Notas sobre as eleições europeias

Em termos europeus, em muitos países, nomeadamente em Portugal, praticamente dois em cada três cidadãos viraram as costas ao ato eleitoral e recusaram-se a participar na elei­ção da única instituição europeia eleita por sufrágio direto, secreto e universal. Na Eslová­quia, por exemplo, votaram 13% dos eleitores! Sim – 13%. É uma constante que conti­nua a afirmar-se e que deve levar os responsáveis europeus a meditarem e refleti­rem muito seriamente sobre o futuro do próprio projeto europeu. Sob pena de o mesmo poder es­tar definitivamente comprometido. A construção da unidade europeia ou consegue envol­ver a cidadania ou, se restrita às elites, deve ter-se por condenada a prazo não muito longo.
Com os resultados conhecidos, à dimensão europeia, a grande ilação a retirar-se do ato eleito­ral resulta no estreitamento dos partido do centro clássico europeu – o PPE conti­nua a ser o maior partido do Parlamento Europeu; o Partido Socialista Europeu continua a ser o segundo partido mais votado. Ambos, porém, perderam votos e, portanto, no seu con­junto, possuem uma representação diminuída na Assembleia de Estrasburgo.
Como contrapartida e consequência, assistimos ao reforço dos extremismos – quer à es­querda, quer à direita. São propostas geralmente radicais, antieuropeias, eurocéticas, de pen­dor ideológico diversificado mas que convergem em muitas soluções concretas que afe­tam e atacam a essência do projeto europeu tal qual o conhecemos e o vivencia­mos (da moeda única à livre circulação de pessoas, por exemplo).
Há exemplos marcantes desse reforço extremista – em França, a Frente Nacional de Ma­rine Le Pen obtém mais de 25% dos votos, a UMP gaulista fica-se pelos 20% e os socialis­tas do Presidente Hollande e do Primeiro-Ministro Manuel Valls não atinge, sequer, os 15%. Algo de qualitativamente semelhante, ainda que não atingindo a mesma expressão numé­rica, ocorreu na Áustria, na Dinamarca, no Reino Unido. E também na Grécia.
Grécia que, continuando a ser um Estado intervencionado pela troika, puniu fortemente os par­tidos centristas e moderados pró-europeus (nomeadamente a Nova Democracia e o PASOK) em benefício dos partidos extremistas: a Aurora Dourada, à direita, e o Syriza, à es­querda, que conseguiu vencer o partido de Samaras.
A acrescer a tudo isto – uma pulverização de populismo e candidaturas de difícil enquadra­mento que apenas contribuirão para pulverizar, descaracterizar e descredibili­zar o próprio Par­lamento Europeu.
Daqui resultará, com toda a certeza, acrescida dificuldade em formar a próxima Comis­são Euro­peia. Decerto: Jean-Claude Juncker, na qualidade de candidato do maior partido do Parla­mento Europeu já veio recordar a sua legitimidade para o cargo. Faltam, porém, dois “por­menores” essenciais: ser indicado por 2/3 dos governos dos Estados-Membros da União e, sobretudo, conseguir reunir no Parlamento Europeu os votos necessários à sua elei­ção. Se a primeira condição poderá ser tida por menos difícil de atingir, já a elei­ção pelo Parlamento Europeu exigirá um mínimo de 376 votos numa Assembleia onde o PPE dis­porá apenas de cerca de 212 deputados (os números definitivos ainda não estão apu­ra­dos no momento em que este texto é escrito). E, tendo os partidos socialista e libe­ral candida­tos próprios ao cargo, não se deverá dar por adquirido que seja linear qual­quer acordo entre os democratas-cristãos e qualquer outro dos seus tradicionais alia­dos. Mais logo os chefes de Estado e de governo dos 28 vão jantar em Bruxelas. É de su­por que este seja o prato principal do menu.
No que a Portugal diz respeito, e se é verdade que estas eleições não deixaram de ter uma lei­tura política interna, então também várias conclusões se poderão formular.
Desde logo – o Partido Socialista venceu as eleições; o PSD/CDS perderam as eleições. Ocorre, porém, que o PS ganhou as eleições com o mais escasso resultado que lhe era exi­gido obter ao passo que o PSD/CDS perderam as eleições com o menor resultado al­guma vez obtido por ambos os partidos. Isto é: a “direita” sofre derrota estrondosa que Se­guro não capitaliza nem aproveita. Seguro volve-se, assim, no maior seguro da coliga­ção de di­reita.
Quer isto dizer que o eleitorado quis punir a coligação de governo responsável pelo austerita­rismo dos últimos anos; mas não deu mostras de ser desmemoriado e lembra-se bem quem conduziu o país ao estado a que ele chegou e quem, inclusivamente, cha­mou a troika.
Significa isto uma evidência: se estes resultados fossem transpostos para eleições legislati­vas, o país estaria, a esta hora, ingovernável. Cenário negro, portanto.
Mas há três notas de relevo que, igualmente, não podem deixar de ficar registadas.
Por um lado, o Bloco de Esquerda trilha, de forma sustentada a sua cruzada para o esta­tuto de partido irrelevante e dispensável. O Livre, partido unipessoal resultante da cisão do BE, alcançou praticamente metade dos votos do BE. Isto diz tudo da sua sustentabili­dade e da sua relevância.
Mas houve óbvios vencedores desta eleição, se encaradas no puro plano nacional: a CDU e Ma­rinho e Pinto.
A CDU deu mostras de trilhar caminho inverso ao do BE, retomando lentamente o cami­nho da sua sustentabilidade.
Marinho e Pinto arrendou um partido político, sem qualquer máquina ou implantação, fez-se à estrada, gritou o que muito eleitorado contestatário queria escutar e foi eleito depu­tado europeu. Sem que se lhe conheça uma linha de pensamento ideológico ou doutriná­rio sobre questões europeias. E isso talvez diga tudo sobre a forma como estas elei­ções fo­ram encaradas e vividas.
Para terminar esta breve análise, mas porque é de eleições europeias que estamos a falar (ape­sar de frequentemente não o ter parecido) e por muito politicamente incor­reto que seja afirmá-lo, acabei de assistir à noite eleitoral com uma verdadeira “dúvida exis­tencial”: se pensarmos que, até 1979, o Parlamento Europeu era composto por deputa­dos eleitos indire­tamente pelos Parlamentos dos Estados-Membros, não sei se, na altura, a sua verda­deira legitimidade democrática não seria superior àquela que atual­mente reclama e reivin­dica….

O hábito e a rotina

Assinalou-se, no passado dia 9, mais um “Dia da Europa”. Como o hábito e a rotina retiram importância às coisas, este último 9 de maio passou, praticamente, despercebido e ao lado da atenção da opinião pública – da portuguesa e, também, da europeia. Não se tratou, infelizmente, de um facto restrito a Portugal. Cá, como um pouco por essa Europa fora, as “comemorações” do 64º aniversário da Declaração Schuman ficaram restritas a um conjunto reduzido do que poderíamos chamar de uma certa “elite europeia”. Distante, todavia, dos cidadãos. Distante, porém, da cidadania europeia.
Quando, mais do que nunca, se impunha convocar os cidadãos europeus para a causa europeia, promovendo e divulgando o ideal europeu, vimos a Europa da União e as suas instituições de costas voltadas para os cidadãos e desperdiçar uma oportunidade de excelência para difundir pelo Velho Continente os princípios e os valores que estiveram na génese e na essência do projeto europeu que reconstruiu e reergueu a Europa da ruína e da tragédia da segunda guerra mundial. E se havia ano em que, mais do que nunca, se impunha apostar na divulgação desse espírito e desse ideal, esse ano era justamente este de 2014. Fundamentalmente por três razões.
Em primeiro lugar porque, lá longe, quase nos confins deste velho continente e bem perto da sua fronteira leste, a Europa enfrenta uma situação que, a cada dia que passa, assiste à escalada da conflitualidade com o diferendo russo-ucraniano a aproximar-se de perigosos patamares bélicos e com a Ucrânia a ser praticamente dizimada e transformada em Estado inviável ou desmembrado por ação direta das forças oficiais e oficiosas que atuam a soldo do Kremlin. Como a generalidade dos observadores já constatou e reconhece sem dificuldade, se excecionarmos a guerra que se seguiu ao desmantelamento da ex-Jugoslávia, nunca desde a queda do Muro de Berlim e do fim da guerra-fria a Europa esteve tão perto de conhecer um conflito militar de dimensões imprevisíveis. Com este cenário de fundo, retornar ao pensamento, à obra e aos princípios dos pais fundadores teria sido de elementar bom-senso e de inquestionável oportunidade.
Em segundo lugar porque, por muito que isso custe aos governantes de turno que ocupam as lideranças governativas atuais, a crise em que a União Europeia se encontra mergulhada está longe de ser debelada e ultrapassada. Sobretudo na vertente da união económica e monetária, há ainda um caminho imenso pela frente. É, hoje, pacífico, que o Tratado de Lisboa não dotou a União dos instrumentos necessários à sua integração e ao seu aprofundamento em matéria de união económica e monetária. E como ainda esta semana recordava, com absoluta razão, Viriato Soromenho Marques, dá-se hoje a particularidade de o principal instrumento jurídico que determina os rumos da União ser um tratado orçamental que não integra o direito comunitário, que nasceu à margem das instituições europeias, de clara feição intergovernamental e que, para cúmulo, não vincula todos os estados membros da União. Mas é essa, não tenhamos quaisquer dúvidas a respeito, a principal norma jurídica que hoje comanda a vida da União Europeia e determina a atuação tanto dos seus Estados-membros (nomeadamente condicionando as suas opções políticas internas) como das próprias instituições comunitárias. É um paradoxo mas não é por isso que deixa de ser uma verdade inquestionável. Ora, com a crise ainda por debelar e resolver, com imensas incertezas sobre o nosso futuro coletivo, retornar aos valores fundacionais e assinalar devidamente e condignamente o “Dia da Europa” era tarefa que se impunha de sobremaneira.
Em terceiro lugar porque o último 9 de maio antecedeu em duas escassas semanas o próximo ato eleitoral para o Parlamento Europeu. E quando por toda a Europa perpassa o fundado receio de os cidadãos virarem as costas ao sufrágio e refugiarem-se na sempre cómoda situação abstencionista, sensibilizar para os valores da cidadania europeia – de onde emerge e se destaca o direito a eleger o Parlamento Europeu – era o mínimo que se podia esperar. E exigir. Foi, também aqui, (mais) uma oportunidade perdida. Lamentavelmente perdida e desperdiçada.
À falta de outras e melhores razões, estas três sinteticamente enunciadas seriam mais do que suficientes para se ter assinalado o Dia da Europa como se exigia e o projeto europeu merecia. Rompendo com o hábito e a regra que, de tanto repetidas, retiram relevo e importância aos factos e aos acontecimentos. Como estes momentos simbólicos não abundam, cada oportunidade que se deixa passar, é uma oportunidade perdida e desperdiçada. E cada oportunidade que se perde ou desperdiça, não volta nem se repete. E desengane-se quem pensa que a ideia de Europa se constrói, se alimenta ou se mantém restringindo-a às elites bem formadas ou bem-pensantes ou aos gabinetes atapetados por onde circula a eurocracia. Porque o projeto europeu ou é sentido e vivido pelos cidadãos da Europa ou está condenado a médio prazo. E para isso é preciso ir muito além do hábito e da rotina que, por norma e regra, dão corpo e forma a estes momentos simbólicos de que o projeto europeu tem de se ir permanentemente alimentando.

Consummatum est

Como era expectável há muitas semanas, o Primeiro-Ministro anunciou a saída de Por­tugal do programa de ajustamento de forma dita “limpa”. Dando de barato conside­rarmos que não existem saídas limpas, como já tivemos oportunidade de esclarecer várias vezes, o que foi dito ao país é que, a partir de 17 de maio próximo, ficaremos entregues a nós próprios, à nossa capacidade de nos financiarmos nos mercados inter­nacionais, sem beneficiarmos de qualquer programa cautelar ou rede de proteção que as vozes mais avisadas aconselhavam e defendiam. Para que não haja dúvidas – é muito melhor esta solução do que um novo resgate; talvez a solução de uma linha cau­telar de apoio se mostrasse mais avisada e prudente. São opções.
A comunicação de Pedro Passos Coelho foi muito mais política do que técnica – e por isso deixou sem resposta algumas questões a que era suposto ter respondido. A pri­meira de todas elas – a de esclarecer, cabalmente, se a opção tomada é a que melhor convém a Portugal ou se, pelo contrário, a que nos foi imposta pelas instituições inter­nacionais. Estas estão sedentas de casos de sucesso e focadas nas próximas eleições europeias. Decerto: o clima não aconselha, em nada, ter de negociar um programa cautelar com Portugal, seja lá o que isso seja ou fosse. Para mais, um tal programa te­ria de ser votado, entre outros, no Parlamento alemão, coisa que parece não agradar a ninguém. E nesta fase de eleições europeias, as próprias instituições parece terem ou­tras prioridades nas suas agendas.
Passos Coelho assenta a opção efetuada na verificação de quatro pressupostos: 1) o apoio dos nossos parceiros europeus; 2) a existência de reservas financeiras para um ano, que nos protegem de qualquer perturbação externa; 3) a confiança dos investido­res e os juros da dívida a níveis historicamente baixos; e 4) excedentes externos como não acontecia há décadas. Nenhum destes quarto pressupostos, reconheçamo-lo, nos garante uma condição de segurança a prazo médio. Mas também é verdade que a op­ção agora tomada não faz precludir nem prejudicar, nesse prazo médio, o recurso, se necessário, a uma linha cautelar ou de apoio que agora foi recusada, Dir-se-á – do mal o menos.
Duas situações, porém, de claro recorte político, não podem deixar de ser evidencia­das.
A primeira tem a ver com o facto de, um tanto apressadamente, se estar a querer fazer passar a ideia que, terminado o período de ajustamento, após 17 de maio, Portugal fi­cará definitivamente livre da troika. Era bom, mas não corresponde à verdade. Após 17 de maio Portugal entrará num programa de monitorização pós-troika ou pós programa de ajustamento. Já não trimestralmente mas semestralmente, continuaremos a ser vi­sitados pela troika. E assim sucederá até que tenhamos pago 75% dos 78MM€ que nos foram emprestados. No que ao FMI diz respeito – perante quem começaremos a pagar a nossa dívida a partir de 2015 – serão ainda 6 anos de prestação semestral de contas; no que diz respeito às instituições europeias que nos emprestaram dinheiro, os 75% dos pagamentos estender-se-ão até 2035. Durante mais 20 anos, portanto. Logo, de­sengane-se quem pense que se vai ver livre da troika nos tempos mais próximos. Não vai. Pelo menos durante mais 20 anos, continuaremos a ter de prestar contas a quem nos emprestou dinheiro.
A segunda questão que se impõe evidenciar tem a ver com uma associação implícita ou sub-reptícia que se pretendeu efetuar – e pareceu perpassar ao longo de todo o discurso do Primeiro-Ministro – entre o momento de saída da troika e o conceito de fim da austeridade ou das políticas austeritárias que têm sido seguidas ao longo dos úl­timos anos. Associar ambos os factos é erro grave. Não ser por efeito da saída da troika ou do fim do programa de ajustamento que o laxismo pode voltar às contas públicas e às finanças do Estado.
O DEO – Documento de Estratégia Orçamental – apresentado esta semana é claro a indiciar esse caminho. Por isso escrevi que nos arriscamos a ficar livres da troika mas agrilhoados ao DEO. Decerto – ao não ser consensualizado, sobretudo com o principal partido da oposição, este Documento com uma ambição de vigência até 2018 arrisca-se a ter como prazo de validade apenas o ano de 2015, a vigência da atual governação de turno do país. Nessa data, as novas eleições legislativas dificilmente permitirão que as medidas enunciadas na dita estratégia orçamental de médio prazo do país possa continuar a ser uma realidade. Independentemente das medidas lá previstas, todavia, a vinculação do país ao Tratado orçamental europeu e às suas principais metas (défice estrutural de 0,5% e dívida pública máxima de 60% do PIB a alcançar num prazo de 20 anos) as tais condições que, no Prefácio aos Volume VIII dos seus Roteiros, Cavaco Silva explica que só se poderão alcançar por Portugal, no caso da dívida pública, de forma bastante exigente, tendo em conta que se prevê que, em 2014, a dívida pública seja superior a 126% do PIB. E, pressupondo um crescimento anual do produto nomi­nal de 4% e uma taxa de juro implícita da dívida pública de 4%, para atingir, em 2035, o valor de referência de 60% para o rácio da dívida, seria necessário que o Orçamento registasse, em média, um excedente primário anual de cerca de 3% do PIB. Em 2014, prevê-se que o excedente primário atinja 0,3% do PIB.
Em síntese – consumou-se a saída, impropriamente dita como limpa, de Portugal do seu plano de assistência financeira. Não se consumou, nem de longe nem de perto, a saída da estrada de Damasco que teremos de percorrer por muitas e longas décadas.

São João Paulo II e a unidade europeia

A Igreja Católica viveu, neste último fim de semana, um momento simbólico e verda­deiramente histórico: dois Papas (o amado Papa Francisco e o Papa emérito Bento XVI) canonizaram dois antecessores (o Papa mineiro João Paulo II e o bom Papa João XXIII). Nunca, até hoje, a cristandade havia presenciado um momento assim. Um momento histórico, no sentido verdadeiro e literal da palavra.
João Paulo II, para os fiéis crentes, ascende, assim, aos altares com a dignidade de Santo, sobretudo pela sua vida, pelo seu exemplo, pela sua práxis, reforçado tudo isto com os milagres que lhe foram atribuídos. Foi um Papa do nosso tempo – e no nosso tempo foi um notável projetista da paz.
De facto, quando em 16 de Outubro de 1978 o mundo cristão se aperce­beu que saía fumo branco da Ca­pela Sistina, anunci­ando, urbi et orbi, a eleição de um novo Papa – de um Papa eslavo e, sobretudo, de um Papa polaco – para suces­sor de Pedro, nin­guém so­nhou estar a pre­sen­ciar o primeiro passo no sentido de ser ultra­passado o condi­cio­na­lismo bi­polar e a artificial di­visão da Eu­ro­pa em dois blocos emer­gente do mundo da guerra-fria no pós-se­gunda guerra mundial. O certo é que a imagem serena e tutelar, provi­dencial­mente inspiradora, do novo Pontí­fice e a sua permanente dou­tri­na­ção em prol da cons­tru­ção da paz na Eu­ropa e no Mundo viriam a as­sumir-se como ver­da­dei­ra­mente determi­nan­te sem to­dos os acontecimentos que se su­cede­ram na Eu­ropa Central e de Leste no último ano da dé­cada de oi­tenta e nos primeiros anos da dé­cada de no­venta. A Cristandade pas­sava a dis­por de um Pastor que, pela sua vida, era ele pró­prio exemplo con­creto de luta contra a opressão e a sub­missão. Contra o totalitarismo e a tira­nia. Mesmo as­sim, quando a 17 de Agosto de 1980 os operários pola­cos em greve nos es­ta­leiros de Gdansk colo­cavam lado-a-lado, em lugar de desta­que, presidindo às suas mani­festa­ções e às cerimónias reli­gio­sas que celebravam e pre­sos às grades dos portões des­ses mesmos es­talei­ros, a imagem da Virgem Negra de Czesto­chowa, a ban­deira do “Soli­darnosc” e a fotogra­fia de João Paulo II, pou­cos ou ne­nhuns se aper­ce­be­ram que era o Muro de Berlim que aba­nava e que era a sua pri­mei­ra pe­dra que era derru­bada. E, no en­tanto, era o mundo so­cia­lista e a mai­o­ria dos seus funda­men­tos que estavam a ser postos em causa – no cora­ção da Eu­ropa. E nos seus mais pro­fun­dos ali­cerces. Im­po­tentes, sur­pre­endidos, atóni­tos, o Estado que opri­mia, o Partido que li­dera­va e a No­menkla­tura que gover­nava viam operários em luta subs­tituírem a en­to­a­ção d’A In­terna­cio­nal pelo cântico do «Chris­tus vincit…». Iniciava-se um proces­so lento e mo­roso. Mas ine­lutá­vel – porque irrever­sível. Um processo que teve os seus heróis. En­car­rega­dos de honrar a me­mó­ria dos seus mártires – à cabeça dos quais apare­cerá a figura do jo­vem padre Jerzy Po­pieliu­zko, sa­cer­dote católico pró­ximo do “Soli­darnosc”, rap­tado a 19 de Outubro de 1984 tendo o seu cadá­ver sido en­contrado a 30 de Ou­tubro com marcas e si­nais de tortura abomi­ná­vel.
A Europa, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, pre­sen­ciava uma ver­da­deira re­volução ope­rá­ria. Com a particu­laridade de retirar a sua enorme força dos ser­mões pontifi­cais – e da própria comunhão matinal. E tão profunda nos seus anseios e tão forte nas suas ambições que não se limi­ta­ria ao territó­rio po­laco. Lenta e gra­du­al­men­te era a Pala­vra que era es­palhada e divul­gada; era a Mensagem que era lida e trans­mitida – e que poder algum, so­bre­tudo porque er­rático, pôde tra­var – em Berlim, em Praga, em Só­fia, em Bu­dapeste, em Bucareste, em Vil­nius, em Tal­lin, em Riga, em Mos­covo… Um a um, em es­cas­sos meses, os re­gimes políti­cos do velho Leste Europeu ce­deram de forma completa e ca­pitu­laram de forma to­tal ante a ânsia de li­berdade de po­vos mu­dos de­se­jo­sos de faze­rem ouvir a sua voz e de fazerem es­cutar os seus an­seios. Isso mesmo o Papa-mineiro assumiu logo no início do seu pontificado. Escassos dias após as­sumir a cadeira de Pe­dro, quando visitava Assis, a ci­dade de S. Francisco, um dos San­tos patro­nos de Itália, al­guém supli­cava ao pon­tí­fice que não esquecesse a Igreja do Silêncio. A resposta pronta do Bispo de Roma – “já não é a Igreja do Silêncio por­que fala através da minha voz” – mais do que tran­quilizar quem o inter­pelava vol­veu-se numa constante refe­rência do seu pontifi­cado.
Não existe melhor demonstração da atitude do magistério da Igreja católica sob o pon­tifi­cado de João Paulo II do que o seu re­conhecimento simbólico, a 31 de De­zem­bro de 1980, de S. Cirilo e S. Método, ao mesmo tempo que S. Benoît, como santos patro­nos da Europa. Para João Paulo II não podia existir casa eu­ropeia sem as nações e culturas da Eu­ropa central e oriental. A sua pers­pec­tiva paneuropeia, a sua Europa «do Atlân­tico aos Urais», devia ser encarada como uma garantia contra to­das as tentativas de construir uma Eu­ropa oci­dental que excluísse as na­ções esla­vas.
Por isso João Paulo II – pro­clamando o Verbo em Puebla, ex­cla­mando em Roma que «Foi Deus que ven­ceu a Leste!», exor­tando em Santi­ago os Ho­mens a se­rem Ho­mens e os Jovens a serem Jo­vens, ad­vo­gando a Casa Co­mum Europeia em Es­trasbur­go, enun­cian­do a men­sagem da Paz em As­sis, in­citando ao respei­to pe­las Nações em Nova Ior­que ou con­denando o capita­lismo sel­vagem com a mesma vee­mência com que cen­su­rava o mar­xismo em plena Praça da Revolu­ção de Havana e ante um Fidel Castro per­plexo – se­gu­ra­mente que integra o rol dos projetistas da paz. Das vo­zes e da palavra do nosso tempo, foi o protó­tipo e o mode­lo. Sem com­plexos e sem medos; apontou o dedo acu­sador para os erros passa­dos da pró­pria Igreja – as Cru­zadas, o tráfico de es­cravos, o caso Gali­leu, os agra­vos infli­gidos aos não católi­cos, os ódios do pas­sado, a divi­são entre cris­tãos, os erros perante os Hebreus, os con­luios com a Máfia, a margi­nali­zação da mu­lher; alertou os eu­ropeus, sobretudo dos Esta­dos da antiga Eu­ropa so­vié­tica, no de­curso da visita de despedida à sua Polónia amada, para os pe­ri­gos do capita­lismo desenfreado e da es­cravidão do mercado – tão des­respeitado­res da digni­dade humana como a ti­rania de todos os poderes erráticos; mas par­tilhou igual­men­te, em sinal de es­pe­rança, o de­se­jo de que nin­guém se subtraia à tarefa de construir uma Eu­ropa fiel à sua no­bre e fe­cunda tradição civil e espi­ritual. Re­conhe­cendo, de­certo, as inúmeras vezes em que a Europa, no passado, teve de en­fren­tar períodos difíceis de transformação e de crise; mas reco­nhecendo, igualmente, que sem­pre os su­pe­rou ex­traindo uma nova linfa das ines­gotáveis re­servas de ener­gia vital do Evangelho.
Atento às questões do seu tempo, o pontífice não se cansou de meditar e de re­fletir sobre a questão europeia e o papel reservado à Igreja na Europa alargada que já se pers­pectivava. E, na antecâmara da assinatura do tratado constitu­cional, foi a sua voz débil e já enferma que se escutou, instando os Estados membros, que se aprestavam a reunir em conferência intergovernamental, para que o mesmo tratado não esquecesse uma referência ao património cristão europeu, fundador da identidade eu­ro­peia – «de­sejo uma vez mais dirigir-me aos redatores do futuro tratado constitucio­nal euro­peu, para que seja inserida nele uma refe­rência ao pa­trimónio religioso, espe­cial­mente cristão, da Europa». Uma vez mais, a voz limitou-se a ser ouvida mas a não ser escu­tada. E o conselho ignorado.
No seu tempo, que foi o do fim do milénio passado e o do advento de um novo milé­nio, a voz de João Paulo II contou-se entre as que honraram e engrandeceram a galeria dos notáveis pro­jetistas da paz, advogados da causa da unidade europeia. Hoje, foi-lhe conferido lugar de destaque nos altares católicos do mundo. É lá o seu lugar.

Ulrich Bech e o desafio europeu

Nesta Europa que não raro parece dar mostras de evidente desnorte e de lamentável relativismo ético, filosófico e político, são escassas as vozes que se impõem e que me­recem ser escutadas, pelo pensamento estruturado e coerente que produzem, pelos alertas que vão lançando, pelas denúncias que não se cansam de produzir e, mais im­portante, pelos caminhos de futuro que preconizam, volvendo-se em faróis de espe­rança para todos aqueles que não se contentam em contemplar a espuma dos dias e pretendem ver para além dela. O fenómeno é transversal, ocorre um pouco em todas as latitudes, e é isso que o torna gravoso e merecedor de reflexão. Entre nós, para além da auctoritas de Eduardo Lourenço ou de Adriano Moreira, raros são – admitindo que existem – as vozes que merecem ser escutadas e que se impõem pela força dos seus argumentos e pela razão da sua palavra. Escasseiam os que sabem falar ao ouvido do principie. Escasseiam os que, um dia, Adriano Moreira qualificou como “projetistas da paz”.
Há poucos dias, porém, uma dessas escassas vozes que ainda se ouvem e escutam por essa Europa fora esteve entre nós. Fruto da época, a sua passagem passou quase des­percebida e a mensagem que nos deixou ocupou muito menos espaço mediático e muito menos atenção do que aquela que, seguramente, mereceria – referimo-nos a Ulrich Beck, catedrático na Universidade de Munique e da London School of Econo­mics, que ganhou acrescida visibilidade por ocasião da publicação entre nós do seu úl­timo livro com o título em português “A Europa Alemã – De Maquiavel a «Merkievel». Estratégias de Poder na Crise do Euro” [Edição Almedina, 2013]. Ulrich Beck foi a prin­cipal presença no VIII Congresso Portu­guês de Sociologia, que decorreu na Universi­dade de Évora – e, como é seu apanágio e timbre, não deixou os seus créditos por mãos alheias, quer refletindo profundamente sobre a presente realidade europeia quer interpelando diretamente as consciências que os escutaram ou dos que tiveram acesso à sua intervenção.
Meditando sobre a realidade que nos cerca, deixou enunciada aquela que talvez seja a mais pertinente das questões que se podem formular à Europa que se está a construir e para a qual ainda não foi dada nem encontrada a resposta adequada: “como pode a Europa assegurar a paz e a liberdade no continente europeu face às velhas e às novas ameaças e, consequentemente, conquistar o apoio dos eurocéticos para um novo so­nho europeu?”.
Com a terrível simplicidade das coisas complexas – e só os verdadeiros génios conse­guem reduzir à sua máxima simplicidade as questões verdadeiramente complexas – Beck pôs o dedo na ferida e identificou na perfeição aquele que é o verdadeiro desafio que a Europa, e sobretudo a Europa da União, tem pela frente: captar e conquistar para o seu projeto e para a sua causa todos aqueles que já nele descreem, que já nele não acreditam, que já dele desconfiam.
Este é o desafio que a União Europeia tem pela frente e para o qual urge encontrar uma resposta. De acordo com o velho princípio segundo o qual nenhum projeto político, nenhuma forma política de organização da sociedade, consegue estruturar-se “de cima para baixo”, da cúpula para a base, das elites para os cidadãos. Dito de outra forma: se a União Europeia – esta União tantas vezes apressadamente identificada como herdeira, sucessora ou continuadora do mítico projeto europeu do pós-segunda guerra mundial que nos anos cinquenta do século passado permitiu reconstruir o velho continente dos escombros, e outras vezes que tão rapidamente se pretende coincidente com toda a Europa – pretende permanecer como um projeto de esperança, paz e liberdade e uma referência para o Velho Continente, não pode suscitar a desconfiança e rejeição que continua a suscitar em largas franjas de cidadãos europeus.
Os tempos que se aproximam serão, inevitavelmente, tempos de escolha e de opção. E essas escolhas e opções não podem passar ao lado da questão central que serviu a Beck para elaborar o seu diagnóstico sobre a situação atual com que se debate a Europa e, dentro do velho continente, a Europa da União.
Também essa questão deverá marcar e ser central no debate que em breve se iniciará a propósito da campanha eleitoral para as próximas eleições para o Parlamento Europeu. O escrutínio a que os programas e as propostas que vão surgir vão ser sujeitos deverão, forçosamente incluir este tema nuclear – como pode a Europa assegurar a paz e a liberdade para os seus cidadãos no continente europeu face às velhas e às novas ameaças e, assim, ganhar os eurocéticos para a causa, o sonho e a nova utopia do projeto europeu?
A questão tem tanto de incontornável como de relevante. Da resposta que lhe for dada, nomeadamente por parte dos que vierem a ser eleitos para a próxima legislatura da assembleia de Estrasburgo, irá depender, em grande parte, o sucesso próximo desse mesmo projeto europeu.

O debate Juncker – Schulz

Passou praticamente ao lado da atenção mesmo da comunicação social especializada o primeiro debate travado na passada semana entre os dois principais candidatos ao cargo de Presidente da Comissão Europeia: o luxemburguês Jean-Claude Junker – que foi durante quase 19 anos Primeiro Ministro do Luxemburgo e oito anos Presidente do Eurogrupo, apoiado pelos democratas-cristãos e conservadores do Partido Popular Europeu – e o alemão Martin Schulz – actual Presidente do Parlamento Europeu desde 2012, apoiado pelos socialistas e sociais-democratas do Partido Socialista Europeu.
Se a atenção que entre nós foi dada e dispensada ao primeiro debate entre os aspirantes àquele que, incontestavelmente, é reconhecido como um dos mais importantes e relevantes cargos internacionais que existem – o de Presidente da Comissão Europeia – corresponder ao interesse que as próximas eleições europeias vão suscitar entre os nossos concidadãos, teremos razões de sobra para temer muito seriamente sobre o índice de participação cívica no referido ato eleitoral. Decerto: não será nas próximas eleições europeias que será escolhido diretamente pelos europeus – como, penso, deveria suceder – o próximo Presidente da Comissão Europeia. Este, será eleito pelos membros do Parlamento Europeu que vão ser escolhidos no próximo dia 25 de maio após proposta que lhes será apresentada pelo Conselho Europeu. Serão pois, em primeira linha, os chefes de Estado e de governo dos 28 Estados-Membros da União Europeia quem apresentará à Assembleia Parlamentar europeia o nome do candidato a Presidente da Comissão, cabendo ao Parlamento Europeu aprovar (ou recusar) tal proposta. É um processo complexo – como complexos são, por regra, todos os processos decisórios europeus – em matéria onde devia imperar a simplicidade e a transparência. Infelizmente, a União Europeia ainda não atingiu tal grau de maturidade política. Adiante.
O debate em causa, porém, teve alguns contornos relevantes e que devem merecer reflexão e alguma meditação. Ao contrário do que se poderia supor, foram mais os pontos de convergência e de consenso do que os pontos de divergência ou de dissenso entre ambos os candidatos. Talvez com maior precisão e rigor: nos aspetos verdadeiramente fundamentais e estruturantes sobre a leitura da atual situação de crise e a visão para o futuro da União Europeia, foi evidente o acordo existente; os desacordos evidenciados foram remetidos para os aspetos secundários ou menos relevantes. De certa forma e por alguns momentos, assistindo ao debate em direto, recordei os tempos em que, historicamente, as duas grandes famílias político-ideológicas que recuperaram a Europa do cataclismo da segunda guerra mundial (a democracia-cristã e o socialismo democrático) tiveram de se colocar de acordo em prol da construção e da edificação do projeto europeu que no momento presente se encontra em fase de lenta agonia.
Duas questões, todavia, devem ser retidas de todo este processo conducente à escolha do próximo Presidente da Comissão Europeia: escutando os dois principias candidatos ao cargo, neste debate e nas restantes ações que têm promovido no quadro das suas campanhas, ficamos com a certeza que não será tão cedo que a Europa da União, que tem como um dos seus principais problemas o volume da dívida pública de muitos dos seus Estados.membros, dará o passo em frente decisivo no processo do seu aprofundamento no domínio económico-financeiro enveredando pelo caminho da partilha do risco dessas mesmas dívidas públicas, procedendo à respetiva mutualização (sob qualquer uma das diferentes possíveis modalidades que tal mutualização poderia revestir). Junker, que chegou a admitir tal possibilidade a médio prazo, veio agora, no Congresso da CDU alemã e na presença da Chanceler Angela Merkel, estender esse mesmo prazo e remeter para um futuro relativamente indefinido e incerto uma tal decisão. Schulz já afirmou não ser esse o caminho para a resolução do problema da crise das dívidas soberanas dos Estados-membros da União. Ou seja, desengane-se quem pense que, com Schulz ou com Junker, a futura Comissão Europeia irá pugnar pela mutualização das dívidas públicas dos Estados da União.
A segunda questão que, seguramente, não deixará de estar subjacente à escolha do próximo Presidente da Comissão Europeia será, incontornavelmente, a questão da nacionalidade. Pese embora o largo e amplo consenso evidenciado entre Junker e Schulz, não será a mesma coisa o executivo de Bruxelas ser liderado por um alemão ou por um luxemburguês. Mesmo que este luxemburguês seja, em muitos aspetos, um avalista das políticas e posições mais ortodoxas preconizadas pela chanceler Merkel (manda a verdade dizê-lo, decerto, que se assim não fosse também talvez não tivesse oportunidade de discutir a presidência da Comissão Europeia pelo Partido Popular Europeu….). Ter um alemão ou um luxemburguês à frente do executivo comunitário será, seguramente, diferente. E na sequência de todos os acontecimentos que se têm abatido sobre esta Europa da União, em marcha acelerada para a irrelevância política, que podemos considerar como absolutamente dispensáveis, a simples possibilidade de virmos a ter o executivo comunitário de Bruxelas liderado por um alemão não seria, por certo, das menos importantes. É critério que não poderá ser desconsiderado quando chegar o momento alfa.