by João Pedro Simões Dias | Jun 28, 2016 | Diário de Aveiro
As ondas de choque do referendo britânico sobre a saída do Reino Unido da União Europeia começam, agora, a fazer sentir as suas primeiras ondas de choque, permitindo trazer a lume inúmeras questões que tinham sido esquecidas no período que antecedeu a sua realização pelo simples facto de que, pura e simplesmente, ninguém se lembrou de as considerar e de as equacionar. A primeira de todas elas, que está a marcar a agenda destes primeiros dias, é a mais óbvia de todas – quando é que o resultado do referendo produzirá os seus efeitos? Segundo o artigo 50º do Tratado da União Europeia, a partir do momento em que um Estado decidir sair da União, deverá notificar formalmente o Conselho Europeu dessa vontade, abrindo-se posteriormente um período de negociações não superior a dois anos para conclusão do acordo de saída. Já se viu, todavia, que os timings quer do Reino Unido quer da União Europeia estão muito longe de coincidirem.
A União Europeia, já o disseram Juncker, Tusk e, mesmo, Merkel, pretende que a saída se concretize o mais rápido possível. Para isso, “exigem” que o governo de Londres notifique a União da sua vontade de sair o mais rápido possível, para se iniciarem as negociações também o mais rápido possível e a saída se concretizar o quanto antes.
Londres, pelo contrário, tem dado mostras de não ter grande pressa em notificar a União da sua vontade de sair. Cameron anunciou a sua demissão a prazo, estimando oportuno apresentá-la à Rainha num prazo máximo de três meses: o tempo considerado necessário para gerir todos os impactos da decisão de saída, colocando a ordem possível num processo que, se for desordenado, pode levar o caos a muitas economias europeias, começando pela própria economia inglesa. Acresce que, tendo lançado o Reino Unido neste processo quase suicidário, Cameron já deixou suficientes indícios de que não vai querer ser ele a negociar com a União Europeia os termos da saída do Reino da União. Vai deixar o encargo e a tarefa para outro, para o seu sucessor. Em termos de coerência e verticalidade, parece estarmos falados…
Mas nesta diferença de calendários, a faca e o queijo estão na mão de Cameron e do governo britânico. É ele e só ele que pode decidir qual o momento em que pretende notificar a União da sua vontade de sair. Ninguém o pode fazer por ele – e a EU tem de se submeter e estar à espera de receber a referida notificação, no tempo que Londres entender fazê-la.
Outras questões, todavia, vão surgir num prazo imediato. Desde logo a questão das nacionalidades e das independências que pode estar intrinsecamente associada à manutenção do Reino Unido tal como o conhecemos hoje.
Em primeiro lugar a Escócia. Tendencialmente europeísta, a Escócia tem jogado a cartada europeísta para contrabalançar o seu desejo independentista. Afirma a sua vontade independentista moderando-a com o desejo de permanência na União Europeia. A primeira-ministro escocesa já veio alvitrar como altamente provável a realização de um novo referendo independentista. O qual, a ter sucesso, antecederá o pedido de adesão à União Europeia. Com Londres na EU, essa pretensão seria de todo inviável. Sem Londres na União, há um obstáculo de monta que é ultrapassado. Não se pode dizer que seja o único (lembremo-nos de Espanha….) mas é, seguramente, o mais relevante e o mais importante.
E depois temos o caso irlandês. Bem mais complicado e complexo do que o caso escocês. A partir do conhecimento dos resultados do referendo, começaram a ouvir-se de imediato vozes a reclamarem um referendo que decida sobre a reunificação das duas Irlandas. O assunto é deveras controvertido, não só por razões históricas como, sobretudo, pelo facto de não lhe ser estranha uma componente religiosa que separa católicos de protestantes. Uma coisa é certa – ninguém pode encarar de ânimo leve a possibilidade de ser limitada a livre circulação entre as duas Irlandas ou serem restabelecidos apertados controles fronteiriços sem que isso signifique o reacender dos nacionalismos, dos extremismos, a possibilidade de recrudescimento de uma violência já julgada ultrapassada. Mas uma coisa parece certa: o Brexit veio, também, reabrir esta outra caixa de Pandora, acordando demónio há muito tidos por aquietados.
Estes são, apenas dois dos mais controvertidos dossiers que o resultado do referendo da passada quinta-feira veio reabrir. Imensos outros se irão conhecendo com o decurso do tempo – sempre na óbvia suposição que a Inglaterra, pátria do parlamentarismo, irá democraticamente assumir os resultados do referendo realizado, não enveredando pelas práticas de muitos outros Estados que, quando os resultados referendários não são o que é politicamente correto supor que sejam, vão repetindo os referendos até sair o resultado esperado. Apesar de tudo, do Reino Unido não se espera uma tal desconsideração à democracia – pese embora já esteja em marcha uma petição com mais de três milhões de assinaturas para pedir ao Parlamento a repetição do referendo. Em Inglaterra, dificilmente uma manobra destas poderá ter sucesso. Por muito que haja a consciência e a convicção de que a repetição do referendo iria dar um resultado significativamente diferente do que foi conhecido na passada quinta feira. Mas isso são práticas de democracias formalmente adultas mas substancialmente infantis. A democracia britânica, pese embora as surpresas com que, por vezes, brinda, é formal e substancialmente adulta.
Resta uma reflexão sobre este referendo do ponto de vista da União Europeia. A ela consagraremos um dos próximos textos.
Post-scriptum: enquanto tudo isto foi acontecendo na relação do Reino Unido com a União Europeia, bem aqui ao lado, no passado domingo, os espanhóis foram uma vez mais a votos. Um grande vencedor improvável (Mariano Rajoy) e um enorme derrotado imprevisto (Pablo Iglesias) voltaram a colocar a chave da governação espanhola nas mãos de Pedro Sanchez e do PSOE (que segurou in extremis a sua posição de segundo partido mais votado). Sanchez, porém, tem uma escolha difícil: ou viabiliza a governação de Rajoy e será triturado no seu partido, ou mantém-se firme nas suas convicções e conduzirá Espanha para novas eleições em Dezembro e será triturado pelo eleitorado. Não está fácil a vida para os socialistas espanhóis, que terão perdido, inclusivamente, a possibilidade de criarem uma geringonça em Madrid.
by João Pedro Simões Dias | Jun 1, 2016 | Diário Económico
Seis meses passados sobre a entrada em funções da geringonça e três meses depois de os afetos reinarem no Palácio de Belém, já ninguém parece arriscar que o governo estará para cair a prazo ou que o relacionamento entre Belém e São Bento promoverá essa queda no curto prazo. Aliás, todos quantos prognosticaram a impossibilidade da geringonça, num primeiro momento foram de recuo em recuo, saltando de argumento em argumento, na esperança de que um deles haveria de se verificar. Cedo constataram, porém, que a habilidade política de António Costa ia prevalecendo e contornando cada obstáculo que se lhe deparava. Hoje, seis meses volvidos, poucos ou nenhuns arriscam o que quer que seja pela queda do governo e muitos até já se converteram à convicção de que teremos geringonça para quatro anos.
Os últimos tempos, porém, têm demonstrado sintomas ou sinais, por ténues que sejam, que devem ser levados em consideração ou, pelo menos, não podem ser desconsiderados em qualquer análise que façamos sobre a estabilidade político-institucional dos tempos mais próximos.
Centremo-nos por minutos no Palácio de Belém e no Presidente da República. No âmbito da atual Constituição da República, Portugal tem, hoje, o Presidente da República que mais longe leva a leitura dos seus poderes constitucionais e que mais aposta no reforço da componente presidencial de um sistema que é misto e que se pretende que assente no equilíbrio entre a dimensão presidencial e a dimensão parlamentar. Quer Ramalho Eanes, quer Mário Soares, quer Jorge Sampaio quer, sobretudo, Cavaco Silva caracterizaram os seus mandatos por uma assinalável sobriedade quanto à extensão e à leitura dos seus poderes constitucionais.
Pela sua própria idiossincrasia, maneira de ser e, inclusive, formação académica, Marcelo Rebelo de Sousa é a antítese de todos os seus antecessores. A que se deve somar uma indómita sede de protagonismo e uma irrequietude bem patente e comprovada, por exemplo, pela sua agenda oficial. Temos hoje, como nunca tivemos antes, e ainda o pudemos constatar esta semana com a deslocação à Alemanha, um Presidente da República interveniente, que vai a todas e recebe todos, se pronuncia sobre tudo e sobre tudo tem uma opinião; que não é indiferente a dados económicos, greves de estivadores, financiamento de colégios particulares ou questões europeias; que perora contra comentadores que ousam emitir opiniões, esquecendo o seu próprio passado. E que nesse afã de hiperatividade ainda não colidiu com a agenda da geringonça por mero acaso ou obra do destino. Mas que, mantendo este rumo e esta direção, mais tarde ou mais cedo acabará por colidir com a própria agenda governamental.
E nesse dia, no dia em que António Costa tomar consciência que já não terá de se equilibrar apenas entre Jerónimo e Catarina, mas deverá passar a ter de levar em consideração também a agenda de Marcelo Rebelo de Sousa – talvez regressem as razões e os motivos para equacionar a manutenção da geringonça no poder. Desta feita, porém, a principal ameaça poderá não provir de São Bento, mas de Belém. E se os amigos de ocasião, Catarina e Jerónimo, serão facilmente domesticáveis – porque, no limite, nenhum deles terá interesse objetivo em provocar a queda da geringonça – já os objetivos e o calendário de Marcelo escapam em absoluto ao controle do Primeiro-Ministro. E este dado pode fazer toda a diferença. Pode distinguir uma ameaça de crise que António Costa consegue controlar, duma ameaça de crise que o Primeiro-Ministro não controlará.
Ao conviver com a rédea solta de Marcelo Rebelo de Sousa, ao tentar inclusivamente aproveitar-se dessa hiperatividade presidencial para a colocar ao serviço da geringonça, António Costa poderá estar a dar a Marcelo a corda com que acabará por se vitimar.
Nessa medida, enquanto muitos dos “pessimistas militantes” olham para São Bento e para a Assembleia da República para divisarem indícios e sinais que possam pôr em causa a estabilidade governativa, por mim, que sou dos que consideram que um pessimista não é mais do que otimista bem informado, creio que a principal ameaça à estabilidade governativa e institucional poderá ter mais origem em Belém do que em São Bento. É, apenas, uma convicção.
by João Pedro Simões Dias | Mai 18, 2016 | Diário Económico
Falta pouco mais de um mês para, no próximo dia 23 de junho, os britânicos se pronunciarem em referendo sobre a sua permanência na União Europeia. É normal que este referendo preocupe as instâncias comunitárias; e seria normal que fosse objeto de uma reflexão aprofundada nos diferentes Estados-Membros da União, considerando, principalmente, a imprevisibilidade do seu resultado mas, sobretudo, a incógnita que um veredicto que aponte no sentido da vitória das posições eurocéticas que defendem a saída do Reino da União pode vir a acarretar e a trazer para toda a União Europeia globalmente considerada, para o projeto europeu tal qual o conhecemos e, inclusivamente, para cada um dos restantes 27 Estados-Membros da União. Seria, por isso, normal, que o assunto fosse objeto da tal reflexão aprofundada, de uma meditação séria e de uma verdadeira discussão à escala quer da União Europeia quer dos Estados que a compõem.
Infelizmente não é nada disso que temos constatado. O assunto, por razões óbvias, está a ser discutido e equacionado no Reino Unido – mais por razões de política interna do que, propriamente, por questões de âmbito europeu. Mas isso percebe-se – é em primeiro lugar de um tema britânico que se trata e que aos britânicos diz respeito. Já no que concerne aos restantes Estados que integram a União, a discussão e o debate estão muito de corresponderem ao que seria exigido. É certo – há uma dimensão extraordinariamente técnica neste dossier que está longe de ser acessível e discutível pela generalidade do cidadão comum: refiro-me ao debate sobre as consequências que uma eventual saída do Reino Unido da União Europeia poderá ocasionar ou provocar. É assunto deveras complexo sobre o qual muitas contas ainda estarão por fazer e muitas outras talvez nunca se consigam fazer.
Mas este assunto não é, exclusivamente técnico. Nem é, aliás, primeiramente técnico. Começa por ser, antes do mais, um tema exclusivamente político. Uma questão de âmbito e natureza política. E aí, no estrito plano político, poderia e deveria ser objeto de um debate aprofundado que envolvesse a generalidade dos cidadãos dos Estados-Membros da União. Ontem mesmo, nas páginas do Le Monde, Nicolas Sarkozy veio proclamar que “O debate sobre o Brexit é uma oportunidade para refundar a Europa”. Não iria tão longe – não só porque as credenciais de Sarkozy para reclamar um papel de relevo no processo de construção da Europa Unida deixam muito a desejar como, também e sobretudo, porque não se me afigura correto fazer depender da posição que os britânicos venham a tomar sobre a sua permanência na União Europeia o ponto de partida para qualquer refundação do projeto europeu. É discutível aliás, sobre qual seria a opção que mais beneficiaria o projeto europeu – se ter o Reino Unido dentro e a União Europeia estar permanentemente sujeita à pressão e à ameaça britânica, impedida de se aprofundar politicamente; se ter o Reino Unido fora e a UE reunir melhores condições para lograr alcançar estádios superiores e mais integrados de união política. Esse é o debate que falta fazer. Esse é o debate que se deveria estar a travar. Essas são as questões que começam por contar neste complexo puzzle que se encontra em permanente mutação.
A omissão do debate e da discussão – pelo menos das questões sugeridas – demonstra à saciedade uma evidência que ciclicamente vimos observando e para a qual temos chamado reiteradamente a atenção: pese embora tenha já consagrado, no puro plano jurídico, há quase duas décadas, o conceito de cidadania europeia, a União Europeia continua sem conseguir criar, de facto, essa mesma cidadania europeia. Porque é inerente à condição de uma qualquer cidadania a construção de uma opinião pública forte, esclarecida, informada e atuante. Ora, o conceito de cidadania europeia existe, nos tratados e nas fontes jurídicas, mas a opinião pública europeia continua inexistente e omissa. Não se forma, não se constitui, não se interessa, não participa, não intervém. E não a podemos considerar equivalente à soma das 28 opiniões públicas nacionais que coexistem no espaço europeu. Claro – para as instâncias políticas europeias, é cómodo e confortável a inexistência dessa opinião pública à escala europeia. É menos um instrumento de pressão que têm de enfrentar – apesar de, frequentemente, proclamarem justamente o seu contrário. Também aqui é de uma questão de autenticidade entre o que é proclamado e o que é conveniente que se trata.
Esta questão do referendo britânico – pese embora ser um assunto primeiramente britânico – poderia ter servido também, pelas suas consequências, para ajudar a criar essa tal opinião pública europeia. Infelizmente foi mais uma oportunidade perdida para somar ao rol de todas as que já se perderam. E assim vamos caminhando, descompassadamente, ao arrepio do sentir e das escolhas da cidadania. É outro claro indício do estado de letargia ou mesmo de desconstrução em que já se encontra a UE – porque esta, ou é construída em estreita articulação com os cidadãos e com a cidadania ou, mais tarde ou mais cedo, acabará posta em causa por essa mesma cidadania. Por este andar, talvez já tenha faltado mais.
by João Pedro Simões Dias | Mai 10, 2016 | Diário de Aveiro
Na pretérita semana voltou a ser entregue um dos mais prestigiosos galardões que, a nível europeu, premeiam personalidades de relevo pelo seu empenho e pela sua militância e envolvimento em prol da causa europeia e do projeto europeu – o Prémio Carlos Magno. Desta feita o contemplado foi Sua Santidade o Papa Francisco.
A outorga deste prémio suscitou-me duas imediatas reflexões.
A primeira, foi o facto de ter sido laureado com um prémio que pretende homenagear as verdadeiras vozes tribunícias que se fazem ouvir em prol do ideal europeu o máximo representante da Igreja Católica. Decerto – não foi a primeira vez que tal sucedeu. Anteriormente, São João Paulo II já havia recebido idêntica homenagem. Mas os tempos eram outros. O Papa-mineiro foi um ator empenhado nas transformações políticas, económicas e sociais que puseram fim ao mundo da guerra-fria. Foi um espectador comprometido com o seu tempo e com as causas pelas quais ofereceu parte significativa da sua vida e a que submeteu parte importante do seu magistério pontifical. Nessa medida, não constituiu, propriamente, uma novidade, uma surpresa ou uma improbabilidade. Tanto assim é que, nos nossos dias, qualquer obra de estudo e de investigação sobre a ideia de Europa e sobre o ideal europeu que se preze, não pode omitir o nome de Karol Wojtyla entre os mais relevantes pensadores da última metade do século XX em matéria de temáticas europeias. A obra de São João Paulo II está publica, é conhecida e não corre o risco de ser esquecida. Acresce um dado de relevo – João Paulo II viveu a segunda guerra mundial, assistiu aos esforços e à produção filosófica que se lhe seguiram para evitar a repetição da catástrofe; e, sobretudo, era polaco. Era europeu. Percebia, como os europeus, o alcance do projeto comunitário lançado pelos Pais Fundadores. E aqui entra a segunda reflexão que a entrega deste prémio a Francisco me suscitou.
É que, ao contrário do Papa-mineiro, Jorge Mario Bergoglio não é um europeu. É descendente de emigrantes europeus, mas é um latino-americano. É um argentino. E é precisamente a um não europeu, a um latino-americano, a um argentino, que a Europa dos nossos dias veio entregar um dos mais prestigiosos prémios destinados aos que se empenham na prossecução do ideal europeu e na defesa dos valores da Europa Unida. Significando com isto, inequivocamente, que não é garantido que sejam os europeus de origem aqueles que, nos nossos dias, melhor compreendem, melhor percebem e melhor se empenham na defesa da ideia de Europa, na divulgação do projeto europeu e na promoção dos valores europeus. A crise europeia, aquela que nos toca e nos afeta todos os dias, não se limita a ser uma crise económica e financeira, social e política, institucional e constitucional. Vai muito mais fundo e é uma crise de identidade, de valores e de crença nesses mesmos valores europeus. E têm de ser não europeus a virem-nos recordar e relembrar não só a necessidade que a Europa tem de se manter unida, coesa e fiel aos seus valores e à sua História como, igualmente, aquilo que o mundo espera da própria Europa. É, pois, muito significativo que tenha sido o Papa Francisco a ser o laureado este ano com o Prémio Europeu Carlos Magno.
Esta distinção, todavia, incorpora ainda uma outra lição que não podemos perder de vista. E que se tem vindo a assumir como um legado permanente ao longo dos últimos pontificados, a começar no de São João Paulo II, a prolongar-se no de Bento XVI e a ter continuidade no de Francisco: essa lição diz-nos, de forma absolutamente inequívoca, que a essência do ideal europeu e do projeto europeu fazem parte integrante da doutrina social da Igreja dos nossos dias, tal como a mesma tem vindo a ser construída e solidificada pelos três últimos sucessores de Pedro.
Quem tiver um conhecimento minimamente sustentável da história de construção do projeto europeu – com particular ênfase após a segunda guerra mundial – não ignora o contributo que a doutrina social aportou a esse mesmo projeto, predominantemente pela via dos partidos políticos democratas-cristão, sociais-cristão e socialistas cristãos. Sem essas contribuições doutrinárias e dogmáticas, o projeto edificado na europa a partir da segunda metade do século passado não teria quaisquer condições para sobreviver e para vingar. Nesta fase de turbulência e de idêntico relativismo e desconstrução de valores e de princípios, talvez pudéssemos parar um pouco para aprender com as lições do passado. Talvez concluíssemos que se quisermos salvar a ideia de Europa e o próprio projeto europeu, talvez tenhamos de abdicar de alguma soberba, de alguma autossuficiência e talvez tenhamos de lançar mão de auxílios externos, de contributos externos, de entidades não políticas mas muito mais antigas que quaisquer entidades políticas para que essa missão possa ter êxito, sucesso e consiga lograr os seus objetivos. A doutrina social está aí, à mão de quem a quiser conhecer, recheada de sugestões, ensinamentos e práticas que não faria mal nenhum serem seguidas ou, pelo menos, refletidas.
Voltando ao Prémio Europeu Carlos Magno acabado de entregar ao Papa Francisco – quem tiver possibilidade, despenda alguns minutos a ler o respetivo discurso de aceitação, proferido ante alguns dos principais dignitários europeus. Ali verá todo um pensamento europeísta estruturado, desenvolvido e oferecido à Europa em nome dos valores cristãos que professa. Não é preciso inventar muito porque está lá quase tudo. Um pensamento, valores, um rumo, um ideal – coerentemente articulados. Como há muito europeu algum havia divulgado. Na falta de uma orientação proveniente de uma voz europeia, adotemos este ensinamento que nos é dado por um argentino, mais europeísta do que muitos dos nossos governantes que tanto se gabam do seu europeísmo.
by João Pedro Simões Dias | Mai 4, 2016 | Diário Económico
As últimas eleições primárias nos Estados Unidos – naquela que foi uma “super-mini-terça-feira” tanto para republicanos como para democratas – deixaram praticamente definido, ou pelo menos definido com alto grau de probabilidade, os protagonistas finais do duelo presidencial do próximo mês de novembro, para escolha do sucessor de Barack Obama.
Do lado democrata, Hillary Clinton amealhou o número de delegados para a convenção democrata que lhe permite encarar com alguma confiança e segurança a reta final das primárias, nomeadamente o decisivo teste das primárias na Califórnia. Acresce que, pelas regras democratas, os delegados inerentes à convenção partidária, não eleitos e que representam parte significativa do aparelho político democrata, aparecem claramente identificados com a candidatura da ex-primeira dama e ex-Secretária de Estado. O que lhe dá um suplemento de conforto e alento para a referida reta final eleitoral. Clinton chegará à convenção de Filadélfia, em finais de julho, numa posição claramente privilegiada para a aclamação final, aquela que não logrou alcançar há oito anos quando foi cilindrada pelo candidato e futuro vencedor Barack Obama – como, de resto, a mesma conta em detalhe nas suas Memórias recém aparecidas e de leitura altamente recomendável para quem quiser perceber um pouco dos pilares da política externa norte-americana do Presidente Obama.
Do lado republicano, o panorama é significativamente mais complexo e mais confuso. Donald Trump segue acumulando e capitalizando votos populares nas eleições primárias já realizadas. Tem sido o responsável por dizer aquilo que uma parte importante do eleitorado republicano tem querido ouvir e escutar. Trump, preste-se-lhe essa justiça, tem tido esse engenho e essa arte – diz o que muitos republicanos dizem, verbaliza o que muitos norte-americanos desabafam e pouco parece importar-se que tais declarações caiam mal nas próprias elites do seu partido que, neste momento, mais do que derrotar Donald Trump, se afadigam é em obstaculizar a que o mesmo chegue à convenção de Cleveland com o número de eleitos que garantam a sua eleição, assim transformando a convenção numa Assembleia aberta, em que os eleitos deixam de estar vinculados a qualquer candidato e podem passar a dirigir o seu voto para uma candidatura que surja no âmbito da própria convenção.
Ora, quando um dos partidos do sistema político norte-americano se vê na contingência não de escolher um candidato à presidência mas de obstaculizar a que um dos seus membros seja nomeado candidato, apostando tudo no surgimento de uma qualquer terceira via capaz de concitar o voto popular republicano, isso diz-nos quase tudo da forma como, na metade direita do sistema político dos Estados Unidos, estas eleições presidenciais estão a ser vividas e experienciadas.
Face aos dados atualmente existentes, e às sondagens que diariamente vão sendo conhecidas e divulgadas nos sítios da especialidade, dir-se-ia não ser difícil prognosticar que, na eventualidade de um duelo final Clinton – Trump, a ex-Secretária de Estado logrará obter vitória folgada e (quase) garantida.
A menos que……
A menos que, subitamente, os norte-americanos resolvam surpreender o mundo e colocar o máximo poder político existente à face da terra nas mãos de …… Donald Trump. Tenhamos esperanças que, apesar de o mundo tender para o desajuízado, os norte-americanos ainda não terão ensandecido por completo….
Do lado de cá do Atlântico, a questão que se importa colocar é a de saber qual dos candidatos poderá potenciar um melhor entendimento com a Europa e relançar em novas e sustentáveis bases o diálogo e a parceria estratégica ocidental que se impõe seja reconstruída e refeita. A resposta parece óbvia e intuitiva – Clinton estará em muito melhor condição para prosseguir esse objetivo do que Trump (caso se confirme a sua candidatura). Até por uma questão filosófica, a postura republicana tende sempre para um maior isolacionismo dos EUA face às grandes questões mundiais. Paradoxalmente, porém, tem sido nas mãos de Presidentes republicanos (muitos deles eleitos em nome desse tal isolacionismo) que têm caído as maiores responsabilidades de gerir crises internacionais com participação norte-americana. George W. Bush que o diga.
Todavia, se é verdade que, comparativamente com Trump, Clinton é incomparavelmente muito mais confiável e muito mais conhecedora da realidade internacional do que o seu putativo opositor republicano, até pelo exercício anterior da função de secretária de Estado, não deixa de ser conveniente recordar e relembrar que foi a própria Sra Clinton quem fixou como orientação estratégica da sua política externa, a valorização da influência americana no Pacífico, em detrimento da opção atlântica. Nas suas Memórias, uma vez mais, Clinton explica detalhadamente a razão dessa opção consciente do seu mandato. Desenganem-se, pois, os que do lado de cá do Atlântico dão por garantida e assente que a subida da ex-secretária de Estado à Sala Oval da Casa Branca equivalerá, ipso facto, a um reforço dos laços entre a Europa e os EUA. Nesta matéria é utópico ter ilusões. Os EUA, sobretudo no mundo pós guerra-fria, sempre se viraram para a Europa apenas e só na exata dimensão dos seus específicos interesses. É em função desses específicos interesses que a Casa Branca continuará a pautar a sua atuação e a gerir o seu relacionamento com a Europa, especialmente a Europa da União.
Porque, infelizmente, a falta de uma visão integrada do ocidente que somos e que integramos – dotando-a duma eficaz estrutura política, económica e militar – não é um exclusivo dos governos de turno europeus.