by João Pedro Simões Dias | Abr 26, 2017 | Jornal Económico
Quando o General de Gaulle fundou a V República francesa, nos idos de 1958, um dos pressupostos subjacente ao sistema político que a Constituição de 4 de outubro desse ano consagrou era o de que o Presidente da República e Chefe de Estado, eleito diretamente pelos cidadãos, seria uma espécie de chefe de fila ou líder de facto do partido ou movimento político que fosse maioritário na Assembleia Nacional de Paris. Enquanto líder de facto dessa maioria, designaria o seu Primeiro-Ministro o qual, depois de obtida a confiança presidencial, deveria ser confirmado pelo Parlamento. Esta estreita ligação que se estabelecia entre o Presidente, o seu Governo e a Assembleia Nacional eram, por assim dizer, a garantia da estabilidade e do funcionamento do sistema político gaulês. Quando, com Mitterrand, pela primeira vez, a sintonia foi quebrada, assistimos ao nascimento dos primeiros governos de coabitação, caracterizados, basicamente, por uma desconformidade entre as maiorias presidencial e parlamentar – com esta a impor os seus governos ao titular do Eliseu.
As eleições do passado domingo, porém, apesar de terem sido apenas a primeira volta das presidenciais, ao deixarem antever com alto grau de probabilidade a vitória do centrista Emmanuel Macron na segunda volta, podem trazer para o sistema político francês um dado totalmente novo, eventualmente capaz de testar aos limites esse mesmo sistema político-constitucional. Emmanuel Macron, o ex-Ministro de François Hollande que se demitiu para se poder lançar nesta aventura presidencial, apresta-se a ser Presidente da República de França sem ter atrás de si um partido político, suportado apenas na existência de um movimento cívico “Em Marcha” que ele próprio constituiu há cerca de um ano mas que, fruto da sua debilidade, dificilmente poderá evoluir para um partido político a tempo, por exemplo, de disputar as eleições legislativas do próximo mês de Junho. Ou seja, pela primeira vez desde a criação da V República, e contrariamente a um dos pressupostos e alicerces desta, a França poderá vir a ter um Presidente da República independente dos partidos políticos com assento na Assembleia Nacional. Mas um Presidente da República, ao mesmo tempo, que não poderá deixar de prestar atenção à composição que vier a ter a Assembleia Nacional posto que, desde logo, será ela que terá o encargo e a missão de viabilizar o novo Primeiro-Ministro e o novo Governo que vierem a ser escolhidos pelo futuro Presidente da República.
Se, a esta originalidade, acrescentarmos o facto, inegável, de os tradicionais partidos do sistema político francês ou já terem implodido há muito ou se encontrarem em fase de completa implosão ou descredibilização (o PCF há muito que deixou de contar; o PSF sofreu uma derrota histórica com a performance do seu candidato presidencial no passado domingo; os republicanos, antigos gaullistas, encontram-se profundamente divididos e em processo de ajuste de contas interno; só a Frente Nacional parece resistir e firmar-se como o primeiro partido político francês e o que mais deputados obteria se não fosse penalizado por um sistema eleitoral maioritário a duas voltas) estarão reunidas as condições ideais para uma tempestade quase perfeita no centro do sistema político francês: um Presidente sem Partido, uma Assembleia de pluripartidária e de partidos enfraquecidos e um governo a ter de depender de ambos.
Ora, a ser este o cenário a sair da segunda volta das presidenciais, dentro de duas semanas, e das legislativas do próximo mês de Junho, chegaremos facilmente à conclusão que a situação política em França se aproximará muito mais daquela que caracterizou a IV República do que da que resultou da implantação da V República e que pretendeu terminar com toda a instabilidade que até aí a França conhecia e vivia.
A ser assim, teremos a V República francesa levada ao extremo da sua viabilidade, com um dos princípios básicos em que a mesma assentava a ser posto em causa e a atingir o centro do seu sistema político. Poderá ser o prenúncio de uma alteração que se venha a refletir no próprio texto fundador desta V República inaugurada por De Gaulle com o apoio e o suporte de um referendo popular. Que o mesmo será dizer – poderemos estar na antecâmara de uma reforma constitucional que, em França, funde a VI República, sob os escombros da República gaullista, dos seus partidos tradicionais e do seu próprio sistema político. Acredito que já estivemos mais longe desse novo momento (re)fundador.
by João Pedro Simões Dias | Abr 26, 2017 | Diário de Aveiro
As eleições presidenciais do passado domingo, em França, foram, a vários títulos, umas eleições atípicas e “anormais”. Desde logo, e contrariamente ao sucedido em recentes actos eleitorais, a generalidade das sondagens e estudos de opinião acertaram em cheio nos resultados que se registaram no momento da contagem dos votos. Tem sido um dado raro e, por isso, merece relevo e realce. Claro – como se verificou um acerto, isso não constituiu notícia.
Por outro lado, se atentarmos aos resultados eleitorais comparados, há dois elementos que não podem deixar de ser realçados.
O primeiro, tem a ver com o facto de o Partido Socialista francês e o seu candidato Benoît Hamon terem tido o pior resultado eleitoral desde o longínquo ano de 1969. Nunca, desde então, o score eleitoral dos socialistas franceses desceu tão baixo como no passado domingo. Várias causas poderão justificar este verdadeiro desaire. Desde logo, o mandato desastroso de François Hollande. Aquele que, há tão-só cinco anos, era visto como o farol de esperança do socialismo democrático europeu, devido a uma série infindável de errâncias que marcaram o seu mandato, volveu-se em coveiro do Partido Socialista francês. Não se submeteu ao sufrágio presidencial, remetendo para a fogueira do eleitorado um impreparado Benoît Hamon que, jogando “à esquerda”, esbanjou o centro outrora protagonizado pela, agora, maldita “terceira via” – que um dia Tony Blair fundou e que constituiu o último momento que conferiu efetivo poder na Europa ao socialismo democrático. Hamon ficará, para a história, como o protagonista de um estertor desse mesmo socialismo democrático em França – o que, objetivamente, é um péssimo serviço prestado a esse mesmo socialismo democrático europeu.
O segundo elemento prende-se com o facto de, pela primeira vez desde 1958, data em que se fundou a atual V República francesa, a direita tradicional e gaullista não ter um candidato na segunda volta das eleições presidenciais. François Fillon, o mais bem posicionado há escassos meses, coberto por um labéu de corrupção, não resistiu a uma série de escândalos em cadeia que afetou a sua credibilidade e até a sua honorabilidade. O eleitorado que conseguiu segurar, apesar de tudo, na casa dos 20%, foi insuficiente para lhe garantir uma presença na segunda volta presidencial.
Com este cenário, a segunda volta das presidenciais, dentro de duas semanas, jogar-se-á entre dois candidatos “atípicos” mas prováveis.
De um lado, o independente centrista e europeísta Emmanuel Macron, o candidato que, sem partido, que há cerca de um ano fundou o seu movimento “En marche” e logrou ser o mais votado na primeira volta e parte para a segunda volta “confortado” com uma pluralidade de apoios que atravessa transversalmente todo o campo democrático francês, da esquerda democrática à direita democrática. Muito deste voto e muitos destes apoios são, manifestamente, votos contra Marine Le Pen. No momento da verdade, porém, não deixarão de somar para Macron.
Do outro lado – Marine Le Pen. A candidata da extrema-direita nacionalista que, pasme-se!, lidera o maior partido político francês nesta altura. É, nessa medida, uma vítima do sistema político-eleitoral gaulês. A consagração do sistema maioritário a duas voltas não lhe dá mais de 2 (!) deputados entre o 577 que compõem a Assembleia Nacional francesa – apesar de ser, neste momento, o partido político mais votado em França.
Significa isto que o próximo Presidente da República francês irá ter de trabalhar sem um partido que o suporte e que apoie explicitamente o governo que terá de apresentar à Assembleia Nacional. É uma rutura com os fundamentos e as bases constitucionais da V República. Não nos esqueçamos que quando o General de Gaulle fundou a V República francesa, nos idos de 1958, um dos pressupostos subjacente ao sistema político que a Constituição de 4 de outubro desse ano consagrou era o de que o Presidente da República e Chefe de Estado, eleito diretamente pelos cidadãos, seria uma espécie de chefe de fila ou líder de facto do partido ou movimento político que fosse maioritário na Assembleia Nacional de Paris. Enquanto líder de facto dessa maioria, designaria o seu Primeiro-Ministro o qual, depois de obtida a confiança presidencial, deveria ser confirmado pelo Parlamento. Esta estreita ligação que se estabelecia entre o Presidente, o seu Governo e a Assembleia Nacional eram, por assim dizer, a garantia da estabilidade e do funcionamento do sistema político gaulês. Quando, com Mitterrand, pela primeira vez, a sintonia foi quebrada, assistimos ao nascimento dos primeiros governos de coabitação, caracterizados, basicamente, por uma desconformidade entre as maiorias presidencial e parlamentar – com esta a impor os seus governos ao titular do Eliseu.
Mesmo essa anormalidade, porém, parece ultrapassada. Os novos tempos que se anunciam prenunciam novos e mais difíceis desafios lançados à Constituição da V República. Esta irá ser levada aos seus limites e testada como até agora nunca o foi. E pode acontecer que, quando nos apercebermos, estejamos a ser confrontados com o caminho para uma nova Constituição que funde uma nova República. Talvez já tenha faltado mais tempo.
by João Pedro Simões Dias | Abr 12, 2017 | Jornal Económico
Foi há dois dias que, em Madrid, reuniram pela terceira vez em cimeira, os Estados do sul mediterrânico – a Espanha, França, Itália, Portugal, Grécia, Chipre e Malta. Disseram algumas coisas óbvias, outras quantas banalidades mas deram sinais de, de uma forma informal e não estruturada (ao contrário, por exemplo, do que acontece com os Estados do Grupo de Visegrado), estarem na disposição de buscarem os consenso possíveis para enfrentarem os desafios que se vão colocar à Europa durante a fase de negociação do Brexit e, sobretudo, após a concretização da saída do Reino Unido. Foi a primeira vez que este grupo se reuniu, como foi assinalado, depois da declaração de Roma que assinalou os 60 anos do Tratado de Roma e depois de o Reino Unido ter accionado formalmente o artigo 50º do Tratado de Lisboa. Foi, ao mesmo tempo, o momento adequado para ser consensualizada uma posição comum face à próxima cimeira de finais de abril, em Bruxelas, do Conselho Europeu.
Ainda sobre as conclusões desta III Cimeira do Sul europeu, um aspeto se destaca, a meu ver, de todos os restantes – pela sua importância prática, pela sua relevância humanitária e pelo seu impacto na atual (des)ordem internacional. Refiro-me à política de vistos, que foi decidido pelos sete de Madrid que deverá continuar a ser uma política e uma competência comunitária. A pressão das migrações e dos refugiados conferem, a esta decisão, uma importância enorme. Mas faz recair também, sobre as estruturas decisórias e a máquina administrativa da União um repto e um desafio sem igual – o de conseguir montar e manter em funcionamento eficaz um serviço adequado a dar uma resposta em tempo útil aos pedidos e à pressão de que vier a ser alvo. Mas isso será todo o contrário do que, até agora, tem acontecido e sucedido.
E a importância desta cimeira pode, ainda, ser aferida por dois outros dados de relevo: em primeiro lugar o facto de, estes sete Estados que reuniram em Madrid, quando articulados, poderem formar, a qualquer momento, uma minoria de bloqueio que impede qualquer tomada de deliberação ordinária em sede de Conselho da União; em segundo lugar, a sua heterogeneidade. Ao lado de três das maiores economias da União (França, Itália e Espanha), tomam assento na mesma três dos Estados resgatados na sequência da crise das dívidas soberana (Grécia, Portugal e Chipre). Ou seja, seria difícil encontrar composição mais heterogénea para um grupo de Estados que voluntariamente se deseja articular e consensualizar posições no quadro europeu. Isto porque, seguramente, independentemente das diferenças económicas que intercedem entre eles, o facto de serem Estados do “mal-amado” sul europeu, são Estados que comungam de muitas especificidades comuns, que partilham muitos problemas e desafios em comum e que encontram nessas dificuldades que se lhes deparam uma boa base de partida para entendimentos futuros. Sobretudo num tempo em que, todos os indícios apontam para tal, a discussão do Livro Branco sobre o futuro da União, da responsabilidade da Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, acabará para apontar para um cenário de desenvolvimento futuro da União em torno de vários círculos ou a várias velocidades. No fundo, um cenário em que os 27 sobrantes não participarão, todos, nas mesmas e das mesmas políticas comuns, podendo escolher, de entre as existentes, quais aquelas em que pretendem participar e quais aquelas matérias onde pretendem reservar para a sua competência nacional o poder e a decisão final. Um pouco, afinal, à imagem e semelhança do que já acontece hoje em dia com, por exemplo, a União Económica e Monetária e o espaço Schengen.
Numa altura em que nada parece impedir que as velocidades diferentes para que aponta o futuro da integração do projeto europeu tenha na sua génese um critério geográfico – e em que outros parece já o terem compreendido e parecem apostados nisso mesmo, e teremos de voltar sempre ao caso do Grupo de Visegrado – articular e consensualizar posições e interesses entre estes sete Estados reunidos em Madrid pode não constituir o método ideal de contribuir para a o futuro da integração europeia. Mas como, frequentemente, o ótimo é inimigo do bom, pode ser a melhor forma possível destes Estados darem o seu contributo para esse mesmo futuro.
by João Pedro Simões Dias | Abr 12, 2017 | Diário de Aveiro
Passaram menos de três meses sobre a tomada de posse de posse da nova administração norte-americana mas já foi o tempo suficiente para se constatar que a realidade já se começou a impor ao discurso populista e demagógico de Donald Trump que teve, naquele ainda recente 20 de janeiro, uma das suas mais relevantes manifestações. O discurso em que Trump elogiou o isolacionismo norte-americano, celebrizado da célebre expressão “América first”, fez uma profissão de fé nas vantagens do proteccionismo, disse-se Presidente dos Estados Unidos e não do resto do mundo e criticou o tempo e os recursos gastos na tarefa de levar a democracia a outros países. Tudo isto foi dito há menos de três meses!
E, no entanto, quem atentar nas decisões tomadas ao longo da última semana pelo Presidente dos Estados Unidos, dificilmente as conseguirá compaginar com as proclamações proferidas no momento do discurso de investidura.
Desde logo a posição adoptada face ao regime sanguinário de Assad. Na sequência do bombardeamento do seu próprio povo com armas químicas interditas pela generalidade das convenções internacionais e pelo próprio direito da guerra, Trump não hesitou em reagir, por palavras e por actos. Na Flórida, ao lado do Presidente chinês, proclamou a inaceitabilidade daqueles ataques, enunciou que os mesmos ultrapassaram todas as linhas vermelhas toleradas pela comunidade internacional, e deu ordem para que dois porta-aviões norte-americanos estacionados no Mediterrâneo lançassem um imenso ataque de mísseis Tomawack sobre a base área síria donde partiram os aviões responsáveis por aquele ataque químico. 59 mísseis de novíssima geração e quase infalível precisão, devastaram e tornaram inoperacional a mesma base aérea. Tratou-se de um ataque cirúrgico, com alvo bem definido, mas duma intensidade incomum e que nunca nenhum Presidente norte-americano antes de Trump se havia atrevido a lançar. A reação da comunidade internacional foi, praticamente, unânime no apoio à iniciativa norte-americana – se excetuarmos, obviamente, o caso da Rússia que suporta e sustenta o regime sírio, do Irão, do Hezzbolah e de mais um ou outro regime do mesmo jaez. Dir-se-á que o ataque não foi precedido da sempre necessária autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, face ao direito internacional, o tornaria legítimo. Impõe-se, todavia, não esquecer, que todas as tentativas para aprovação de uma resolução por parte do Conselho de Segurança esbarraram sempre no veto sistemático da Rússia. Cedo se tornou evidente que a via diplomática e jurídica estava esgotada e prejudicada. Restava, infelizmente, a resposta militar. E Trump – o tal que dava sucessivas indicações de não se querer envolver em demasia nas questões internacionais – reagiu de forma surpreendente: pela rapidez, pela intensidade, pela determinação de que deu mostras. Recordando que desde 2013 tanto os EUA como a Rússia se tinham tornado garantes de que Assad não recorreria a armamento químico no conflito sírio, constando a sua utilização e a violação daquele compromisso, o Presidente norte-americano determinou o lançamento do ataque que nunca nenhum seu antecessor ousou levar a cabo. Mostrou, a Assad, à Rússia e ao mundo, que continuam a haver linhas vermelhas que os EUA não permitem que sejam ultrapassadas porque a referida ultrapassagem, entre outros, põe em causa interesses nacionais fundamentais dos próprios Estados Unidos. Para além de interesses comuns da comunidade internacional. Da mesma comunidade internacional que fez saber o seu apoio generalizado, ainda que de uma forma envergonhada e a meia-voz. Era Trump a tomar uma medida acertada, não nos esqueçamos do detalhe….
Menos de quarenta e oito horas passadas sobre a ordem para o ataque à base aérea síria, nova medida de forte visibilidade mediática tomada pela administração Trump: a ordem para que a frota liderada pelo porta-aviões USS Carl Vinson, os contratorpedeiros USS Wayne Meyer e USS Michael Murphy e o cruzador USS Lake Champlain, que se dirigia para a Austrália, invertesse o seu rumo e se dirigisse para águas ao Pacífico Ocidental e tomar posição perto da Península Coreana. O pretexto para esta demonstração de força aparece intimamente ligado à sucessão de testes de mísseis por parte do regime de Pyongyang, que a Coreia do Norte tem reiteradamente promovido.
Para um Presidente que iniciou o seu mandato secundarizando as questões externas e internacionais, as duas ações referidas que decorreram na passa semana constituem, obviamente, um dado novo a que convém prestarmos alguma atenção. É certo – a vida interna da nova administração não tem sorrido ao novo Presidente; e sabe-se que, em alturas de crise interna, nada melhor do que identificar um ou dois objetivos externos para neles centrar a atenção da opinião pública e levá-la a esquecer os insucessos da política doméstica. É uma regra básica de qualquer grande ou média potência internacional. Apesar disso, não será prudente ignorar estes novos sinais que a nova administração norte-americana está a passar para o mundo. Talvez o isolacionismo proclamado acabe por não ter a dimensão inicialmente temida. E não seria caso virgem um Presidente norte-americano fazer-se eleger prometendo centrar-se nas questões de política interna e acabar o seu mandato atolado em questões e problemas internacionais. O caso mais recente foi o George W.Bush, empenhado em reverter o intervencionismo de Clinton no momento da sua eleição mas que, apanhando com o 11 de setembro em cima, não teve alternativa que não lançar os EUA na maior intervenção armada desde a segunda guerra mundial. A realidade, por vezes, encarrega-se de toldar os mais nobres e elevados princípios e desígnios presidenciais.
No caso de Trump, pouco existe que nos permita identificar com rigor e precisão o seu pensamento em matéria de política externa. A “doutrina Trump” ainda não existe – está a ser construída dia-a-dia ao ritmo da realidade. Resta-nos estar atentos para a tentar perceber e identificar em toda a sua extensão.
by João Pedro Simões Dias | Abr 5, 2017 | Diário de Aveiro
Ainda não passou o tempo suficiente para se digerirem os primeiros impactos da oficialização britânica do desejo de sair da União Europeia, através do acionamento do mecanismo previsto no artigo 50º do Tratado de Lisboa, e já começaram a surgir os primeiros imbróglios que terão de ser dirimidos entre Londres e Bruxelas – ou, no mínimo, entre Londres e algumas das capitais europeias.
A primeira questão surgida escassos dias sobre a invocação do referido artigo 50º do Tratado de Lisboa derivou do estatuto político de Gibraltar – de cuja administração Londres não dá sinal de querer prescindir, mas de cuja soberania Madrid também não pretende abrir mão.
De facto, Gibraltar – território britânico desde 1713 que ainda em 2002 rejeitou através de referendo popular ficar sob soberania partilhada de Londres e Madrid – irá tornar-se no primeiro exemplo de uma situação que, tendo sido gerida até agora no quadro da União Europeia, passará, com a saída do Reino Unido da União, para o plano do relacionamento bilateral entre o Reino Unido e Espanha. E, nesse plano bilateral, não poderá deixar de ser dissociado de outras questões que oporão ambos estes Estados. A questão escocesa será outra de entre essas mais relevantes.
Depois de o Reino Unido ter decidido avançar com o Brexit, o governo nacionalista de Glasgow tomou a decisão de encetar um novo procedimento referendário pretendendo desligar-se do Reino Unido e, subsequentemente, ingressar na União Europeia. Até agora, Londres tinha em Madrid um aliado de peso que estaria na disposição de vetar a referida adesão escocesa à União. Sobretudo por receio de abrir um precedente que, a prazo, se pudesse virar contra si própria, pensando sobretudo na situação da Catalunha – onde as forças nacionalistas e independentistas fazem campanha pela autodeterminação da Catalunha e pela defesa do seu ingresso na União Europeia.
Surpreendentemente, nos últimos dias, no momento em que se elevou a escalada verbal entre o Reino Unido e Espanha a propósito do estatuto político do rochedo, registou-se uma alteração significativa na posição espanhola relativamente à Escócia. O ministro espanhol dos negócios estrangeiros, Alfonso Dastis veio, pela primeira vez, anunciar que Madrid não aporia o seu veto a uma eventual candidatura de uma futura Escócia independente à União Europeia deixando, assim, as portas abertas para que, num futuro próximo, uma eventual Escócia independente se possa tornar membro de pleno direito da União Europeia.
Com esta mudança ou evolução radical na posição oficial de Espanha, Madrid dá por adquirido que, a prazo, a sua estratégia para lidar com a questão da Catalunha terá de assentar em novos pressupostos – o, neste caso, aliado britânico está em vias de abandonar o clube europeu e ao Reino de Espanha pouco mais restará do que contar consigo própria numa eventual batalha em torno da questão catalã.
Qualquer um destes três casos – o caso de Gibraltar, o caso da Escócia e o caso da Catalunha – enquadra-se num contexto mais vasto de renascimento das punções nacionalistas um pouco por toda a Europa. Até agora, estas questões eram tratadas no quadro da União Europeia e com uma intervenção de mediação frequentemente exercida por parte das instituições comuns, nomeadamente a Comissão Europeia. A concretização do Brexit fará com que, doravante, os mesmos se remetam para o plano do relacionamento bilateral entre os Estados envolvidos. Trata-se de uma alteração não desprovida de consequências, e de consequências que não facilitam a resolução destes diferendos.
A trilogia “Gibraltar – Escócia – Catalunha” volve-se, assim, num dos primeiros, talvez o primeiro, teste que, em matéria de política externa e relações internacionais, se vai colocar à União Europeia a 27 e aos seus Estados membros no novo relacionamento que vai ser necessário encetar com Reino Unido que, além de novos desafios externos, se irá ver confrontado com novos desafios internos, sendo que o da sua sobrevivência ou subsistência como Reino “unido” não será, seguramente, o menor de todos eles. Mas pode vir a ser também, paralelamente, a possibilidade de começar a ser edificado um outro modelo de ordem internacional que pode vir a conferir a esse mesmo Reino Unido, se como tal se conseguir conservar e preservar, um papel muito mais ativo na articulação da Europa, a que continuará a pertencer, com os aliados transatlânticos, nomeadamente os Estados Unidos e o Canadá.
Serão, pois, tempos de mutações relevantes aqueles que poderemos ter por diante. Não, necessariamente, positivos; mas, seguramente, relevantes e importantes.