O “não” islandês

Conheceu-se, no final da passada semana, a decisão do governo da Islândia de retirar a sua candidatura à União Europeia, apresentada em 2010, e de fazer o referendo que tinha sido prometido pelos dois partidos eurocéticos – o Partido do Progresso e o Par­tido da Independência – que hoje integram o Governo de Reykjavík. Não existem mui­tos exemplos, na história do projeto europeu do pós-segunda guerra mundial, de um Estado denunciar interesse em aderir às Comunidades Europeias ou à União Europeia que se lhe seguiu e, posteriormente, recuar nessa intenção. Nos anos sessenta, por duas vezes (ou três, se contarmos com o que aconteceu no momento da fundação das Comunidades na década anterior) de Gaulle vetou a entrada do Reino Unido nas Co­munidades Europeias, considerando-o como o “cavalo de Tróia” dos interesses norte-americanos na Europa; no início da dé­cada de setenta – e posteriormente já nos anos noventa do século passado – a Noru­ega viu, através de referendo, os noruegueses re­jeitarem a adesão às Comunidades sendo que, da primeira vez, isso sucedeu após ter sido assinado o próprio Tratado de adesão conjuntamente com a Dinamarca, o Reino Unido e a República da Irlanda naquele que foi o primeiro dos alargamentos comunitá­rios em 1973; finalmente, em 1992 e em 2001, os suíços, através de referendo, rejeita­ram por duas vezes juntar-se ao projeto comunitário. Em todos estes casos, porém, os go­vernos nacionais que convocaram as consultas populares tinham-se mostrado, inva­ria­velmente, favoráveis à adesão vindo, porém, a ser derrotados pela expressão e ma­ni­festação do voto popular. O que este caso islandês nos traz de novo, todavia, é que foi o próprio governo de Reykjavík, inicialmente responsável pelo pedido de adesão, ainda que condicionado à realização de um referendo popular que a confirmasse, a re­cuar na própria intenção de pedir a adesão e, consequentemente, a anular o referendo prome­tido e anunciado. Essa é a novidade e essa novidade merece um registo e uma referên­cia especial.
Decerto – a Islândia de hoje vale muito pouco (quer em termos económicos quer em termos demográficos) no quadro da atual Europa. Com cerca de 320.000 habitantes e um PIB per capita a rondar os 40.000USD (sensivelmente o dobro do português), mui­tas cidades ou capitais europeias da atualidade têm maior peso económico e demo­gráfico do que a Islândia inteira. A decisão tomada, todavia, tem indesmentível carga e valor simbólico. E é sobre estes que nos importa refletir.
Parece inquestionável que a carga simbólica associada ao anúncio agora feito pelo go­verno islandês é absolutamente indissociável do momento particular de grave e acen­tuada crise que a União Europeia atravessa. Há anos atrás a decisão ora anunciada ter-se-ia por absolutamente improvável e a capacidade da União Europeia exercer uma atractibilidade sobre Estados terceiros manter-se-ia intacta. Pelo menos ao nível das elites governativas. Hoje, verifica-se e constata-se não ser assim.
É ao nível das próprias elites europeias e, também, das elites governativas que já radi­cam as maiores dúvidas e as mais fundadas reservas sobre o bem fundado do projeto europeu. Se da parte dos cidadãos e da cidadania essa desconfiança não é de hoje e já se manifestou por diversas vezes em tempos passados – muito em razão do claro dé­fice democrático que ainda carateriza parte significativa do funcionamento institucio­nal da União Europeia – ao nível dos governantes de turno só quem não quiser é que não se apercebe do distanciamento e desconfiança que vai grassando relativamente à União Europeia um pouco ao longo de todo o continente europeu. E essa situação é, objetivamente, perigosa. Sem prejuízo de continuarmos a entender que os processos de alargamento da União Europeia apenas deverão prosseguir depois de uma pro­funda reforma institucional da organização, o facto desta deixar de se apresentar como atrativa ou apelativa para quem não a integra não pode deixar de ser encarado como preocupante.
Preocupante porquanto, no atual mundo globalizado, num mundo onde verdadeira­mente apenas contam os grandes espaços, a União Europeia é, por excelência e por definição, o grande espaço representativo dessa parcela do mundo que é o velho con­tinente. Neste mundo cada vez mais integrado e globalizado, em que basicamente contam os grandes espaços, se Europa pretender ter uma palavra nos destinos do globo não pode apresentar-se dividida, fraccionada ou estilhaçada. Só uma Europa unida e institucionalmente representada, pode aspirar a ter influência e protagonismo no mundo. Dividida, desunida e pulverizada deixará de contar. E nunca será demais relembrar e recordar que, se o mundo tem os olhos postos na Europa e naquilo que a Europa lhe pode oferecer, esse mesmo mundo, lá fora, não pára à espera que a Europa resolva as suas dissensões e as suas contradições internas.
Donde, devamos olhar com a maior atenção e preocupação para esta decisão islan­desa. Mais pelo seu significado simbólico que pelas suas concretas implicações eco­nómicas. Mas a política – e a política europeia em especial – nunca foi, nem pode ser, entendida à margem ou desligada duma carga simbólica que lhe é imanente. Em polí­tica, o simbolismo conta. E, neste caso, além de contar, deve obrigar a refletir e a me­ditar.

Sanções da União Europeia à Ucrânia

Os Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia conseguiram consensualizar uma posição comum relativa à imposição de um conjunto de sanções dirigidas, fundamentalmente, à nomenclatura que governa o país. Algumas notas sobre essa matéria devem ser levada em consideração.
1º) Em primeiro lugar o facto de ter sido possível chegar a um acordo e a um consenso sobre a imposição de medidas de natureza sancionatória. Não era líquido nem um dado adquirido que os 28 fossem capazes de chegar a um entendimento nesta matéria, sobretudo se atentássemos na forma diferenciada como, nas semanas anteriores, o conflito ucraniano estava a ser visto em muitas das chancelerias europeias. Conseguir um consenso foi, pois, um passo importante que deve ser registado.
2º) Em segundo lugar, merece referência o tipo de sanções aplicadas. Para além da proibição genérica de exportação de material que pudesse ser utilizado como instrumento de violência, houve a preocupação de não aplicar ou aprovar sanções que se dirigissem indistintamente contra o povo ucraniano e que pudessem aumentar, ainda mais, o seu sofrimento. Houve a sabedoria para impedir o recurso a embargos ou medidas equivalente que, em última análise, se repercutiriam nos próprios ucranianos, já de si tão martirizados com a situação que o seu país atravessa.
3º) Em terceiro lugar, ao escolher e optar essencialmente pelo congelamento de bens e contas bancárias detidas no exterior por um conjunto de titulares da oligarquia e da nomenclatura no poder em Kiev – numa lista aberta que poderá ir sendo atualizada em função da monitorização que será feita – a União Europeia tomou, claramente, partido por um dos lados da contenda e evidenciou que as razões subjacentes a ambos os contendores não se equivalem nem merecem o mesmo respeito. De um lado existe uma oligarquia e uma nomenclatura assente apenas numa duvidosa legitimidade formal para o exercício e manutenção do poder e do outro lado encontra-se um povo em luta pela sua libertação desse poder que roça os limites da legitimidade e quer ser ouvido e poder escolher em liberdade o seu futuro e determinar soberanamente o futuro do seu país. As sanções aprovadas pela União Europeia tiveram essa inequívoca leitura e consequência: a UE tomou partido. E tomou partido pelo lado certo.
4º) Em quarto lugar – há, todavia, um importante “senão” ou uma restrição que não pode ser ignorada. A União Europeia, o seu Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros, aprovou um conjunto de sanções para as quais, todavia, lhe falta efetivo poder para aplicar, controlar e executar. Terão de ser os Estados-membros, na esfera das respetivas jurisdições nacionais, a implementar as medidas agora aplicadas. Esse será o verdadeiro teste à efetividade das sanções aprovadas. E, ao mesmo tempo, um teste de fogo à solidariedade e coesão da União Europeia e dos seus Estados-Membros. De nada valerá enunciar a aprovação de uma lista de sanções económicas a financeiras ao núcleo duro do poder de Kiev se, na hora de as aplicar, as administrações nacionais se furtarem a esse dever. Esse é o desafio que se segue – demonstrar que a deliberação do Conselho de Ministros da UE não se reconduz a uma mera declaração retórica, antes estará dotada de uma verdadeira capacidade prática. O futuro se encarregará de o demonstrar.

Renovar a aliança transatlântica

Pela primeira vez desde 1996 – há 18 anos, portanto – que um Presidente da República francesa não se deslocava em visita de Estado a Washington. O último a fazê-lo foi o ex-Presidente Jacques Chirac. Ocupava, então, a Casa Branca, Bill Clinton. Mais tarde, em 2007, Nicolas Sarkozy foi recebido por George W. Bush – mas o encontro não teve a dignidade de visita de Estado. Desta vez, na passada semana, Barack Obama conferiu a distinção a um François Hollande em acentuado estado de debilidade política que, eleito há quase dois anos em nome de um programa político muito assertivo e definido, enveredou nos tempos mais recentes por uma completa inversão das suas prioridades, dos seus objectivos e, até, dos seus princípios, admitindo que os mesmos falharam em toda a linha e que havia que emendar o caminho se pretendia salvar o que restava do seu único mandato, atenta a improbabilidade de o mesmo ser repetido. Não deixa de ser sintomático que a visita se tenha realizado neste momento – quando o supremo magistrado francês se viu obrigado a revisitar os aspetos fundamentais da sua política, a repensar a sua postura no quadro da União Europeia e, parece, a relançar e renovar a relação transatlântica da qual, por herança e legado gaulista, a França sempre se habituou a desconfiar. Num absoluto paradoxo, diga-se, se considerarmos que a França é, provavelmente, o mais velho aliado dos Estados Unidos, datando essa aproximação, ainda, da época em que os EUA não tinham acedido à independência e mais não eram do que um somatório de territórios e colónias britânicas mas, também, francesas.
Culminando a referida visita de Estado, Barack Obama e François Hollande assinaram um texto conjunto publicado no The Washington Post e no Le Monde, que levou o sugestivo título “França e Estados Unidos, desfrutando de uma aliança renovada”. No puro plano dos princípios apetece dizer que era impossível escolher momento mais adequado do que este para assinar um texto tão cheio de boas intenções e tão afirmativo em relação à renovação da aliança transatlântica entre os EUA e não a França em particular mas, no momento presente, a própria União Europeia no seu todo. Resta saber – e isso só o tempo permitirá saber – se os princípios acordados e as bases de renovada colaboração entre os dois lados do Atlântico norte serão para levar a sério e ter alguma concretização prática ou se, pelo contrário, serão remetidos para o baú das declarações piedosas, cheias de boas vontades mas absolutamente desprovidas de qualquer conteúdo prático.
Por outro lado, e por paradoxal que também possa parecer, François Hollande será, talvez, no momento que passa, quem se encontra em melhor posição para relançar o diálogo e refazer as pontes entre as duas margens do oceano. A sua debilidade política interna pode constituir estímulo suficiente para se empenhar em reconstruir pontes que muitos – entre os quais alguns dos seus antecessores no cargo – se entretiveram a desfazer e a destruir. É, como soe dizer-se, uma janela de oportunidade que Hollande, se não se distrair com outras questões domésticas, poderá aproveitar. Até porque, do lado europeu, não abunda quem queira ou possa corporizar o renascimento dessa ponte.
Merkel lidera a maior economia europeia – mas, talvez por isso mesmo, encontra-se mais preocupada em reforçar e expandir a sua influência na União Europeia do que, propriamente, empenhada em estreitar os laços da União com o aliado norte-americano.
Cameron, que poderia rivalizar ou disputar a missão com Hollande – e em certa medida até poderia desfrutar de algumas vantagens comparativas relativamente ao ocupante do Eliseu – tergiversa na sua postura europeia, profundamente manietado por uma ala assumidamente eurocética do seu partido, oscilando entre o anúncio de um referendo em 2017 sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia e o recurso ao orçamento de Bruxelas para solicitar apoio financeiro que lhe permita fazer face às agruras da natureza que tanto tem castigado e fustigado o seu país – inaugurando uma postura política que, por simplicidade de linguagem, já defini e qualifiquei como “fora quando convém, dentro quando precisa”.
Não abundam, assim, as alternativas e as hipóteses para dar corpo ao renascimento da relação transatlântica. E, sobretudo, para a Europa da União, essa relação afigura-se como absolutamente fundamental e decisiva. Mais do que para os próprios Estados Unidos. Estes têm sempre o caminho do Pacífico como destino natural e alternativo à sua vocação atlântica. A Europa da União é que não tem alternativa à sua aliança com os EUA. Na sua retaguarda depara com uma renascida ambição territorial protagonizada por uma Rússia renovada nos seus desejos de alastrar a sua influência pelo continente europeu e por um novo “cordão sanitário” que, lentamente, se começa a desenhar. Resta-lhe, por exclusão de partes mas também por cumprimento e respeito por um indeclinável desígnio histórico, recuperar e reconstruir a velha aliança transatlântica com o aliado norte americano – afinal, as duas faces dum Ocidente profundamente em crise e desnorte, a viver o seu Outono sem bússola para parafrasearmos Adriano Moreira, do qual só poderá sair se, desde logo e como condição sine qua non, as suas principais partes componentes e integrantes se entenderem e se congregarem.
Hollande, se tiver juízo, poderá a vir a ter, aqui, a sua oportunidade. E não conviria desperdiçá-la porque poderá não ter muitas mais. A mesma água do rio não costuma passar duas vezes debaixo da mesma ponte.

A democracia europeia

Uma das grandes virtualidades que definem a superioridade ética e moral do sistema de governo democrático, por referência aos demais conhecidos, reside justamente no facto de as democracias serem o único dos sistemas de governo conhecidos ou inven­tados que admitem, aceitam e toleram no seu seio a atividade dos seus próprios ad­versários e dos seus próprios inimigos. As democracias, e em especial as democracias de matriz ocidental, caracterizam-se, entre outros aspectos, por permitirem e aceita­rem que beneficiem das suas regras não só aqueles que as respeitam e as cumprem como, inclusivamente, os que delas se aproveitam para tentarem a sua destruição e ensaiarem o seu desmoronamento. É essa, repete-se, a enorme vantagem ética e mo­ral que as democracias evidenciam relativamente a todos os demais sistemas de go­verno. Foi uma das razões, seguramente, que ditaram o velho aforismo atribuído a um dos maiores vultos da política do século XX – Winston Churchill, o estadista que venceu a segunda guerra mundial e logo a seguir perdeu as eleições legislativas no Reino Unido – quando afirmou a democracia como o pior dos sistemas existentes…. com ex­ceção de todos os restantes.
O princípio aplica-se a todas as formas de organização política da sociedade que são conhecidas, de forma especial o Estado. Mas, também, para as de âmbito infra-esta­dual. E também para as de carácter supranacional – e, dentro destas, de forma parti­cular, para a União Europeia. A União Europeia, independentemente da qualificação doutrinária em que se enquadre – e isso não é matéria para ser abordada ou desen­volvida neste local – é, seguramente, uma forma nova, original, de organização política da sociedade, de âmbito supranacional ou, talvez mais corretamente, supraestadual. Mas essa novidade ou originalidade que a caracteriza não lhe retira um pilar fundamental – a União Europeia assenta, entre outros, num pilar democrático, ti­pificador dos Estados de direito que a integram e que se estende à própria organiza­ção. É, por definição e simplificação, uma organização política de âmbito supraesta­dual, de direito e democrática.
Vem isto, ainda, a propósito do próximo ato eleitoral para o Parlamento Europeu, no próximo dia 25 de maio. E, sobretudo, a propósito de algumas projeções ou estudos de opinião que começam a surgir e que revelam a forte probabilidade de o próximo Par­lamento Europeu poder vir a ser integrado por cerca de um terço de eurodeputados que, provenientes tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita, poderão coin­cidir numa acérrima e violenta crítica do projeto europeu, quando não, mesmo, numa crítica feroz à existência da própria União Europeia. Serão eurodeputados que, legiti­mamente e beneficiando da democracia que subjaz ao próprio projeto europeu, dela se aproveitarão para questionar, se preciso for, a existência dessa mesma União Euro­peia. Ironias do sistema…
Decerto – não se questiona a existência dessas propostas nem a sua legitimidade. O problema é outro. O problema fundamental é que a generalidade dessas propostas que começam a ganhar forma cada vez mais sustentada revela uma lacuna incontor­nável – sabemos, por regra, aquilo que rejeitam e aquilo que recusam. Pouco ou nada sabemos daquilo que propõem, do que sustentam, do modelo alternativo que podem ter para oferecer ao eleitorado. Sabemos que contestam a globalização, a livre circula­ção de pessoas, o aprofundamento político da União, o reforço das competências das instituições comuns, quiçá mesmo a própria moeda comum europeia. Algumas dessas críticas revestem inequívoca pertinência. A questão, porém, permanece em aberto: tudo em nome de quê? Convenhamos – ainda ninguém no-lo explicou, de forma sis­temática, de forma coerente, de forma global. E aí reside a grande debilidade e a grande fraqueza destes movimentos eurocéticos que beneficiam dos tempos de crise para capitalizarem descontentamentos, congregarem desconfianças e, muito prova­velmente, somarem (muitos) votos. E este é o verdadeiro drama que as próximas elei­ções para o Parlamento Europeu podem revelar – um forte descontentamento tradu­zido ou numa elevada abstenção ou num significativo reforço dos que, beneficiando e aproveitando a matriz democrática da União, apenas se estruturarão em torno de um voto de protesto em movimentos relativamente aos quais sabemos apenas o que não querem mas ignoramos quase por completo aquilo que querem.
Na passada semana, entre nós, tivemos oportunidade de ter um conhecimento prático deste drama – com pompa e circunstância foi anunciada e realizada, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, uma conferência por Bernd Lucke, Professor de Economia na Universidade de Hamburgo e líder do novo partido alemão Alternativa para a Alemanha (AfD). Como era expectável, proliferaram as críticas à União Europeia tal qual a mesma existe. Muitas delas válidas e pertinentes. Assertivas, mesmo. Duas notas, porém, merecem destaque: a assistência conseguiu reunir desde proeminentes figuras da nossa esquerda e extrema-esquerda a relevantes protagonistas da nossa di­reita e extrema-direita. De permeio, uma mão-cheia de almas intelectualmente hones­tas, sérias, academicamente relevantes. Unidas, por certo, nas críticas que se escuta­ram naquela sala. Mas absolutamente incapazes de protagonizarem, pela positiva, uma alternativa credível e politicamente consistente.
Deste drama a União Europeia ainda não se libertou. Nem se afigura plausível que se liberte até ao próximo mês de maio.
Post scriptum – No passado domingo, por iniciativa do Partido do Povo, de extrema-direita, em referendo popular, os suíços votaram a introdução de limitações à entrada e permanência de emigrantes no país, incluindo os provenientes dos Estados da União Europeia, retornando a um sistema de quotas ou contingentes. Desde logo uma clara injustiça – em muitos sectores económicos, têm sido os emigrantes na Suíça os grandes responsáveis pela onda de prosperidade que o país conhece. Se levarmos em consideração que a Confederação Helvética possui vários acordos com a União, nomeadamente em matéria de liberdade de circulação de pessoas, no âmbito de Schengen, teremos que os mesmos deverão ser alterados e renegociados a curto prazo. É, em toda a sua plenitude, o regresso em força de uma clara manifestação nacionalista que vai afastar a Suíça da Europa da União e fechá-la sobre si mesma. É um mau presságio para o que pode estar por diante. Pode ter sido o primeiro passo no sentido do retorno a uma Europa fechada e nacionalista, derrubando e destruindo um caminho lentamente edificado no último meio século. É pena.

O debate europeu

O debate que urge ser realizado e não pode nem deve passar ao lado das próximas eleições para o Parlamento Europeu, é um debate de âmbito político e natureza euro­peia. É necessário compreender que no próximo dia 25 de maio não se realizarão 28 eleições nacionais para o Parlamento Europeu mas, pelo contrário, ocorrerá uma única eleição que se desenvolverá nos 28 Estados-Membros da União Europeia.
Parecendo ser a mesma coisa são, todavia, coisas substancialmente diferentes!
A principal consequência a retirar desta definição prende-se, inquestionavelmente, com o objectivo do próprio ato eleitoral. Ao contrário do que alguns se têm empe­nhado em propalar – inclusivamente muitos que têm acrescidas responsabilidades em evitar o equívoco – o ato eleitoral para o Parlamento Europeu não tem, nem pode ter, por finalidade emitir um qualquer juízo de valor, no plano político, sobre os governos de turno de cada um dos Estados da União. Apelar para que se aproveitem as eleições para o Parlamento Europeu para censurar ou mostrar cartões aos governos nacionais, não significa cometer um erro. Significa cometer dois erros, qual deles o mais grave.
O primeiro, consiste em perverter por completo o sentido e a finalidade das referidas eleições europeias. Os governos nacionais, todos eles e em todos os Estados da União, devem ser julgados no momento adequado e esse é, obviamente, o momento de reali­zação de eleições legislativas. Não é, nem pode ser – sob pena de estarmos a desvir­tuar o próprio sistema – o momento de realização de quaisquer outros atos eleitorais e, nomeadamente, o ato eleitoral para a Assembleia de Estrasburgo. Os governos jul­gam-se e avaliam-se em eleições legislativas.
O segundo erro em que tal visão nos poderá fazer incorrer tem a ver com o facto de, tal entendimento, equivaler a desperdiçar mais uma oportunidade soberana para se efetuar um debate sério e aprofundado sobre a Europa e os caminhos que esta pode vir a trilhar. E, se se desperdiçarem estas oportunidades que não abundam, reconhe­çamo-lo, fenece em absoluto qualquer legitimidade para se criticar a falta de debate europeu e a falta de uma dis­cussão séria e aprofundada sobre as questões europeias. Não existe momento mais nobre e mais sério, e também mais adequado, para uma discussão e um debate sério sobre a Europa do que aquele que antecede a realização de um ato eleitoral para o Parlamento Europeu. É, por excelência, o tempo de discutir a Europa: as diferentes visões que possam existir, os diferentes modelos que se apre­sentem, os projectos alternativos que se estruturem. Perder a oportunidade ou des­perdiçar o momento significa, por isso, errar duas vezes.
A estes factores acresce um outro, de natureza conjuntural, que contribui para conferir uma maior importância e um maior relevo às próximas eleições europeias: é a primeira vez que as mesmas se realizam em 28 Estados europeus; é o acto eleitoral que, poten­cialmente, mais cidadãos europeus poderá chamar às urnas. Nunca foram tantos os Es­tados onde se realizarão as próximas eleições europeias; nunca foram tantos os euro­peus com capacidade eleitoral activa para exercerem o respectivo direito de voto.
E tudo se passa num momento em que, subliminarmente, se ratificará uma evolução da União Europeia que nunca foi sufragada pelo voto popular mas que é absoluta­mente irrefutável e, quiçá, irreversível. Esta UE que verá a sua instância parlamentar ser renovada já tem muito pouco ou quase nada a ver com a sua antecessora – as Co­munidades Europeias geradas no imediato pós-guerra. Se estas, produto da guerra-fria, se configuravam como uma organização de âmbito subregional, representando “metade de meia Europa”, da Europa dita Ocidental, mas de cariz eminentemente económico e assente numa visão humanista e personalista do fenómeno político que as gerou, a União Europeia dos nossos dias, pelo contrário, é basicamente um produto do mundo globalizado e da contemporaneidade, o grande espaço por excelência de âmbito continental, que ambiciona representar a totalidade do Velho Continente, re­vestindo uma natureza tendencialmente paneuropeia.
Ora, em cima da mesa do debate político europeu que antecederá o próximo ato elei­toral para o Parlamento de Estrasburgo não poderão deixar de estar os desígnios que esta nova União Europeia terá de assumir nos tempos mais próximos – na sua dimen­são interna mas, também, na sua dimensão externa. Ambos os desafios são absoluta­mente incontornáveis e o debate sobre ambos não pode deixar de ser travado. Des­centrar a atenção desses desígnios é um risco demasiado que não pode nem deve ser repetido. Significará, seguramente, contribuir para tornar esta nossa Europa cada vez mais irrelevante neste mundo de grande espaços, globalizado e cada vez mais pe­queno.
É um pouco de tudo isto que se curará quando chegar o momento de formular um juízo e uma opção de voto nas eleições europeias. Confundir ou misturar estes objectivos e estas questões com assuntos de política doméstica e caseira não parece a opção mais sábia nem a escolha mais acertada. E se todos nós, europeus, beneficiamos duma cidadania comum que nos foi atribuída como factor integrador e que tem no exercício do poder de voto para o Parlamento Europeu uma das suas mais relevantes expressões políticas, é-nos exigido, no mínimo, o bom uso desse direito. É a forma que temos de contribuir para a construção, no plano supranacional, dum futuro que a todos diz cada vez mais respeito.

Ainda a Ucrânia

Continuam a ser de extrema gravidade as notícias que nos chegam de Kiev. Merecem, por isso, atenção e meditação mais aprofundada e reflexão mais ponderada. O que co­meçou por ser uma reação popular à opção do Presidente Viktor Yanukovytch, de se recusar a assinar o acordo de parceria estratégica oriental com a União Europeia, na Cimeira de Vilnius de final de 2013 – para não hostilizar Putin nem fazer a Rússia per­der influência estratégica naquela parte sensível do leste europeu – volveu-se, célere, num protesto inorgânico onde, para além da aproximação à União Europeia, os ucrani­anos saíram para a rua reclamando, igualmente, uma série de reivindicações de pura política interna, que iam da libertação imediata da antiga primeira-ministra Yulia Timo­chenko – detida em prisão hospitalar – à demissão imediata do governo liderado por Mykola Azarov.
À voz da rua o poder respondeu como soube – primeiro ignorando as manifestações e as ruas; depois, apovando legislação para as proibir; seguidamente, pretendendo alargar a sua base de apoio com recurso a uma mesa re­donda com os três primeiros chefes de Estado da Ucrânia independente – respetiva­mente Viktor Yushenko, Leonid Kutchma e Leonid Kravchuk; finalmente, recorrendo à razão da força e à mobilização do poderio militar com tanques e militares espalhados pelas principais artérias de Kiev e das principais cidades ucranianas. Debalde – quanto mais o poder foi reagindo e subindo a parada da resposta, mais se fortaleciam os pro­testos e mais se organizava e reforçava a oposição. E maiores foram sendo as exigên­cias dos manifestantes e mais se estruturavam as suas reclamações.
Numa última cartada, que parece ter tanto de derradeira quanto de desesperada, Yanukovytch ousou fazer o impensável há escassas semanas – ofereceu, literalmente, à oposição, a partilha do poder, disponibilizando-se a ceder aos seus opositores a ca­beça do chefe do governo, permitindo àquela indicar tanto o futuro vice-primeiro-mi­nistro como o próprio futuro primeiro-ministro do país.
Vem nos livros e está consagrado no vasto leque de regras não escritas a que obedece a ciência política e o exercício e a manutenção do poder político – quando o titular deste se dispõe a partilhá-lo voluntariamente com adversários, opositores e inimigos, como resultado da força manifestada na rua, esse poder político aproxima-se a pas­sos largos do seu estertor final. Está condenado à queda e à sua substituição. Restará, sempre, em aberto uma questão fundamental – saber que danos e que estragos po­derá, ainda, provocar até ao seu abandono e à sua queda definitiva. Abundam, nos anais da história, os exemplos que demonstram à saciedade a regra não escrita acabada de enunciar.
No caso ucraniano, porém, há condicionantes externas que não podem deixar de ser levadas em consideração. A mais importante reside na postura que o Kremlin poderá vir a assumir nesta questão. Putin já deu suficientes sinais de que não está disposto a tolerar a perda da influência russa num território vizinho que se lhe afigura de vital im­portância estratégica para os interesses económicos russos. Dificilmente condescen­derá com um poder em Kiev que privilegie olhar para o ocidente em vez de olhar para leste. Dificilmente aceitará que a zona de influência da União Europeia che­gue à sua fronteira ocidental. É verdade que o império soviético implodiu há mais de duas décadas, mas a “doutrina Brejnev”, da soberania limitada, parece ter adquirido um novo protagonista e um novo intérprete. A segunda condicionante será (seria) a reação de Bruxelas. Acontece que, nos últimos dias, a União Europeia, relativamente à questão ucraniana, tem oscilado entre um silêncio ensurdecedor e a simples enunciação de declarações piedosas. A própria Lady Ashton, Alta-Representante para a Política Externa da União Europeia, anda desaparecida (s)em combate. Herman van Rompuy e Durão Barroso devem ter assuntos prioritários e mais urgentes nas suas agendas. E as principais reações de que há nota têm sido tomadas, individualmente, pelos mais importantes Estados da União. Tanto a Alemanha como a França, por exemplo, anunciaram chamar os embaixadores ucranianos acreditados em Berlim e em Paris para lhes transmitirem a sua condenação pela legislação anti-manifestações aprovada em Kiev e pelas reações violentas determinadas pelo governo de Kiev. Ou seja – em matéria de política externa e de segurança, a UE está a léguas do que diz pretender ser e construir. E, uma vez mais, refém das posições – e dos interesses – dos seus maiores Estados. É a manifestação clássica do directório. Daquilo para que, cada vez menos, a UE deveria caminhar mas, infelizmente, daquilo para que cada vez mais parece dirigir-se.
No caso concreto, o défice de União Europeia não deve distrair-nos nem desligar-nos do que se passa na Ucrânia. Que, se não beneficiar da sabedoria dos seus dirigentes, pode estar a um passo da guerra civil. E esse sim – seria mais um problema que a Europa, a da União ou a restante, bem pode dispensar. Porque se todos os conflitos armados são potencialmente dramáticos, nenhum assume o grau de dramatismo e de horror das guerras civis. Basta recordarmo-nos do que aconteceu na ex-Jugoslávia e no processo que ditou a sua implosão, no início dos anos noventa do século passado, para sabermos daquilo que estamos a falar. E se não temos Europa, tenhamos, pelo menos, memória.