O dia de véspera

Não chegasse ao Presidente francês, François Hollande, ter de se defrontar com a grave crise política resultante das últimas eleições autárquicas – que levou, inclusiva­mente, à remodelação governamental e à substituição de Jean-Marc Ayrault por Ma­nuel Valls como Primeiro-Ministro – onde os socialistas franceses quase foram varri­dos do mapa autárquico gaulês nas cidades que verdadeiramente contam (com excepção de Paris) e a extrema-direita alcançou resultados nunca antes alcançados, os mais recentes dados conhecidos da economia francesa fizeram, igualmente, soar as cam­painhas de alarme tanto em Paris como em Bruxelas. Com a economia a crescer 0,3% no último trimestre, mas com o desemprego acima dos 11% e o buraco fiscal por re­solver, o défice de 2013 foi de 4,3% do PIB, dois pontos acima da meta decidida por Bruxelas. E segundo as previsões da Comissão Europeia, se nada for feito, a diferença será ainda maior no final deste ano. Face a este cenário macroeconómico, o Presidente francês terá solicitado mais tempo a Bruxelas para cumprir as metas do défice público – mas tanto Olli Rehn, o liberal finlandês vice-presidente da Comissão Europeia res­ponsável pelas questões económicas, como Jeroen Dijsselbloem, o socialista holandês presidente do Eurogrupo, terão recusado liminarmente o pedido de Hollande, recor­dando que já tinham sido oferecidos à França dois anos para estancar o buraco fiscal e que o que agora faltava eram medidas efectivas para acelerar as reformas estruturais de que o país necessita. Em linguagem simples: enveredar pela adopção de políticas austeritárias, à semelhança das que já estão a ser impostas aos “relapsos incumprido­res” do sul da Europa.
Pessoalmente, há muito tempo que sustento que essa política austeritária que os grandes da Europa e as próprias instituições europeias têm imposto aos Estados em dificuldade do Sul da Europa só mudará no dia em que essas mesmas grandes econo­mias da Europa começarem a “provar do seu próprio veneno”, tendo de enveredar por políticas igualmente austeritárias e recessivas. Porque não creio ser possível existirem ilhas de progresso em oceanos de pobreza, ou algumas poucas economias europeias pujantes numa Europa em crise ou recessão económica e social, acredito que nesse dia o apelo aos valores europeus, da solidariedade, da partilha, da coesão, falem mais alto, se façam ouvir e se traduzam na adopção de medidas concretas que dêem forma e corpo a esses princípios. No fundo – quando a política voltar a prevalecer sobre a eco­nomia, os valores e os princípios voltarem a sobrepor-se às folhas de excel. Quando a Europa, e sobretudo a da União, voltar a ter líderes e lideranças do jaez das que já co­nheceu e que lhe abriu as portas do sonho, da ousadia, da própria utopia.
Mas para isso acontecer será inevitável que, antes, os ditos grandes tenham de sofrer na pele um pouco do que tem sido imposto – do que têm imposto e ajudado a impor – a muitos outros Estados e povos europeus. Note-se: sem que isso signifique laxismo nas contas públicas, défices orçamentais ou aumentos exponenciais de dívida pública, mas também sem uma obediência cega à teologia dos mercados e à ditadura das fi­nanças e dos orçamentos, antes buscando uma sábia e prudente combinação de políti­cas que reúnam princípios e critérios de rigor e exigência com adequadas doses de es­tímulo ao crescimento económico e, sobretudo, de combate a esse flagelo social cons­tituído pelo exército de desempregados que rouba a esperança a mais de 25 milhões de europeus. Sempre tendo presente que o Estado existe para as pessoas e não são es­tas que devem estar ao serviço do Estado. A França parece ser a primeira grande eco­nomia europeia a ter de se defrontar com esse problema.
Nessa medida, por paradoxal que possa parecer, ver um grande Estado europeu e uma grande economia europeia a atravessarem algumas dificuldades pode não ser, neces­sariamente, uma má notícia para a Europa. Mais: se tiver de ser o preço a pagar para a Europa da União e as suas instituições reverem práticas, políticas, objectivo e metas poderá ser, mesmo, o dia de vésperas de melhores dias para este velho continente, matriz dum ocidente sem bússola, sem valores, sem rumo.

A derrota de Putin

Com a sua aventura ucraniana, em que com apoio de carros de combate e tropas rus­sas, e milícias armadas por Moscovo, a Federação da Rússia violou a integridade das fronteiras de um Estado soberano com quem mantinha fronteiras em comum, ane­xando uma parte do mesmo (a Crimeia) depois de um referendo-fantasma não reco­nhecido pela comunidade internacional que antecedeu o óbvio pedido de anexação ou inclusão da Crimeia na Federação da Rússia, poder-se-ia pensar que o líder russo, Vla­dimir Putin, teria alcançado os seus objectivos, nomeadamente: amputar uma parte significativamente estratégica do território do seu vizinho; desestabilizar politicamente a Ucrânia, abrindo as portas para novas secessões que tenham na sua base a partilha de uma língua comum; dar início à construção de um cordão sanitário ou de segu­rança, defendendo as suas fronteiras, na esteira do que foi desenvolvido pela União Soviética, como forma de defender e preservar o seu império e a sua área de influência geográfica na Europa cujas fronteiras foram as que saíram de Yalta e do fim da se­gunda guerra mundial; e, obviamente, os objectivos económicos associados à grande dependência de parte significativa da Europa do gaz que, apesar de produzido em ter­ritório russo, necessita do território ucraniano e da rede dos gasodutos que o atra­vessa para poderem chegar ao respetivo consumidor final. Olhando para os resultados conseguidos nesta operação-relâmpago, beneficiando da impreparação da UE para responder de forma atempada e eficaz a este tipo de crises e aproveitando o adorme­cimento dos EUA, mais vocacionados para a sua costa do Pacífico do que para a reta­guarda atlântica, dada por segura e garantida, dir-se-ia que a operação da Crimeia teria constituído um total e completo êxito e um inquestionável sucesso para o Presidente russo Vladimir Putin.
Creio, todavia, que para além dos objetivos enunciados e plenamente alcançados, Pu­tin teria em mente um outro – quiçá tão ou mais importante que todos os restantes – onde estaria a apostar fortemente e que, manda a verdade dizê-lo, talvez já possa ser dado por não cumprido e não alcançado.
Para além de todos aqueles objectivos, parece hoje uma evidência que Putin apostou forte tanto na divisão intra-europeia como na ruptura dos laços transatlânticos e da relação dos EUA com a Europa e, nomeadamente, a Europa da União. Decerto: nem a UE nem os EUA reagiram a este episódio e a esta crise – tida como a mais grave desde a queda do Muro de Berlim e o fim da guerra-fria – como deveriam ter reagido. Por ra­zões diferentes e motivos diversos: a União Europeia, por falta de estruturas adequa­das e capacidade logística (militar) adequada; os EUA, por manifesta desatenção e erro de avaliação sobre as prioridades da política externa russa. Pese embora tais deficiên­cias, é imperativo reconhecer e constatar que, passadas as horas iniciais de desnorte e descoordenação, os aliados transatlânticos souberam manter o mínimo que se lhes exigia, preservando os laços mínimos da aliança que os vincula e une ambas as mar­gens do Atlântico.
Não foi tarefa fácil e houve oportunidade de o constatar, por exemplo, se atentarmos no quão difícil foi a União Europeia entender-se sobre um catálogo mínimo de sanções a aplicar à Federação da Rússia e, mesmo quanto às que foram adotadas, serem legí­timas as dúvidas sobre a sua eficácia. Apesar disso, houve a necessária arte e o sufici­ente engenho para preservar uma coesão mínima de que a expressão máxima terá sido a viagem empreendida pelo Presidente Barack Obama à Europa na passada se­mana, nos dias imediatos à eclosão da crise e à anexação da Crimeia por parte da Fe­deração russa. Desdobrou-se em contactos bilaterais, visitou os principais aliados eu­ropeus e a sede da NATO – onde validou a escolha do futuro Secretário-Geral da orga­nização, o antigo primeiro-ministro norueguês Jens Stoltenberg, escolhido para suce­der a Anders Fogh Rasmussen – e, sobretudo e pela primeira vez, incluiu as instituições comunitárias da União Europeia no roteiro desta sua visita – a que não faltou a visita ao Vaticano e a Sua Santidade, o Papa Francisco. E ao longo de todas as intervenções que teve oportunidade de fazer, Obama colocou sempre o acento tónico na necessi­dade de fortalecer e solidificar os laços transatlânticos – reforçando-os como forma de fazer frente à “força bruta” da Rússia. Dir-se-á que foi preciso a crise ucraniana para o Presidente dos Estados Unidos recordar que o Ocidente é matricialmente europeu e que é do interesse dos próprios EUA que o Ocidente em que se integram não percam a sua matriz nem a deixem enfraquecer a ponto de a mesma se tornar irrelevante ou dispensável. As palavras de Obama permitem manter acesa a esperança de que tal evidência tenha sido compreendida pelos Aliados dos dois lados do Atlântico, euro­peus e norte-americanos. Mais vale tarde do que nunca; e mais ainda valerá se se tra­tar de uma postura sincera que passe das palavras aos atos. A assim acontecer, Putin poderá ter ganho esta batalha mas estará longe de ter ganho a guerra. Ou de ter cum­prido o seu desígnio primeiro de fraturar e quebrar a aliança transatlântica. Lamentar-se-á que a Crimeia possa ter sido o preço a pagar pelo Ocidente para assegurar a coe­são daquela aliança. Mas será, também e paradoxalmente, a maior prova de que o lí­der russo terá alcançado muitos dos objectivos que se propôs alcançar sem, todavia, lograr atingir aquele que seria o seu objetivo prioritário. A política internacional tam­bém é feita de alguns paradoxos.

Sinais que vêm de França

No passado fim de semana realizou-se a primeira volta das eleições municipais em França. Como quaisquer outras eleições locais, em qualquer parte do mundo, podem-se-lhes aplicar aquele velho aforismo a que os políticos tanto gostam de recorrer, sobretudo relativamente às sondagens, que pretende dizer tudo e, em boa verdade, não diz nada: “são eleições que valem o que valem”. Pois esta primeira volta das eleições autárquicas francesas também valem o que valem. Em bom rigor – valem aquilo que nós queiramos que elas valham, dizem aquilo que nós queiramos que elas digam. In casu, creio que este ato eleitoral nos disse três coisas importantes.
A primeira – que os franceses, em número nunca antes atingido ou atingido, numa taxa considerada histórica pelo também histórico Le Monde, virou as costas ao processo eleitoral e resolveu ficar em casa. Foram cerca de 40% dos franceses que, pura e simplesmente, se recusou a participar neste ato eleitoral. É grave e deve fazer meditar – porque se as eleições constituem a pedra angular da própria democracia, a ausência de participação inquina o processo eleitoral e, assim sendo, questiona e fragiliza o próprio regime democrático.
A segunda – profundamente insatisfeitos e defraudados com uma governação esperançosa em que depositaram muitas expectativas, resolveram penalizar fortemente a presidência e governo de François Hollande varrendo do mapa, em inúmeras cidades de média e grande dimensão, as candidaturas protagonizadas pelo Partido Socialista. É a confirmação da velha querela que aponta para a influência das questões políticas nacionais em eleições autárquicas. Lá como também cá.
A terceira questão importante dita por esta eleição prendeu-se com a notável subida eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen. Votação tão mais expressiva, de resto, quanto as candidaturas frentistas cifraram-se em apenas 597 num universo de 36.000 municípios. Num sistema eleitoral maioritário a duas voltas, em que apenas foram eleitos os candidatos que obtiveram mais de 50% dos votos, havendo necessidade de uma segunda volta entre os dois mais votados, estas ilações afiguram-se como inquestionáveis. São dados de facto que devem ser tidos em consideração.
E deverão ser tidos em consideração tanto mais quanto, conforme temos vindo sucessivamente anotar neste espaço, cremos existirem fortes probabilidades de os mesmos se repetirem precisamente dentro de dois meses – quando, a 25 de maio próximo, os europeus forem chamados a eleger o novo Parlamento Europeu. Isto é – corre-se o fortíssimo risco de sermos confrontados com uma taxa de abstenção sem precedentes; persiste o perigo de uma lamentável confusão quanto ao objetivo do voto a emitir, fazendo-se dele um uso imprudente, mais direcionado a penalizar ou sancionar os governos de turno que exercem o poder (sejam eles de esquerda, centro ou direita) nos mais diferentes Estados da União Europeia do que a escolher e optar por diferentes modelos e projetos de construção europeia, desconsiderando-se em absoluto a finalidade do sufrágio que vai ocorrer; e, finalmente, não poderá ser dada por excluída a possibilidade de sermos confrontado com escolhas – democráticas, por certo! – que mais do que se caraterizarem pela apresentação de propostas concretas sobre o modelo de Europa que preconizam, beneficiarão dos princípios democráticos para atacarem e questionarem a União Europeia nos seus fundamentos, valores e princípios, em nome do retrocesso a um passado impossível e sem serem capazes de preconizarem um futuro com um rumo ou um caminho sério e sustentável.
São, pois, muitos sinais que não podem ser desconsiderados e que devem ser levados a sério, refletidos e meditados. E quando estes ventos e estes sinais nos chegam, justamente, de França, talvez as razões para nos preocuparmos com eles sejam acrescidas e a preocupação deva ser reforçada. Há perigos que, apesar de identificados, com frequência se corporizam e se tornam reais. E aí, quase sempre, é tarde para reagirmos.
Post-scriptum: este texto é publicado no dia em que Espanha se despede do seu primeiro Presidente do Governo democrático da monarquia restaurada após a morte do ditador Francisco Franco. Não é por acaso que o país se curvou unanimemente ante a figura e a memória de Adolfo Suárez. A Espanha democrática e europeia dos nossos dias deve-lhe o máximo que um país pode dever a um estadista. Pese embora os muitos erros cometidos, sobretudo de natureza partidária e depois de deixar a Presidência do governo, com o apoio e na fidelidade à Coroa, conduziu o país da ditadura à democracia, liderando a transição e superando os traumas de uma guerra civil (1936-1939) que foi uma das maiores carnificinas do século XX. Conseguiu fazê-lo de uma forma pacífica e duradoura. Talvez por isso continue a ser o Presidente do governo da democracia que os espanhóis mais continuam a admirar, considerar e respeitar. E foi, também, quem lançou as bases da aproximação de Espanha à Europa (pese embora já tenha cabido ao seu sucessor, Felipe Gonzalez, outorgar o respetivo tratado de adesão, no mesmo dia em que, no Mosteiro dos Jerónimos, Portugal assinou idêntico documento). Permanecerá, seguramente, na memória dos espanhóis; e perdurará no rol dos líderes notáveis que puderam deixar a sua marca na Europa. Coisa rara, nos tempos que passam.

O referendo ilegal

Foi sem surpresa nem admiração que o mundo tomou conhecimento que o referendo realizado no passado domingo na Crimeia revelou um resultado amplamente favorável às teses secessionistas das autoridades-fantasma que o impulsionaram. Cerca de 95% dos votantes pronunciaram-se a favor da integração da Crimeia na Federação da Rús­sia. Pouco relevará que a abstenção tenha sido gigantesca, que o referendo que se re­alizou potencie novos referendos noutras regiões de maioria de habitantes de ascen­dência russa que acabem por dissolver ou diluir a atual Ucrânia afetando a sua integri­dade territorial. E, por certo, são meros pormenores administrativos tanto o facto de o referendo em causa ter sido organizado por autoridades não legitimadas democrati­camente, debaixo da tutela de milícias civis armadas pelo exército russo, subordinado à tutela das Kalashnikov fornecidas por Moscovo como a circunstância de tal consulta popular se ter processado à completa revelia da Constituição ucraniana, o que lhe conferiu absoluta ilegitimidade e ilegalidade. Outro tanto se diga da unânime falta de reconhecimento internacional deste ato referendário. Com exceção da Federação da Rússia, não há notícia de mais nenhum Estado ou organização internacional haver re­conhecido o referendo realizado na Crimeia. A forma, todavia, como a comunidade in­ternacional (não) reagiu ao mesmo, diz-nos tudo sobre o respetivo grau de organiza­ção, eficácia e eficiência. Ouviram-se piedosas declarações de intenção, enfáticos apelos a valores e princípios que era suposto serem unanimemente respeitados e re­conhecidos – mas não se conhece uma única reação que tenha preocupado ou feito hesitar, e recuar, Vladimir Putin. Este, aproveitando a desorganização reinante na co­munidade internacional, vai aproveitando as fraquezas de quem se lhe podia opor para, lentamente, consolidar o seu poder e alargar geográfica e territorialmente as fronteiras do mesmo. O Ocidente – a Europa, a da União e a outra, bem como os pró­prios EUA – apesar de matricial da grande e santa-mãe Rússia a tudo vai assistindo, complacente e permissivo. E o poder russo, desviacionismo desse ocidente matricial, fortalece-se e alarga a sua esfera de influência, tanto direta como indireta. Como afir­mava há dias Miguel Monjardino, quem vai ser decisivo nesta questão da expansão do poder e da influência do Kremlin são os norte-americanos, os alemães e toda a cintura que vai do Mar Báltico ao Mar Negro. O cálculo de Vladimir Putin é que esse mundo euro-atlântico não tem vontade nem capacidade para se unir em torno deste ponto. Se for verdade, então todas as bases da integração europeia estarão postas em dúvida.
Porém, não é essa, todavia, a única consequência do referendo na Crimeia e da imedi­ata deslocação a Moscovo de uma delegação do novo poder assim instituído com a fi­nalidade de iniciar as negociações visando a integração da Crimeia na Federação da Rússia. Sem embargo das suas consequências imediatas – onde se contam o início do caminho para a dissolução da Ucrânia tal como a conhecemos até agora e a sua abso­luta ilegalidade tanto face às normas do direito internacional público como à luz do próprio direito constitucional ucraniano – será, todavia, no plano das consequências mediatas que esta violação da legalidade internacional mais se poderá fazer sentir. So­bretudo pelos sinais que irradia para outras latitudes, para outras regiões, que por igual já demonstraram idênticos sinais ou ambições autonomistas ou independentis­tas.
Se o referendo na Crimeia, para nós europeus ocidentais, é algo de distante, que se passa quase lá nos confins da fronteira ocidental da Europa, perto do lugar onde esta se entrelaça com a Ásia, para mais numa região que conhecemos mal tanto do ponto de vista político como nos planos económico e geoestratégico, se tudo isto confere a este assunto um sentimento de distância longínqua que nos pode levar a pensar ser coisa que não nos afeta nem nos respeita diretamente, convirá sermos um tanto ou quanto mais prudentes quando nos lembrarmos e recordarmos que, para este ano de 2014, estão marcados dois referendos independentistas bem mais próximos de nós: na Escócia, visando a independência do Reino Unido; e na nossa vizinha Catalunha, vi­sando a separação do Reino de Espanha. Ou outras ambições independentistas e au­tonomistas que podem estar adormecidas e serem acordadas por este aventureirismo que parece campear em várias latitudes.
Ora, qualquer um destes casos nunca poderá ser tratado ou encarado com a mesma li­geireza e a mesma falta de estratégia por parte, desde logo, da União Europeia – sendo certo que ainda não se divisam estratégias nem formas de lidar com as questões que inevitavelmente vão surgir tanto na Escócia como na Catalunha. Poder-se-á dizer que as questões são, em primeiro lugar, de política interna dos Estados a que respei­tam. O grau de integração a que a União Europeia pretende aspirar é incompatível com uma ausência de posição, uma posição dúbia ou qualquer tipo de hesitação como aquelas que a União Europeia tem revelado face à crise ucraniana e, mais recente­mente, aos últimos desenvolvimentos desta consubstanciados neste referendo seces­sionista. Ontem já era tarde para começar a encarar, com rigor e com seriedade, estes dois desafios que estão aí, ao virar da esquina.

A União Europeia à prova na Crimeia

O mundo foi apanhado desprevenido quando, há cerca de uma semana, a câmara alta do Parlamento russo, o Conselho da Federação, aprovou o envio de forças armadas para a Crimeia, na Ucrânia, após um pedido do Presidente Vladimir Putin, replicando nas televisões de todo o mundo as imagens que vimos no distante Afeganistão nos idos de 1979/1980 e que viriam a dar origem, anos mais tarde, a uma retirada muito pouco edificante e ainda menos digna. Constituiu o momento decisivo, porque de na­tureza militar externa, da escalada do conflito que se vive na Ucrânia. E que foi com­pletado com as decisões do novo poder instalado naquela região autónoma ucraniana de convocar para breve um referendo onde se perguntará aos cidadãos da Crimeia se pretendem continuar integrados na Ucrânia ou, em alternativa, abrir as portas de um novo independentismo que fatalmente contribuirá para atirar a região para os braços de Moscovo.
Utilizando as palavras da ex-primeira-ministra ucraniana, Iúlia Timochenko – proferidas em Dublin perante o Congresso do Partido Popular Europeu – a consulta popular será realizada debaixo da tutela das Kalashnikov fornecidas por Moscovo e sob o controle e a organização de milícias armadas e instruídas pela Rússia. Ambos os factos – a viola­ção territorial das fronteiras ucranianas e a convocação deste referendo-fantasma – dão corpo a uma nova formulação da clássica doutrina da soberania limitada, dos tem­pos da guerra-fria, desta feita praticada por um descendente/discípulo de Leonidas Brejnev, de seu nome Vladimir Putin. A justificação e a fundamentação desta nova doutrina podem variar; mas os objectivos permanecem iguais: a Rússia, a grande santa-mãe Rússia, só se sente defendida e protegida com um cordão sanitário à sua volta. Nem que para tanto tenha de espezinhar a soberania e a integridade territorial dos seus vizinhos. A Rússia de hoje tal como a União Soviética de ontem.
Perante estes desenvolvimentos da crise ucraniana que comportou já uma dimensão militar, a União Europeia voltou a mostrar a sua fraqueza e a titubear na sua reação. Se os EUA deram evidente prova de terem sido apanhados de surpresa tanto com o eclo­dir da crise como com o seu desenvolvimento, a Europa da União demonstrou, uma vez mais, a absoluta incapacidade de reação em tempo útil e a total impreparação da sua estrutura institucional para lidar com esta crise que ocorre no limite das suas fron­teiras externas. Pese embora dotada de uma Alta Representante para uma suposta política externa comum, foram os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, da França e da Polónia quem, num primeiro momento, teve de rumar para Kiev para tentar perceber o que se passava e fazer as necessárias pontes quer com o novo poder ucraniano quer, sobretudo, com o Kremlin. E, num segundo momento, voltando ao tradicional e clássico método usado nos tempos de crise, a realização de mais uma ci­meira do Conselho Europeu Extraordinário – daquelas que também não ficará para a história por aquilo que (não) decidiu: condenando veementemente a violação da so­be­rania e da integridade territorial ucranianas pela Federação da Rússia, que não resul­tou de qualquer provocação; e exortando a Federação da Rús­sia a retirar imediata­mente as suas forças armadas e a enviá-las para as suas áreas de estacionamento permanente, em conformidade com os acordos internacionais vigen­tes; considerando que a decisão do Conselho Superior da República Autónoma da Cri­meia de realizar um referendo sobre o futuro estatuto do território é contrária à Cons­tituição ucraniana e, portanto, ilegal; constatando que seria profundamente lamentá­vel se a Federação da Rússia não fizesse esforços no sentido de encontrar uma solução conjunta para a crise ucraniana, muito especialmente se persistisse na sua recusa em participar num diálogo construtivo com o Governo da Ucrânia; e decidindo, nomea­damente, suspender as conversações bilaterais com a Federação da Rússia em matéria de vistos. Convenha­mos: fraca reação para tamanha provocação.
Ou seja – ante a que está a ser unanimemente reconhecida como a mais grave crise in­ternacional desde a queda do muro de Berlim e a guerra na ex-Jugoslávia, esta União Europeia, em caminho acelerado para a sua descredibili­zação, voltou a evidenciar toda a sua fragilidade e a dificuldade em reagir e em assumir-se como um ator credível na cena internacional. Enquanto assim continuar a suceder a Europa não pode aspirar a ter voz de relevo e a ser levada a sério nas questões internacionais.
Post-scriptum – O Congresso do Partido Popular Europeu que reuniu em Dublin esco­lheu Jean-Claude Junker como seu candidato a Presidente da Comissão Europeia, para substituir José Manuel Durão Barroso. Encerra-se, assim, a lista dos principais candida­tos ao cargo: Jean-Claude Junker (Partido Popular Europeu), Martin Schulz (Partido So­cialista Europeu), Guy Verhofstadt (Liberais Europeus), Alexis Tsipras (Grupo da Es­querda Unitária) e Ska Keller (Verdes), sendo que, realisticamente, apenas os dois pri­meiros poderão aspirar ao cargo. O problema é que o sistema instituído remete para o Conselho Europeu a apresentação do candidato ao cargo de Presidente da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu, nada garantindo que o nome escolhido saia deste le­que de indigitados. A que acresce o facto, não particularmente estimulante, de quem quiser que o futuro Presidente da Comissão Europeia seja Junker tenha de votar em Paulo Rangel ou quem pretender que o cargo seja desempenhado por Schulz tenha de dar o seu voto a Francisco Assis. Ou que, em Portugal, não haja como exprimir um voto em favor de Verhofstadt, posto não existir nenhum partido político português inte­grante da família liberal europeia. Ironias de um sistema que urge ser aperfeiçoado, nomeadamente concretizando a possibilidade de, em conjunto com a eleição dos depu­tados ao Parlamento Europeu, poder ser eleito diretamente o próprio Presidente da Comissão Europeia.

Não há “saídas limpas”

Quando, no próximo dia 16 de Maio, terminar o programa de ajustamento que Portu­gal contratualizou com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Mo­netário Internacional, teoricamente deparar-se-ão três alternativas que se lhe poderão seguir.
A primeira alternativa consistirá na assinatura de um novo programa de ajustamento mediante o qual Portugal receberá um novo envelope financeiro contra a aplicação de um conjunto de medidas que lhe serão ditadas pelos seus credores os quais, periodi­camente, continuarão a aterrar no aeroporto da Portela não só para fiscalizarem as medidas que estarão a ser adotadas como, igualmente, para ditarem as regras sobre o que deverá e como deverá ser feito pelo governo nacional. Em síntese – é o cenário do segundo resgate.
A segunda alternativa consistirá em, terminado o programa de ajustamento, o país fi­car entregue a si mesmo, indo buscar e procurar aos mercados financeiros os meios necessários para o financiamento e refinanciamento da sua dívida pública e daquela que os défices orçamentais continuarem a gerar – sendo que, todavia, poderá vir a ser celebrado entre o Estado e as instituições europeias um programa ou contrato que ga­ranta uma rede de proteção a esse recurso aos mercados, rede essa que poderá ope­rar em condições muitos especiais, nomeadamente se e quando os juros cobrados nos mercados ultrapassarem o limite do razoável e do sustentável. Em síntese – é o cená­rio do programa cautelar.
A terceira alternativa consistirá em, findo o programa de ajustamento, o país ficar en­tregue a si mesmo, indo buscar aos mercados financeiros os meios necessários para se financiar e refinanciar sem que, todavia, exista qualquer rede de apoio ou suporte apta a ser acionada em casos limites ou extremos. Em síntese – é o cenário da saída “à ir­landesa”, também dita “saída limpa”.
Quem fizer um curto exercício de memória recordará que, há cerca de um ano, exis­tiam dúvidas sobre qual o cenário mais provável – oscilando as opiniões entre a possi­bilidade de um segundo resgate ou a opção por um programa cautelar. De há cerca de três ou quatro meses para cá, a situação inverteu-se. Sobretudo após a decisão do go­verno de Dublin, começaram a dividir-se as opiniões entre o cenário do programa cau­telar ou o cenário da saída “à irlandesa”. Nos tempos mais próximos ganhou acrescida expressão a convicção de que ao nosso programa de ajustamento se seguiria uma sa­ída limpa. É o cenário que parece convir a todos. Convir à União Europeia que pre­tende a todo o custo evitar a tragédia de um segundo resgate – não só por não abun­darem os fundos necessários para tanto como, sobretudo, por isso representar, objec­tivamente, um fracasso do programa de ajustamento. E para fracassos, o caso grego chega e basta. E convir igualmente a Portugal e ao seu governo – depois da brutal carga austeritária sem igual, recorrer a um segundo resgate seria politicamente catas­trófico. Algo de semelhante se passa com a construção de um programa cautelar. Tra­tar-se-ia de uma originalidade e uma inovação. Nunca antes tentado nem desenhado. E neste momento, focada nas eleições europeias, as instituições comunitárias têm ou­tras preocupações e outras prioridades que não conceberem e desenharem uma coisa totalmente nova chamada programa cautelar. Ou seja, a União Europeia não está dis­posta a construir um programa cautelar para Portugal. Como também não esteve dis­posta para o celebrar com a Irlanda, pese embora esta haja tido a arte e o engenho de fazer passar a ideia contrária, a ideia que havia sido o governo irlandês a recusá-lo. Mas se Bruxelas não estará muito interessada num programa cautelar para Portugal, o governo nacional também não. Politicamente constituirá momento de êxito e sucesso poder proclamar que a “soberania” foi restaurada, a troika mandada para casa e o nosso destino voltou às nossas mãos. Será, tudo indica, a decisão ou o cenário que terá o condão de agradar a todos. Contenta o governo e cala a oposição. A saída “à irlan­desa”. A saída limpa!
Ocorre, porém, que bem vistas as coisas, talvez uma tal saída limpa não seja tão limpa quanto parece. E isto porque, não nos podemos esquecer, no dia 13 de abril de 2012 Portugal foi o primeiro Estado a aprovar para ratificação o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária”, vulgo “Pacto Orçamen­tal”. Tratado esse que, já em vigor, não se aplica aos países que se encontrem sob res­gate financeiro mas já se aplicará àqueles que não estejam nessa situação. E, saindo à irlandesa, Portugal passará a ter de cumprir as regras do referido pacto orçamental, nomeadamente a célebre regra prevista no artigo 3º nº 1 alínea a) do referido tratado que estabelece a obrigatoriedade dos Estados terem um défice estrutural não superior a 0,5% do PIB – recorde-se que, recentemente, o governo anunciou que o “défice es­trutural” das contas públicas em 2013 foi pouco superior a 3% do PIB, enquanto o dé­fice nominal ficou na casa dos 5%, dado que aquele não leva em conta os efeitos do ci­clo económico o que, na atual situação económica, eleva o défice nominal; em todo o caso, é sempre um valor seis vezes superior ao permitido pelo pacto orçamental – e a regra inscrita no artigo 4º que prevê que a dívida pública de um Estado não poderá ul­trapassar os 60% do respectivo PIB – a atual dívida pública portuguesa mais do que duplica esse limite – e que, quando ultrapassar tal valor deverá ser reduzida à taxa média de um vigésimo por ano.
Ora, tendo de dar cumprimento ao estabelecido nesse Tratado, no pacto orçamental, isso significará, necessariamente, a obrigação de continuarmos a ter de caminhar no sentido da acentuada redução do seu défice orçamental e da dívida pública – e, inclu­sivamente, a um ritmo e a uma velocidade superiores àquela que se tem verificado. O que significará, fatalmente, a continuação do rumo austeritário.
Desengane-se, pois, quem pensar que saída limpa equivalerá a fim de austeridade. Em bom rigor, não existem saídas limpas. É uma pena – mas é assim mesmo.