit; e a escalada do terrorismo islâmico radical e extremista no Reino Unido, contra o qual todo o empenho e perseverança da polícia britânica se tem revelado insuficiente – são suficientes para deixar em aberto todas as previsões sobre qual poderá vir a ser o veredicto das urnas, pese embora, à data de convocação deste acto eleitoral, os conservadores beneficiassem de mais de vinte pontos percentuais de vantagem sobre os trabalhistas.
Porém, a sucessão recente de erros do governo de May e a sua postura arrogante, por exemplo recusando participar em quaisquer debates eleitorais, poderão custar-lhe uma maioria em Westminster tão confortável como aquela de que presentemente beneficia. E assim, paradoxalmente, umas eleições que foram convocadas para darem suporte a um governo fortalecido e relegitimado eleitoralmente poderão acabar por conduzir a um governo comparativamente mais débil, menos forte e em condição mais desvantajosa para negociar com Bruxelas a saída do Reino da União. No fundo seria, a outra escala, a repetição do acontecido há um ano com a convocação do referendo sobre o Brexit por David Cameron: as previsões saíram furadas, o tiro saiu pela culatra. O eleitorado afirmou, de forma inequívoca, que nem sempre os governantes de turno sabem interpretar o seu sentir. O que sucedeu no referendo do ano passado, poderá vir a repetir-se nas eleições de amanhã. Não seria surpreendente.
Mas logo a seguir às eleições britânicas, teremos no próximo domingo, outro acto eleitoral de extraordinário relevo para a Europa – a primeira volta das eleições legislativas francesas.
Será o primeiro teste verdadeiro à recém-estreada presidência de Emmanuel Macron e, sobretudo, à capacidade que este teve, ou não, para dar um mínimo de forma institucional ao amplo movimento político e de cidadania que há poucas semanas o conduziu ao Eliseu. Macron tornou-se Presidente da República de França mercê de uma improvável conjugação de votos que cortou transversalmente a sociedade francesa, do centro-esquerda ao centro-direita. Beneficiou de muitos votos negativos, sobretudo daqueles que descreram no sistema político-partidário francês – desde os que quiseram recusar Le Pen aos que pretenderam censurar Fillon e penalizar Hollande e os respectivos partidos. O desafio que o novo Presidente tem, agora, pela frente, traduz-se em conseguir que o seu “La République En Marche” fidelize e sustenha uma parte significativa dos votos que ele reuniu. Se o conseguir fazer, nomeadamente se lograr uma maioria absoluta na Assembleia Nacional, a sua tarefa de governação será significativamente simplificada; se não lograr alcançar este desiderato e tiver de encetar uma política de alianças num parlamento previsivelmente mais fragmentado, com elevada representação da Frente Nacional, com os partidos tradicionais do sistema – republicanos gaullistas e socialistas – debilitados e enfraquecidos e uma extrema-esquerda previsivelmente bem representada, a tarefa da governação começará a complicar-se. Desde logo porque será necessário negociar uma maioria parlamentar que suporte o próprio governo.
A primeira volta destas eleições legislativas, a realizar no próximo domingo, já nos dará um cenário minimamente consistente que permita antecipar o resultado final e a composição definitiva da Assembleia Nacional francesa. A política europeia dos próximos anos vai depender, também, muito daquilo que vier a ser essa composição e das condições de governabilidade de que o Presidente francês venha a dispor.
E para completar a “trilogia” eleitoral teremos de esperar pelo próximo mês de Setembro – quando os alemães forem às urnas para eleger o seu Parlamento donde sairá o seu próximo governo. Decerto – ainda falta muito tempo para esse acto eleitoral. Mas é inquestionável que estas três eleições legislativas nos três (ainda) principais Estados da União Europeia, a par das passadas eleições presidenciais francesas, irão determinar parte significativa da Europa dos tempos próximos. E determinando o futuro da Europa, é o nosso próprio futuro que estará em jogo e em causa. Desengane-se, pois, quem pensar que se tratam de actos eleitorais relativamente aos quais nos poderemos dar ao luxo de sermos alheios ou indiferentes.
Em nenhum deles poderemos votar. Mas é inegável e inquestionável que, todos eles, no seu conjunto, nos afectam, nos dizem respeito e condicionarão e determinarão o nosso futuro.

Os fantasmas europeus

O Presidente dos Estados Unidos concluiu na passada semana a sua primeira viagem oficial ao exterior desde que tomou posse do seu cargo. Foi uma viagem com um itinerário estranho, que tentou responder a uma agenda quase indecifrável, tantos e tão variados os temas que pretendeu tocar e os lugares por onde andou. Foi ao oriente médio, foi ao Vaticano e ainda divagou por duas cimeiras na Europa.
No Médio Oriente começou a digressão com uma visita à Arábia Saudita. Terá sido o momento onde mais palpável se tornou a digressão. Assinou um acordo de venda de armamento militar que ultrapassou os cem mil milhões de dólares. O complexo militar-industrial norte-americano, a que há mais de cinquenta anos se referiu o Presidente Dwight Eisenhower, terá esfregado as mãos de júbilo. Para além deste acordo, Trump teve a possibilidade de discursar numa cimeira de Estados árabes onde os estimulou a combaterem o fundamentalismo islâmico. Em boa verdade, quereria referir-se ao fundamentalismo xiita – escolhendo uma plateia de sunitas para deixar a sua mensagem. Não é líquido, porém, que a diferença tenha sido apreendida, sobretudo considerando os laços que intercedem entre muitos dos Estados que se fizeram representar na dita conferência e muitos dos movimentos xiitas que vão trilhando o caminho da radicalização. Os comentadores mais atentos fizeram notar a subtileza da distinção precisamente para evidenciarem a duvidosa eficácia da mensagem que Trump quis deixar em Riade – justamente em Riade, onde impera um dos mais autocráticos e despóticos regimes do oriente médio.
No roteiro do Air Force One seguiu-se uma paragem em Israel, para reafirmar a velha solidariedade norte-americana com o Estado judeu e o empenho num processo de paz que tarda em chegar, e nova paragem desta feita no Vaticano. Aqui, Francisco não se preocupou em esconder o seu sentimento mais profundo, plasmado em fotos que ficam para a posteridade e que não deixam dúvidas sobre o incómodo de Sua Santidade na recepção a tão ilustre visitante. De forma mediata e indirecta, Francisco e Trump já tiveram oportunidade de registar diferentes pontos de vista a propósito de diversos temas, nomeadamente da agenda internacional. Nada nos parece permitir concluir que as divergências hajam sido aplainadas, muito menos superadas ou dissipadas. O protocolo limitou-se a ser cumprido. E não há notícia de que algo mais tenha acontecido.
Já o mesmo não se poderá dizer da etapa final da viagem inicial do Presidente Trump. Tanto na Cimeira da NATO em Bruxelas quanto na Cimeira do G7 na Sicília não faltaram motivos de reflexão e, alguns, de apreensão. Em Bruxelas, na Cimeira NATO, assistiu-se a um Trump mais moderado relativamente à própria Aliança Atlântica, tendo por comparação o que dela chegou a dizer em plena campanha eleitoral. Decerto – insistiu na tecla de que todos os Estados têm de assumir as suas responsabilidades financeiras para com a organização, levando as respectivas contribuições aos 2% de cada PIB. No fundo, recordava o compromisso, assumido na cimeira do País de Gales, em 2014, de, no espaço de uma década, todos os países aliados destinarem 2% do PIB a despesas militares. Ora, de acordo com os dados da própria Aliança Atlântica, no ano passado apenas cinco aliados atingiram ou ultrapassaram o objectivo acordado: Estados Unidos (3,61%), Grécia (2,36%), Estónia (2,18%), Reino Unido (2,17%) e Polónia (2,01%). Recorde-se, todavia, que este objectivo deverá estar atingido em 2024; não em 2017. Mas as críticas iniciadas em Bruxelas acabariam por se tornar mais evidentes na Sicília, na Cimeira do G7, onde alguns consensos anteriormente alcançados entre as sete maiores economias do mundo foram questionados ou, mesmo, renegados pela nova administração norte-americana.
As divergências surgidas foram de tal monta que, há dois dias, a chanceler Angela Merkel veio colocar em causa uma constante da ordem internacional dos últimos setenta anos – a regra segundo a qual os EUA eram verdadeiramente indispensáveis para a defesa e a segurança da Europa. Primeiro da Europa ocidental; depois da queda do Muro e do fim da guerra-fria, da Europa da União.
Creio podermos afirmar que, nunca nos últimos 70 anos que são os que decorreram desde o fim da segunda guerra mundial, líder europeu algum se atreveu a ir tão longe face aos EUA como o foi, há dias, a chanceler alemã. Nem mesmo De Gaulle, nos seus tempos áureos de “antiamericanismo”, ousou ir tão longe.
Dito isto, impõe-se reconhecer que a afirmação de Merkel – mesmo descontando o facto de se encontrar em plena campanha eleitoral para as eleições gerais de setembro – não deixa de revelar duas coisas. Ambas preocupantes. A primeira, que foi quebrada a fronteira de confiança entre o maior Estado europeu e o principal aliado dos europeus. E rôta a fronteira da confiança, ultrapassada a linha vermelha que a mesma supõe, dificilmente o relacionamento transatlântico, nos tempos mais próximos, poderá voltar a ser normalizado. A segunda ilação a retirar desta afirmação da chanceler alemã conduz-nos, fatalmente, à conclusão de que a Alemanha merkeliana está disposta a, também no plano militar e da defesa e segurança colectiva da Europa, desempenhar um papel liderante, condizente com o seu poderio económico e a sua proeminência política. Isto é, pela ideia de Merkel, não andará distante a concepção de uma Europa militarmente organizada sob liderança alemã. O que, no momento presente, conduziria os europeus a terem de efectuar uma escolha muito pouco desejável: continuarem a abrigar-se sob a protecção militar norte-americana como o têm feito nos últimos setenta anos, ou colocarem-se debaixo do guarda-chuva alemão, no quadro duma defesa exclusivamente europeia. E mesmo que, como talvez viesse a ser mais provável, optassem pela manutenção do stato quo, não deixa de ser recomendável registar que bem no centro desta União Europeia em acelerado caminho de desintegração, existe um Estado, responsável pelos principais fantasmas com que a Europa se defrontou no seu passado recente, disposto a, de novo, projetar o seu poder e liderar militarmente a defesa europeia. Talvez seja chegado o momento de revisitar, para recordar, alguns dos referidos fantasmas.